Internacional

Cúpula da Democracia de Biden: poder, crise e hipocrisia

Participantes da Cúpula da Democracia 2023 (Fonte: Departamento de Estado)

Entre os dias 29 e 30 de março de 2023 foi realizada a 2ª Cúpula da Democracia organizada pelo governo Biden, que reuniu líderes mundiais em encontro virtual

Por Renata Peixoto de Oliveira*

Em 2021, ainda no auge da pandemia, o governo democrata de Joe Biden lança uma iniciativa em prol da democracia global, o Summit of Democracy, ou a Cúpula da Democracia.

Discutir a democracia em um período marcado pela ascensão da extrema direita em todo o mundo e de erosão das instituições, assim como de baixa adesão aos valores democráticos e aos Direitos Humanos ao redor do globo, parece ser algo bastante razoável para esta época. Quando essa proposta é feita e liderada pelos Estados Unidos também é vista, no entanto, com receio e preocupação.

Baluartes da democracia, modelo clássico a ser seguido e gerando inspirações, país associado aos mais supremos valores do liberalismo, a democracia estadunidense deu sinais de instabilidade desde a eleição do bilionário republicano e ex-apresentador de reality show Donald Trump como presidente dos EUA. Se o autoproclamado papel de defensores do mundo livre e democrático, no passado, já foi visto como algo bastante controverso – já que, em nome da pretensa liberdade, o serviço secreto estadunidense apoiou e organizou derrubadas de regimes, golpes de Estado e apoio a ditaduras civis e militares em diferentes partes do globo, tendo até lançado uma bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, matando centenas de milhares de civis japoneses com o conflito já findo –, hoje este papel causa maior desconforto e desconfiança.

Aparentemente, parece fazer bastante sentido que o governo Biden tome a iniciativa de discutir e defender a democracia, convidando outros chefes de Estado, sobretudo, depois da insurreição e dos atos criminosos que marcaram o dia 6 de janeiro de 2021, quando seria diplomado presidente no Capitólio, e pelo marcado incremento das forças políticas reacionárias e extremistas no país.

Chamou atenção a lista de convidados, tendo-se em vista que grande parte dos países africanos e do Oriente Médio e alguns asiáticos não costumam participar. Percebe-se que a classificação referente à qualidade da democracia, ao processo e avanço das mesmas hoje, à defesa dos Direitos Humanos, ou ao grau de liberdade interna, pode ser um elemento a banir a participação de determinado país, enquanto para outros em igual, ou pior, situação, isso não chega a interferir. No final das contas, o que importa é a geopolítica e os interesses da Política Externa norte-americana para definir, como na época da Guerra Fria, quem é amigo e quem é inimigo. Exemplar foi a controversa participação do Brasil presidido por Jair Messias Bolsonaro na Cúpula de 2021.

Release of Summit for Democracy Written Commitments - U.S. Embassy & Consulates in Italy(Arquivo) Secretário de Estado americano, Antony Blinken, e os convidados da 1ª Cúpula da Democracia  em 2021 (Fonte: Departamento de Estado)

Uma nova Cúpula em 2023 apenas reforça a preocupação dos Estados Unidos com a Rússia (depois da marca de um ano de conflito e invasão da Ucrânia), com a superpotência China e o equilíbrio de forças no Leste Europeu, bem como com o constante crescimento e ascensão de países asiáticos nas últimas décadas. Para não parecer o dono isolado da festa, dessa vez, outras nações amigas representantes de diferentes regiões do globo foram convidadas para serem anfitriãs do encontro que seguiu em formato virtual. Os países convidados como coanfitriões foram Zâmbia, Coreia do Sul, Costa Rica e Holanda.

Os debates propostos são sempre válidos e validados perante a opinião pública e a comunidade internacional como o combate à corrupção, à defesa das instituições democráticas, da liberdade e dos Direitos Humanos. Mas, na realidade, estes encontros estão demarcando terrenos identitários, nos quais os Estados Unidos definem, por região, quais são seus aliados, os compromissos em termos de narrativa que devem assumir, como pretendem se apresentar aos olhos do mundo e quais são seus inimigos a combater. A lógica maniqueísta permanece viva e agora legitimada por um fórum amplo, global. Mesmo ações unilaterais, ou que atendam basicamente aos interesses do governo dos Estados Unidos, passam a ser vistas como creditadas por sua centena de amigos que reconhecem sua liderança e preocupação com a democracia e a liberdade.

Além disso, os temas debatidos pela Cúpula são genéricos e confortáveis, tais como o papel da juventude, a liberdade de imprensa, eleições livres e combate à corrupção, assuntos centrais da Cúpula realizada em 29 e 30 de março, também de forma virtual.

Questões controversas e polêmicas que envolvem os EUA, como a aventura no Iraque, a invasão ao Afeganistão, o apoio à oposição (e à tentativa de golpe) na Venezuela, não encontram espaço.  Controvérsias e desafios internos dos governos convidados para esta edição tampouco são trazidos à mesa.

Nessa dinâmica, o debate em torno da democracia se perde, pois não existe espaço para reflexões profundas, autocríticas e reavaliações. Nem mesmo as questões centrais da crise social e humanitária que o mundo vem enfrentando na última década merecem destaque, como o crescimento da ultradireita, a crise migratória, o aquecimento global e suas consequências, ou ainda, a crise econômica e social gerada pela pandemia da covid-19. A democracia é reduzida a determinadas dimensões, sem abarcar questões substantivas e necessárias para o enfrentamento dos problemas contemporâneos. O debate e os acordos são o que menos importa. O mais relevante é entender quem se fez presente e como e, do mesmo modo, por que o governo estadunidense fez dessa Cúpula da Democracia um encontro casual e virtual entre amigos para reconhecer seus aliados.

 

* Renata Peixoto de Oliveira é cientista política, docente e pesquisadora da UNILA. Contato: renata.oliveira@unila.edu.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 30 mar. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais