Internacional

Geoestratégia do Indo-Pacífico e o Quad: o século do Pacífico e as disputas China-EUA

Cúpula do Quad: presidente Joe Biden; e os primeiros-ministros japonês, Kishida Fumio; indiano, Narendra Modi; e australiano, Anthony Albanese, em Kantei, sede e residência oficial do premiê do Japão, em Tóquio, em 24 de maio de 2022 (Crédito: Adam Schultz/Casa Branca/Flickr)

Por Lucas Gualberto do Nascimento* [Informe OPEU]

Ficheiro:Halford Mackinder.jpg – Wikipédia, a enciclopédia livre

Halford Mackinder (Fonte: Wikipedia)

A Geopolítica, como pensamento teórico, influenciou profundamente as relações internacionais desde as suas fundações, entre o fim do século XIX e o início do século XX, na conjuntura histórica do Concerto Europeu entre impérios coloniais. O primeiro embate teórico-conceitual geopolítico se deu entre as teorias do poder terrestre e as teorias do poder naval. A Geopolítica do Heartland, de Mackinder, influenciou todas as estratégias dos Estados Unidos durante o século XX e, atualmente, ao destacar o poder político adquirido com base na influência de grandes potências na Eurásia.

Com o objetivo de a perpetuar uma ordem internacional favorável aos seus interesses, é parte da geoestratégia estadunidense influenciar os rumos políticos eurasiáticos – e, portanto, manter o poder terrestre sob controle e impedir sua transformação em poder anfíbio.

A partir do fim das Grandes Guerras e do estabelecimento da Guerra Fria, manter o controle das margens do Heartland se tornou uma prioridade geoestratégica estadunidense, de modo a conter a União Soviética (URSS); e atualmente, também a China. A superpotência marítima – os EUA – busca, a partir da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Europa e das alianças militares com Japão, Austrália e Coreia do Sul na Ásia, manter as margens da Eurásia restritas ao acesso do pivô geográfico.

Os avanços tecnológicos, sobretudo, o uso estratégico de armas nucleares e a aviação militar, tornaram uma defesa hemisférica, na geoestratégia estadunidense, frágil e vulnerável. Essa mudança suscitou a busca, por parte dos EUA, de uma projeção mundial no século XX. Para impedir o cerco do continente americano, seria necessário cercar, antes e primeiramente, a Eurásia. Dividi-la entre potências em balanço de poder, para que uma potência preponderante não conseguisse reunir capacidades necessárias para ameaçar a Pax Americana. Portanto, uma coalizão contra-hegemônica sino-russa na Eurásia seria um obstáculo à manutenção da ordem internacional desejada pelos EUA.

A identificação das potências-pivô na Eurásia, sua divisão interna e entre si, e evitar coalizões são parte deste esforço contínuo e constante da política externa estadunidense; o que destaca sua visão estratégica no século XXI, em confronto principalmente com a China.

No século XXI, é uma prioridade da política externa dos Estados Unidos impedir que outras potências emergentes – em particular China e Rússia – sejam potências preponderantes na Eurásia. Em seus escritos sobre os desenvolvimentos geoestratégicos da Eurásia, como ex-conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos (1977-1981), Brzezinski enfatizou a importância da geopolítica da Eurásia para o jogo de poder (Great Game) nas relações internacionais.

Durante a Guerra Fria, especificamente na década de 1980, a estratégia dos Estados Unidos contra a URSS passou a ser o levantamento de insurgências contra o Heartland. Em um cenário pós-soviético, foram várias as iniciativas na Ásia Central lideradas pelos EUA na tentativa de incluir seus países na esfera de influência euro-atlântica. Trata-se, assim, de tentativas de controlar o desenvolvimento político na Eurásia.

A contenção da China, assim como da Rússia, tornou-se a peça central da estratégia de longo prazo de Washington. Em 2011, às vésperas de uma reunião de cúpula da Cooperação Econômica para a Ásia-Pacífico (APEC), a então secretária de Estado (2009-2013) Hillary Clinton anunciou o America’s Pacific Century, o foco da política exterior dos EUA para o século XXI, voltada para o Pacífico. Igualmente, em artigo de mesmo nome, Hillary destaca que “o futuro da política será decidido na Ásia”, ao ressaltar a necessidade da intervenção dos EUA na região para a busca de seus interesses.

A tentativa de restabelecimento de uma zona de influência estadunidense – e, como consequência, um isolamento chinês – surge em um momento no qual a China é o principal mercado de tradicionais aliados dos EUA, como Japão, Taiwan e Coreia do Sul. Assim, a estratégia estadunidense se apoia na exploração de rivalidades regionais.

‘Otan asiática’

A posição defensiva dos EUA na Ásia, portanto, é sobretudo representada pelo Quadrilateral Security Dialogue (Quad) – EUA, Japão, Austrália e Índia – e pela visão geoestratégica de contenção do Indo-Pacífico. O Quad surgiu primeiramente em 2007, junto ao Exercício Malabar, que reúne as marinhas dos EUA, Japão e Índia; e em 2012, ao destacar o grupo como um “diamante da segurança da democracia” e um desafio ao “comportamento coercitivo” chinês, sobretudo no Mar do Sul da China, o ex-primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, declarou como é um elemento formativo do grupo a contenção da China na região.

INDO-PACIFICA partir de 2017, o grupo torna-se mais ativo na Ásia-Pacífico, a partir da cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), do mesmo ano; e sucessivamente publica documentos formativos, principalmente a partir de declarações de Estado dos EUA. Neste sentido, o Quad afirma buscar um “Indo-Pacífico livre e aberto, […] inclusivo, saudável, ancorado em valores democráticos, e livre de coerção”. Igualmente, em 2019, em documento denominado A Free and Open Indo-Pacific: Advancing a Shared Vision, o Departamento de Estado dos EUA cita abertamente a República Popular da China (RPC) como adversária e contrária aos valores preconizados pelo Quad. Nas menções feitas no relatório, a RPC é acusada de reprimir brutalmente minorias étnicas em Xinjiang, interferir na província do Tibete e impedir a autonomia de Hong Kong.

Além disso, ao definir critérios para a segurança marítima, Washington urge Pequim a resolver controvérsias no Mar do Sul da China “sem coerção”, classificando as reivindicações chinesas como “provocações” que estariam impedindo o acesso de membros da ASEAN a receitas de US$ 2,5 trilhões em recursos energéticos. Por último, o Quad estaria respondendo a tais agressões por meio de exercícios militares conjuntos. Portanto, a retórica destinada à RPC tem como foco a estratégia militar e estabelece as iniciativas e interesses chineses como ameaça aos países do quadrilátero e da ASEAN.

De forma similar, em 2021, ocorre a primeira cúpula do Quad. Em sua declaração oficial, o grupo ressalta a necessidade de “combater desafios à ordem marítima legal nos mares do Sul e do Leste da China”, de maneira a não citar diretamente a RPC como antagonista ao agrupamento militar. Devido à ênfase em sua estratégia militar e em segurança, esse grupo é, inclusive, chamado de “OTAN asiática”, como uma correspondente estratégica no Indo-Pacífico para a contenção da China, assim como a OTAN seria para a contenção da Rússia na Europa. Ademais, assim como os EUA, a própria OTAN como organização declara preocupação com a ascensão chinesa e seus impactos na balança de poder mundial, ressaltando a necessidade de uma organização extrarregional.

Igualmente, em 2020, o Quad Plus foi organizado pela primeira vez; uma reunião que expande o grupo para aliados estratégicos do quadrilátero original. Esta reunião envolveu conferências com parceiros extra-Quad dos EUA na Ásia-Pacífico – Coreia do Sul, Nova Zelândia e Vietnã – e de fora da região – Brasil e Israel.

Mudança de estratégia

Portanto, ocorre uma mudança bastante significativa na estratégia norte-americana de contenção da China. O que antes englobava apenas a Ásia-Pacífico, inclusive como nomenclatura estratégica, estendeu-se para o Oceano Índico como Indo-Pacífico, em um claro intento de envolver a Índia, vizinho com o qual a China possui controvérsias fronteiriças. O Comando do Pacífico – rebatizado em 30 de maio de 2018 como Comando do Indo-Pacífico (Usindopacom) – dos EUA promove esta visão com relação à Eurásia desde a Guerra Fria, quando a influência soviética passou a ser mais presente, rumo a saídas para o Índico. A atualização desta estratégia regional acompanha as preocupações de segurança de Austrália, Índia e Japão, que são antagônicas ao estabelecimento de uma preponderância chinesa na Ásia-Pacífico, pondo o Indo-Pacífico como uma estratégia concorrente de contenção.

USINDOPACOM Celebrates 75th Anniversary(Arquivo) Comandante do Usindopacom, almirante John C. Aquilino, no camp H. M. Smith, Havaí, em 13 dez. 2022 (Crédito: Anthony J. Rivera/Marinha dos EUA)

A competição estratégica China-EUA leva ao reposicionamento de parcerias na Ásia; a China a partir de sua preponderância econômica na região, e os EUA usando do seu maior poder militar, suas capacidades tecnológicas e sua posição privilegiada nas cadeias de produção. De modo a situar esta geoestratégia no território, o Quad é um agrupamento de segurança que delimita a área de atuação no Indo-Pacífico – e, portanto, um importante agrupamento de dissuasão frente à China, a partir de seus vértices:

os EUA, a partir do Havaí e de sua projeção para o Pacífico;

o Japão, a partir da sua proximidade com a Coreia e com a costa chinesa, sendo um aliado estratégico tradicional dos norte-americanos desde o Pós-Guerra;

a Austrália, além de tradicional aliado e membro de outros acordos de segurança com liderança dos EUA, como o AUKUS (com Reino Unido e EUA) e o programa de cooperação de Inteligência conhecido como Five Eyes (EUA, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia), é um país de localização estratégica para atuação no Sudeste Asiático e nos estreitos próximos ao Mar do Sul da China;

e a Índia, que possui relações ambivalentes com a China, de sucessivas aproximações e distanciamentos, a depender da conjuntura geopolítica e das tensões de fronteira na região do Himalaia.

A formação deste quadrilátero de segurança cobre toda a costa da China como área de atuação, especialmente do Comando do Indo-Pacífico, o que suscita crescentes tensões na Ásia-Pacífico em questões sensíveis, como as delimitações de mar territorial e o apoio estadunidense à independência de facto de Taiwan frente à RPC.

Em relação aos Estados Unidos, a perspectiva chinesa é de grande mudança desde o governo Trump (2017-2021), devido ao crescente antagonismo estadunidense e a medidas protecionistas, com vistas a preservar mercados frente à emergência chinesa. Em um extenso documento incorporado ao Livro Branco chinês, denominado The Facts and China’s Position on China-US Trade Friction (2018), Pequim declara que os EUA abandonaram mecanismos de consulta mútua e impuseram medidas unilaterais, protecionistas e de busca de uma hegemonia econômica com “extrema pressão”, o que a RPC considera extremamente prejudicial para a economia mundial e uma fonte de instabilidade, pois “[a crise] se tornou a maior fonte de incerteza e risco para a recuperação da economia mundial”.

A posição de vantagem econômica chinesa na Ásia-Pacífico, que tende a se consolidar ao longo da trajetória do desenvolvimento chinês, leva a uma conjuntura favorável aos seus interesses na região, o que traz o ônus da contenção estratégica para os Estados Unidos e para a guerra comercial em curso. Ao longo dos últimos anos, a tentativa de desacoplar a economia estadunidense da chinesa, assim como a de seus aliados, não mostra resultados práticos – pelo contrário, a importância da China para as economias e o comércio da região é crucial para a trajetória de desenvolvimento da Ásia-Pacífico. Entretanto, o último documento sobre estas disputas, anexado ao Livro Branco chinês, China’s Position on the China-US Economic and Trade Consultations (2019), resume a conjuntura das disputas entre as duas potências: “A China não negociará sobre os principais princípios [de cooperação e consultas]. A China não quer uma guerra comercial, mas não teme uma e lutará uma se for necessário. A posição chinesa neste assunto nunca mudou”.

Pragmatismo de Índia, Japão e Austrália

Em suma, a contenção da China na Ásia-Pacífico, a partir do século XXI, tornou-se a peça central da estratégia dos Estados Unidos para a região. Além de promoverem a guinada da política externa de Washington para o Século do Pacífico, os documentos estratégicos estadunidenses denominam China e Rússia como potências revisionistas, ou seja, que têm como objetivo expandir sua projeção de poder a partir da menor presença de Washington. É baseada nesta competição estratégica que as disputas China-EUA se dão ao longo das diferentes concepções de Ásia-Pacífico vs. Indo-Pacífico.

China America Images - Free Download on FreepikO impacto da disputa EUA-China na Ásia-Pacífico (Crédito: jm1366/Freepik)

Esta disputa influencia o posicionamento dos países da região, divididos entre os blocos que Washington ativamente busca formar para conter o poder emergente de Pequim. Entretanto, enquanto a posição dos EUA enfatiza, sobretudo, questões de segurança como o objetivo para a formação desta contenção, a RPC tem ampla vantagem econômica em sua relação com estes mesmos países, o que provoca, ao mesmo tempo, comportamentos de “pêndulo” entre as principais potências da região.

Enquanto Índia, Japão e Austrália participam ativamente de exercícios militares com as forças dos Estados Unidos, que abertamente defendem uma estratégia anti-China para a região, estes mesmos países têm na RPC seu principal parceiro comercial, o que expõe a contradição e tensão presentes na conjuntura geopolítica e geoeconômica na região.

Consequentemente, a disputa pela estratégia prevalente, a Ásia-Pacífico chinesa, de cooperação aberta e focada em ganhos econômicos e comerciais, versus o Indo-Pacífico, de contenção, protecionismo e segurança, é um elemento crucial para a definição da conjuntura geopolítica do século XXI para a Ásia. O pragmatismo da manutenção das relações comerciais com a China, enquanto a RPC traça seu desenvolvimento e aumenta a atração dos seus mercados, gera um interdito no objetivo estratégico dos Estados Unidos, que buscam afastar da China as outras potências da região, para que elas antagonizem Pequim. Entretanto, são poucas as vantagens atualmente apresentadas para a opção por esta estratégia.

 

* Lucas Gualberto do Nascimento é doutorando em Economia Política Internacional (PEPI/UFRJ), mestre em Ciências Sociais (PPGCS-Unesp) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial (GIS-UFRJ). Contato: lg.nascimento@pepi.ie.ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 20 dez. 2022. Este informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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