As Fake News como arma política nos EUA e na América Latina
Fonte: Christoph Scholz/Flickr
Por Marcos Cordeiro Pires e Beatriz Zanin de Moraes, do Latino Observatory* [Republicação]
Em seu livro póstumo Apologia da História, ou o Ofício do Historiador, publicado no ano de 1949, Marc Bloch chamava a atenção dos historiadores para o cuidado que deveriam ter com as fontes, ainda mais frente à recorrência da mentira na construção de interpretações sobre a realidade. Nesse aspecto, a mentira pode ser uma teoria conspiratória difundida pelas massas, ou uma criação do Estado para ajustar a História aos desígnios da elite então dominante.
Segundo Marc Bloch, “Em lugar da contra-verdade brutal, há a soturna manipulação: interpolações em documentos autênticos; na narração, acréscimos sobre um fundo toscamente verídico, detalhes inventados. [Interpola-se, geralmente, por interesse. Acrescenta-se, com frequência, para enfeitar.] As devastações que uma estética falaciosa exerceu sobre a historiografia antiga, ou medieval, foram com frequência denunciadas. Sua parte talvez não seja muito menor em nossa imprensa”.
Outro historiador, Eric Hobsbawm, organizou um livro intitulado A Invenção das Tradições, no qual chama a atenção para o processo de reconstrução do passado com vistas a dar coerência às percepções do Estado e da sociedade sobre a sua construção histórica e de diferenciação com relação a outros povos e sociedades. Isso pode ser observado na idealização da década de 1950 nos Estados Unidos como os “Anos Dourados”, marcados pela paz e pela prosperidade, como um contraste à conturbada década de 1960, marcada pela contracultura — um novo protagonismo da juventude e a resistência à Guerra do Vietnã. Entretanto, diferentemente das idealizações, a década de 1950 foi bastante conturbada, tal como mostrou a literatura beatnik, o macarthismo e as tensões raciais que explodiram com a luta contra a segregação racial, principalmente após a Suprema Corte julgar o caso Brown v. Board of Education, em 1954, concluindo que a segregação racial em escolas públicas era inconstitucional. Mesmo assim, a extrema direita trumpista busca resgatar este passado supostamente glorioso para mobilizar uma parcela da população branca que é saudosa desses anos “áureos”. Em contrapartida, os grupos étnicos minoritários, hoje em dia, chamam atenção para o racismo estrutural da sociedade estadunidense e buscam influenciar a cultura com vistas a reafirmar a perspectiva histórica dos segmentos marginalizados.
Chamamos atenção para o papel da mentira na história para refletirmos sobre o processo atual de disseminação de fake news. Como vimos, a mentira e a manipulação são fenômenos antigos. No século XX, elas ganharam maior dimensão com a imprensa de massa, com os grandes jornais e agências de notícias potencializando as narrativas políticas e sociais que eram convenientes para o establishment político. Dois filmes retratam bem este fenômeno: “Ace of Hole”, de 1951, dirigido por Billy Wilde e estrelado por Kirk Douglas, e o italiano “Sbatti il mostro in prima pagina”, de 1972, dirigido por Marco Bellocchio e estrelado por Gian Maria Volonté. O primeiro mostra a manipulação da imprensa no contexto de um acidente numa mina abandonada, enquanto o segundo trata da manipulação de um jornal de extrema direita no sentido de influenciar as eleições gerais no país.
Kirk Douglas e Robert Arthur, em “Ace in the Hole: The Big Carnival” (Fonte: Flickr)
Atualmente, o problema das mentiras com finalidade política ganhou uma nova dimensão, devido à expansão das redes sociais e à segmentação de usuários e conteúdos por meio da Inteligência Artificial. O poder dessas novas ferramentas foi visto no plebiscito do BREXIT, na eleição de Donald Trump, em 2016, e na eleição de Bolsonaro, em 2018.
Na perspectiva da raiz antiga e influente das fake news, um estudo da Ohio State University concluiu que as notícias falsas desempenharam um papel significativo na redução do apoio de Hillary Clinton no dia da eleição. A análise defende que em torno de 4% dos apoiadores do presidente Barack Obama em 2012 foram dissuadidos de votar em Clinton em 2016 por acreditarem em notícias falsas. Acerca da eleição de Trump, a diretora do laboratório de Mídia e Migrações da Universidade Central da Flórida, Chrysalis Wright, afirmou que, antes das eleições de 2016, as 20 notícias falsas mais acessadas tinham mais engajamento que suas verdadeiras versões. Wright explica que a base das fake news é a escolha de tópicos polêmicos que dividem a sociedade e são objeto de intensos debates na sociedade dos Estados Unidos, como porte de armas, relações raciais, questões de imigração, com o objetivo de dividir a população. Posteriormente, em 2020, a força das fake news foi tamanha que colocou em xeque a democracia americana com a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, instigada por Donald Trump nas redes sociais.
Em território latino, foi alarmante a preocupação com as fake news no Brasil no ano de 2018 e seu contexto de eleições presidenciais, nas quais Jair Bolsonaro concorria. O político brasileiro reproduzia e comentava boa parte dos discursos de Trump, inclusive a contraditória hostilidade a categorizar notícias como falsas. À época, o principal partido de oposição, Partido dos Trabalhadores (PT), enviou uma denúncia ao Tribunal Superior Eleitoral contra informações falsas que estavam sendo divulgadas acerca do candidato Fernando Haddad. Segundo estudos da organização Avaaz, 89,77% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram que as notícias eram verdade. Nisso, ficaram evidentes as ligações entre os grupos de extrema direita no Brasil com o estrategista trumpista Steve Bannon e com agências de consultoria para a manipulação de algoritmos, como a Cambridge Analytica.
Ainda, é importante ressaltar que o Brasil não é o único país da América afetado pela onda de desinformação: a América Latina como um todo enfrenta esse problema, cuja matriz é a extrema direita dos Estados Unidos. Um exemplo foi o Chile, em 2022, no contexto da derrota do novo texto constitucional, que foi atribuída em grande parte à massiva campanha de desinformação nas redes sociais.
Há um aspecto específico a ser considerado nos Estados Unidos, que é a manipulação dos eleitores latinos/hispânicos por meio de fake news em castelhano. De acordo com o jornal The Washington Post, antes da eleição presidencial americana de 2020 vídeos e notícias em espanhol que chamavam Joe Biden de comunista circularam com frequência. Relatório recente da empresa de dados Catalist revelou que o número de latinos, cujos votos foram no Partido Republicano, aumentou 31% de 2016 a 2020, representando um décimo do eleitorado. Após a eleição, parte da mídia em espanhol disseminou fortemente a mentira de que Biden roubou a eleição — tipo de fake news que atualmente, após as eleições de 2022 e a vitória do candidato Lula, também circulam no Brasil —, além de compartilhar, no auge da pandemia, avisos de que as vacinas contra o coronavírus eram perigosas.
Vale comparar algumas fake news que circularam nos Estados Unidos às vistas na América Latina.
Eleições e democracia
Após a derrota eleitoral de 2020, Donald Trump fez alegações de fraude na contagem dos votos. Porém, numerosas recontagens, revisões e auditorias afirmaram que os resultados das eleições presidenciais de 2020 são legítimos.
Enquanto isso, no Brasil eleitores de Bolsonaro alegaram fraude nas eleições de 2022 após derrota do candidato, mas tanto o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério da Defesa negaram. Em documento de 63 páginas divulgado pela Defesa, verifica-se que os dados dos boletins de urna impressos ao final da votação conferem com os dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Vacinação e COVID-19
Durante a pandemia da COVID-19, várias informações falsas sobre vacinação foram vistas. Nos Estados Unidos, organizações antivacinas estavam espalhando um estudo militar enganoso, no qual se afirmava que a vacina contra a gripe aumenta o risco de contrair COVID-19. O estudo não diz isso, e o Sistema de Saúde Militar orientou as pessoas a se vacinarem contra a gripe. No Brasil, a mesma notícia falsa foi divulgada, utilizando um artigo de 2017, anterior ao coronavírus, cujo objetivo nem mesmo era falar sobre complicações da vacina contra a Influenza.
Ademais, o pânico era estimulado, ao associar causas de morte ao coronavírus. Como exemplo, postagens alegavam que o cantor norte-americano Jake Flint morreu por causa da vacina da COVID-19, quando, na verdade, recebeu a segunda dose mais de um ano antes de sua morte, e seu representante afirmou que essa “não estava relacionada de forma alguma” com a vacina. Em território latino, negacionistas vincularam a morte de seis médicos canadenses à aplicação da vacina, mas três deles morreram de câncer e, apesar do ocorrido com os outros três não ter sido divulgado, famílias negaram relação erroneamente propagada.
Ameaça comunista
Como mencionado anteriormente, uma técnica de enfraquecimento da oposição que se mostrou eficaz foi a disseminação de notícias falsas. Dentre essas, existem boatos conservadores sobre “ameaças comunistas” nos EUA. No entanto, estudiosos desmentiram afirmação da comentarista conservadora Monica Crowley, da Fox News, de que “os comunistas estrangeiros controlam as principais instituições da vida americana há décadas”. No Brasil, provou-se que falas do candidato Luiz Inácio Lula da Silva foram tiradas de contexto para espalhar boatos de que ele deseja implantar um regime comunista no Brasil.
Mudanças climáticas
Nos últimos anos, diversas publicações têm vinculado a pauta das mudanças climáticas ao comunismo, como se fosse “uma forma de organizações comunistas lucrarem, ou se promoverem”. Vários estudos científicos mostram, no entanto, que associar a pauta política é divulgar informação falsa, já que o aquecimento global nem mesmo é recente. A Nasa mostrou que a temperatura da Terra aumentou 1,18°C desde 1800, e a causa é a intervenção humana — especialmente a liberação de dióxido de carbono na atmosfera. Também é possível entender os aumentos e os agentes pelos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), sendo que o último relatório evidencia mudanças desde 1980.
Tentando conter a onda de fake news
O crescimento da rede de notícias falsas ainda é preocupante nos EUA, continuando a ser mapeado, porém análise do Pew Research Center mostrou que o uso de redes sociais, aplicativos e outras plataformas digitais pelos latinos aumentou mais do que o da população geral dos EUA, sendo a Colômbia o segundo maior público das mídias sociais; o Brasil, o terceiro maior; e México e Argentina estando entre os dez maiores. Tais dados revelam o porquê de os estudos sobre esse fenômeno na América Latina terem se tornado mais urgentes, e as medidas contra as fake news terem se intensificado.
Os Estados Unidos contam com plataformas como a FactCheck para ajudar a população, inclusive a grande parcela latina do país, uma vez que traduz a maioria das suas páginas para o espanhol. E, já que muitas notícias em inglês são traduzidas e espalhadas para outros países (e vice-versa), Facebook e Google se uniram na criação e manutenção do Comprova.
Tendo o Facebook sido apontado como a plataforma onde as notícias falsas se espalham com maior velocidade, passou a utilizar organizações terceirizadas de verificação de fatos no combate à desinformação em um ritmo mais rápido, além de facilitar a denúncia de notícias falsas pelos usuários — que são sinalizadas ao público como falsas após a verificação. O Instagram, ao ter uma publicação apontada como falsa, remove-a da página principal e a oculta das hashtags usadas, assim como sinaliza para o público e para o autor, oferecendo informações sobre onde verificar os fatos.
Na contramão desse processo, cabe destacar os posicionamentos do novo proprietário da rede Twitter, Elon Musk, que já declarou ser favorável à supressão de quaisquer medidas que venham a controlar o fluxo de informações na plataforma, inclusive — ou principalmente — as fake news.
Diversas outras plataformas também adotaram medidas contra as fake news, mas estudiosos afirmam que promover o pensamento crítico e a alfabetização digital é a única solução plausível de longo prazo para esse dilema de desinformação na América Latina e no mundo.
Para auxiliar no combate contra esse fenômeno de desinformação tão prejudicial à sociedade, cada indivíduo pode exercer seu papel nessa luta ao denunciar notícias falsas e compartilhar as verdadeiras fontes, incentivando a análise crítica de cada informação recebida.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org. Beatriz Zanin de Moraes é bolsista de Iniciação Científica e graduanda em Relações Internacionais pela UNESP de Marília. Contato: beatrizzm2@gmail.com.
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