Lula em Washington: entre compromisso político e autonomia
Encontro da delegação brasileira nos EUA com o senador Bernie Sanders (I-VT) (Crédito: Ricardo Stuckert/RP)
Qual agenda Lula encontrará em Washington? Quais as possibilidades para o atual governo brasileiro?
Por Luciana Wietchikoski e Lívia Peres Milani* [Seleção OPEU]
No próximo dia 10, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontrará na Casa Branca com seu homólogo estadunidense, Joe Biden. Em um contexto de retomada dos elementos de uma política externa voltada à promoção das relações com seus vizinhos, com a África e coalizões como, por exemplo, os Brics, essa viagem aos Estados Unidos sinaliza a propensão do governo brasileiro em também reiniciar possíveis compromissos políticos com a potência ao norte. Contudo, apesar da atual assertividade de Lula e da própria disposição pública de Biden para o diálogo, essa relação tende a ser marcada pela influência da potência, assim como por interesses e percepções de mundo divergentes. Mas afinal, qual agenda Lula provavelmente encontrará em Washington? Quais possibilidades e limites para o atual governo brasileiro?
Consideramos quatro temas especialmente relevantes para os Estados Unidos nas relações políticas com o Brasil hoje: democracia, meio ambiente, América Latina e China. Os temas do meio ambiente e do fortalecimento da democracia (como pensada pelos Estados Unidos) são provavelmente aqueles nos quais existem maiores possibilidades de diálogo, enquanto a proximidade entre China e Brasil pode gerar importantes desconfianças. Já a priorização concedida pelo Brasil à América do Sul traz complexidade à relação, pois os Estados Unidos, apesar de não confrontarem explicitamente a liderança regional brasileira, buscam moldá-la.
A democracia é um tema no qual as políticas internas de ambos os países se entrelaçam: há uma relação muito próxima entre as extremas direitas dos dois países e o Brasil tem um papel importante para os interesses globais estadunidenses na promoção do liberalismo. Em ambos os países os movimentos extremistas de direita não estão derrotados e põem em risco a democracia liberal burguesa. Desse modo, os Estados Unidos vêm demonstrando apoio ao governo brasileiro, como ocorreu com o instantâneo reconhecimento da vitória de Lula em 30 de outubro de 2022 e na rápida manifestação quando o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional foram invadidos por extremistas em 8 de janeiro de 2023. Lula recebeu essas manifestações e também já mostrou interesse em uma articulação junto aos progressistas dos Estados Unidos para o fortalecimento das instituições democráticas representativas, como afirmou em entrevista à jornalista Natuza Neri. Com essa convergência, atores políticos progressistas dos dois países poderiam trabalhar em conjunto.
Contudo, é importante frisar, como destacado por William Robinson (2013), a restrita visão presente nas políticas de “promoção da democracia” dos Estados Unidos e sua vinculação à “promoção do neoliberalismo”. O pacote, composto por essas duas agendas, visa a alternância de poder, a realização de eleições periódicas, porém implica em participação limitada das massas e no favorecimento das frações da elite local inclinadas tanto à liberalização financeira como comercial. Essa concepção, portanto, contradiz aquela já expressa por Lula, segundo a qual, no Brasil, democracia relaciona-se também com o combate à fome e às desigualdades. Como reiterado em seu discurso de posse no parlatório, “tamanho abismo social é um obstáculo à construção de uma sociedade verdadeiramente justa, democrática e de uma economia próspera e moderna”. Assim, embora existam interesses convergentes em enfraquecer os grupos nacionais de extrema direita, é importante ter clareza sobre os limites e contradições da agenda de “promoção da democracia” pelos Estados Unidos.
Além da democracia, a preservação do meio-ambiente é outro tema central. Como grande parte da maior floresta tropical do mundo se localiza em território nacional, o Brasil é visto pelos Estados Unidos como indispensável nesse assunto prioritário no governo Biden. Nesse contexto, foi simbólica e sinalizadora a designação da primeira indígena a exercer um cargo no primeiro escalão do governo, a Secretária do Interior Deb Haaland, como chefe da delegação enviada para a posse de Lula. A preservação do meio-ambiente também é relevante para o Brasil, onde movimentos sociais ambientalistas e articulações dos povos indígenas participaram ativamente da frente ampla que elegeu Lula, compondo agora a liderança no Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, bem como no recém criado Ministério dos Povos Indígenas.
A mobilização pela proteção do meio-ambiente aglutina uma gama de atores muito diversos no Brasil, desde aqueles com uma visão de mundo mais liberal, até grupos com posições ecossocialistas e movimentos indígenas anticapitalistas. Nesse enquadramento, a cooperação com a potência hegemônica inclina-se a convergir com os interesses dos grupos mais ao centro do espectro político, podendo fortalecer posições insuficientes, voltadas a superar a crise ambiental a partir e por meio de um modelo baseado na acumulação ilimitada, ignorando os limites do planeta e, portanto, silenciando a “insustentabilidade do modo de produção vigente”.
Com relação à busca brasileira de retomar o regionalismo latino-americano e, especialmente sul-americano, não são esperadas tentativas explícitas de bloqueio pelo governo dos Estados Unidos, contudo é provável a tentativa de moldar essa iniciativa. Nos dois primeiros mandatos de Lula, entre as estratégias estadunidenses para lidar com o maior protagonismo do Brasil estiveram a construção de uma retórica voltada a acomodar essa atuação aos interesses e valores liberais – geralmente enfatizados na defesa da democracia e dos direitos humanos – ou associar o Brasil as iniciativas regionais estadunidenses como, por exemplo, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, a Minustah. Essa agenda também repercutia na forma como os Estados Unidos pensavam o papel do Brasil na América Latina, entendendo que o país deveria moderar tendências radicais nos países vizinhos.
Em seu terceiro mandato, cumprindo a orientação de seu discurso de posse – quando declarou a América Latina e, em especial, a América do Sul como regiões prioritárias –, Lula já visitou a Argentina e o Uruguai onde discutiu as relações bilaterais com esses países bem como os rumos do Mercosul e do reingresso do Brasil na Comunidade dos Estados Latinos e Caribenhos (Celac). Em diversos momentos dessa viagem, sobretudo quando abordou o fortalecimento da integração regional, o presidente brasileiro destacou a necessidade do desenvolvimento de maior autonomia da região.
Cerimônia de posse do presidente Lula, no Palácio do Planalto, em Brasília, junto com representantes do povo, que passaram a faixa presidencial para ele, em 1º jan. 2023 (Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil/WikiMedia Commons)
Contudo, essa autonomia perpassa diretamente pela relação com a grande potência. Tradicional presença e orientadora dos rumos políticos, sociais e econômicos da América Latina, toda e qualquer alteração dessa dinâmica é vista pelos Estados Unidos como contrária aos seus interesses de segurança nacional. Portanto, estes processos de integração nos moldes de maior autonomia inclinam a ser vistos com receio por Washington, especialmente se incluírem Venezuela e Nicarágua. Os Estados Unidos tendem a usar essa mesma estratégia de décadas passadas e o Brasil precisará lidar com as demandas estadunidenses, agora em um contexto de disputa regional envolvendo a presença chinesa.
As questões envolvendo a China – e também a Rússia – devem gerar os desentendimentos mais explícitos. Nos seis anos desde o golpe que depôs Dilma Rousseff, houve uma intensificação das rivalidades entre Rússia, China e Estados Unidos, inclusive no espaço latino-americano. Para exemplificar, o último discurso da General Laura Richardson, chefe do Comando Sul, foi organizado em torno da ideia da China como principal competidor estratégico na região, seguido pela Rússia. Richardson ainda manifestou o interesse de que países da região enviassem armamento para a Ucrânia, envolvendo-se indiretamente na guerra. Dias depois, tornou-se pública a recusa colombiana a essa proposta, e, em seguida, foi negado pedido semelhante feito pela Alemanha ao Brasil. Com o contexto de rivalidades mais acentuadas entre grandes potências, em determinados momentos, os Estados Unidos podem demandar um posicionamento claro de alinhamento dos países do Sul Global, o que não condiz com a concepção de interesses nacionais proeminente no governo brasileiro.
As relações com a China tornaram-se indispensáveis para o Brasil, por ser o primeiro parceiro comercial e importante fonte de investimentos. Com Lula, essa relação tende a ganhar também uma conotação política e estratégica, como ficou claro em seu discurso na Celac, quando afirmou que, no concernente às questões globais, “não queremos importar para a região rivalidades”, mencionando as contribuições da América Latina para a “construção coletiva da multipolaridade”. Assim, as relações com as potências emergentes passam a ser vistas pelo Brasil também de um ponto de vista estratégico, como parte de uma demanda pela desconcentração de poder no âmbito global. Observando que o governo dos Estados Unidos pretende dar continuidade à sua primazia e o Brasil aponta para um mundo com múltiplos centros, entre eles a China, há uma divergência clara.
A partir das quatro agendas ressaltadas, entendemos haver espaço para diálogo e cooperação com os Estados Unidos, com possíveis resultados importantes, especialmente no combate à extrema direita e às mudanças climáticas. Contudo, é preciso cautela, pois os Estados Unidos possuem uma agenda clara e entendem tais temas a partir de uma perspectiva fortemente liberal, o que pode influenciar as políticas públicas brasileiras, incentivando um deslocamento ao centro político. Por outro lado, em política exterior, também é necessário precaução e atenção às contradições, para que os compromissos políticos com os Estados Unidos não impliquem em cessão de autonomia e imposição de limites à agenda de construção da multipolaridade.
* Luciana Wietchikoski é professora no curso de Relações Internacionais da Unisinos e pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC.
Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, no âmbito do projeto Capes-Print e pesquisadora do INCT-INEU.
* Publicado originalmente na edição on-line do Le Monde Diplomatique Brasil, em 7 fev. 2023. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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