‘Os dois partidos tendem a uma política externa muito similar’, analisa Camila Vidal
Por Marcus Tavares*
Camila Feix Vidal é bacharel em Relações Internacionais pela Florida International University, mestre e doutora em Ciência Política pela UFRGS. É professora adjunta no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) e no curso de Graduação em Relações Internacionais. Entre tantas atividades, Camila tem pesquisado sobre o sistema eleitoral norte-americano, em especial as dinâmicas partidárias, abordado em sua tese de Doutorado e também no capítulo “O Partido Democrata e seus descontentes”, publicado no livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas (Editora Unesp, 2021), organizado por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian.
É sobre este e outros temas que Camila conversa com o OPEU Entrevista.
OPEU: Nós passamos por momentos bem dinâmicos. Com tantos fatos acontecendo, tanto no âmbito nacional americano como também no internacional, imagino o quão desafiador e surpreendente deve ser se debruçar sobre o assunto. Inclusive em 2021 foi publicado um artigo seu que aborda a polarização política e partidária nos EUA. Como você tem entendido esse momento?
Esse artigo publicado na Opinião Pública é, na realidade, parte ainda da minha tese defendida em 2016 e que eu incorporei a eleição seguinte depois. Então, ele trata, sim, do contexto de polarização partidária, mas entendendo os partidos como organizações bastante abrangentes que incluem também setores da sociedade civil. O que vai ao encontro também do capítulo do livro que eu escrevi sobre o Partido Democrata. No caso da polarização partidária estadunidense, a gente nota que houve todo um esforço de grupos considerados como a base do partido político. Grupos que atuam na sociedade civil, que fazem demandas e que atuam dentro do partido mesmo. Estão lá presentes na escolha dos candidatos, nas primárias e mesmo na escrita das plataformas, nas plataformas nacionais dos partidos políticos. Então, eles atuam dentro do partido de fato. Essa polarização se inicia nessa base dos partidos políticos.
No caso desse artigo em específico, eu tratei de algumas categorias, analisando, em um determinado período histórico, como os partidos políticos lá, o Partido Democrata e o Partido Republicano, se colocavam dentro de algumas temáticas. Então, elenquei algumas temáticas e resumi algumas delas dentro de categorias. Tratei de economia, de Welfare State (Estado de Bem-Estar Social), de política externa e de questões sociais, que seriam aquelas questões mais do âmbito supostamente “privado”, como a questão do aborto, a questão de união homoafetiva, enfim. E daí fiz essas comparações, esses gráficos… E o mais interessante é que a gente nota que a polarização não ocorre em todas essas categorias. Ela não ocorreu, por exemplo, no âmbito da política externa – os dois partidos tendem a ter uma política externa bastante similar. Essa polarização partidária ocorre, sim, especificamente, no âmbito dessas questões sociais. É aí que eles se diferenciam.
OPEU: Acho muito interessante seu trabalho e também imagino que, para quem acompanha de longe todo o processo eleitoral dos Estados Unidos, fica a sensação de que os partidos, tanto Democrata quanto Republicano, apresentam uma forte unidade. E quando a gente olha com mais atenção, a gente vê que não é bem assim. Inclusive você cita o que chama de “uma disputa pela alma do Partido Democrata” nas eleições de 2020. Você pode dar um spoiler do que os leitores encontrarão no capítulo que você escreveu a respeito dessa disputa interna do partido? Que é, aliás, superinteressante, porque você passa pela conceitualização do que é partido político.
Exato, Marcus. Nesse capítulo, eu trato especificamente do Partido Democrata, ou, mais especificamente, do “Partido Democrata e seus descontentes”. E eu tentei mapear como que se apresentava esse partido na eleição de 2020. Lembrando que, nessa eleição, se a gente fosse ler jornais, revistas, enfim, durante todo aquele ano de 2020, ia ver que, a todo momento, era enfatizado o quanto que o Partido Democrata estava caminhando para uma esquerda do espectro político. A gente vai ver como ele está empurrado para esquerda, e eu quis entender isso. E daí, eu utilizei, de fato, todo esse arcabouço teórico que compreende o partido político, com base em uma análise mais abrangente, descentralizada, portanto, menos hierárquica, levando em conta, também, esses grupos da sociedade civil. Como eu disse, eles atuam dentro do partido político, seja na escolha dos candidatos, seja na própria escrita da plataforma, que é o documento oficial do partido, colocando ali quais serão suas políticas, sua agenda, enfim, uma vez eleito.
Então, eu uso esse arcabouço teórico, que a gente chama de partido Network, e trato, inclusive, de um autor em específico que me ajuda bastante, que é o Daniel DiSalvo. O trabalho dele é sobre facções dentro de partidos, intrapartidárias. E eu busquei entender o Partido Democrata partindo dessa leitura do DiSalvo, buscando compreender que facções são essas que atuaram na eleição de 2020 para que fosse caracterizado como um partido que estava caminhando para a esquerda. Eles são chamados de outsiders, os que estão supostamente de fora do partido político, mas, na realidade, dentro do partido. Dentro dessa teoria e dessa abordagem, a gente entende que também faz parte do partido político.
Eu tentei, sem querer dar muito spoiler, apresentar algumas das facções que atuaram diretamente dentro do Partido Democrata para levar suas demandas, levar sua agenda e que essa agenda, que essas demandas, constassem inclusive da plataforma do Partido Democrata. Então, de fato, eles atuaram desde fazendo eleitores, fazendo ligação para eleitores, pedindo para irem lá votar, fazendo campanha para determinados congressistas, mesmo para o Joe Biden, e atuaram também durante a escrita da plataforma. E daí, desses, a gente tem alguns em específico, que foram bastante atuantes dentro do partido: o Sunrise Movement, no âmbito mais ambiental; o Black Lives Matter – que criou uma frente só para tratar das eleições em específico, que é o What Matters 2020, mais aí, claro, na questão de raça; o Justice Democrats, que era uma facção lá da época de 2017 com o [senador e ex-pré-candidato à Presidência Bernie] Sanders – da eleição de 2016, mas que se constitui em 2017 com o Sanders. E o Occupy Democrats, que, como o nome já implica, é uma releitura do Occupy Wallstreet, mas, daí como o nome já diz, trata-se de Ocupar o Partido Democrata. Então, é uma tentativa desses grupos da sociedade civil de se fazerem valer do partido político.
Lembrando que, nos Estados Unidos, pelo fato de dois partidos políticos dominarem o cenário nacional, eles não têm perspectiva de atuar num terceiro partido. Então, a gente não teria um terceiro, um quarto, um quinto partido. Um partido mais ambiental, uma espécie de Partido Verde, ou um partido mais, enfim, para pautas progressistas dentro do trabalho e tudo mais. Então, qual é o espaço que eles têm? Bom, tem que atuar num desses dois partidos, é o Partido Democrata, ou o Partido Republicano. Em um Partido Republicano já dominado por facções bastante conservadoras, seria impossível. Então, a ideia foi: “vamos para o Partido Democrata”. Que foi isso que fizeram.
OPEU: Achei bem elucidativo o desmembramento que você faz no âmbito histórico. Às vezes, nós temos a perspectiva de que os partidos são sempre iguais e não mudam. Quando não é bem assim. E você trabalha essa perspectiva de termos os partidos como elementos em constante mutação, adequando-se aos desafios do cenário político. Isso fica muito evidente na perspectiva histórica que você traz no texto e na comparação entre o momento atual e momentos do passado, que resultaram em mudanças ideológicas tanto no Partido Democrata como também no Republicano. Nesse sentido, é possível enxergar o presidente Joe Biden cumprindo uma função de peça de transição entre ideologias dentro do Partido Democrata? Dentro de uma mutação do que foram as ideologias que tiveram maior peso no partido nas últimas décadas para uma perspectiva mais progressista dentro do Partido Democrata?
Sim. Excelente, Marcos. Na realidade, isso tem sido algo levantado por alguns autores, recorrentemente. Como que o Biden poderia representar essa figura de transição? Porque ele, em si, é uma figura do establishment, né? Ele é uma figura dentro do Partido Democrata que não representa essas forças, esses grupos que atuaram durante sua eleição, esses grupos que eu acabei de citar. Ele não é uma figura conhecida por pautas, ou por agendas progressistas. Por isso, a figura do Sanders, por exemplo. Ele, sim, é o responsável por representar essa facção mais progressista. Inclusive a gente tem ali, dentro do Partido Democrata, um caucus chamado Democratic Socialists of America, que é uma organização liderada pelo Bernie Sanders.
Biden poderia ser entendido como essa figura de transição, porque, ao mesmo tempo que não representa essas forças progressistas dentro do Partido Democrata, ele abriu espaço para que elas atuassem durante a campanha e, de fato, que elas inserissem pautas da sua agenda dentro da plataforma e, portanto, dentro das políticas e da agenda que Biden pretende desenvolver. Então, por isso, nesse momento, ainda que ele tenha incorporado algumas dessas agendas impostas por esses grupos, ele de fato não é uma figura que representa essa figura progressista desses grupos. Mas é uma figura que poderia ser essa figura de transição. Lembrando que a gente está vindo de um Partido Democrata que, a partir da década de 1990, se afastou muito da agenda progressista… Ali, com o [Bill] Clinton, a gente teve um Partido Democrata que, no âmbito econômico, do Bem-Estar Social, enfim, foi muito próximo e se aliou ao Partido Republicano no âmbito dessa agenda. Com Obama, houve algumas poucas mudanças, mas assim nada também que possa ser considerado um governo extremamente progressista. Agora, então, Biden poderia ser essa figura de transição.
Quem sabe numa próxima eleição, daí sim, alguém representando esses grupos, essas facções dentro do partido. Também, dentro do partido, a gente tem visto a ascensão de lideranças que atuam também nesses grupos. Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, é alguém que a gente precisa observar. Porque ela já está lá dentro do partido formal, ela foi eleita, está lá, e ela transita por esses grupos. Tem Rashida Tlaib, Ilhan Omar… Várias dessas lideranças que estão adentrando formalmente nesses espaços de poder.
(Da esq. para dir.) As representantes do Congresso americano Ilhan Omar (D-MN), Rashida Tlaib (D-MI), Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY) e Ayanna Pressley (D-MA), em 23 out. 2020, em Washington, D.C. (Crédito: Site oficial Ilhan Omar)
OPEU: Enquanto você ia falando, fui me lembrando que, no texto, você mostra que, embora existam vários grupos atuando dentro do partido e divergindo e brigando por espaço, no momento em que eles fecharam o nome, eles conseguiram trabalhar de maneira ordenada e unida. Algo que, olhando para o cenário político brasileiro, a gente acha estranho. E também acho que dá para traçar um paralelo com a aproximação entre os próprios partidos. E é algo que você traz no seu texto quando afirma que, em momentos históricos, as pautas dos dois partidos meio que convergiram, não é? Com algumas diferenças, mas sem grandes diferenças.
Com relação a essa união que tu comentaste, a gente precisa também lembrar que muita da cola que uniu esses grupos e fez eles defenderem o Partido Democrata foi porque eles, primeiro, não tinham um terceiro partido possível que estivesse em um nível de competição com os partidos Republicano e Democrata. Mas também porque eles se uniram para não permitir uma reeleição do Trump. Então, o objetivo era esse: “ó, a gente precisa agora se fazer representar dentro do Partido Democrata, mas a gente precisa que o Partido Democrata ganhe, e não o Trump. Que ele não se reeleja”. Então, é só a gente lembrar o que aconteceu em 2016. A gente não viu toda essa movimentação, e a Hillary Clinton, de fato, não teve apoio de grupos similares como o Biden teve agora. Mas não se pensava, talvez, naquele momento, que seria possível, de fato, Donald Trump ser eleito, e ele foi. Então, me parece que, agora, esses grupos, apesar das diferenças em termos de abordagens, resolveram se unir. Tendo como cola, realmente, algo em comum: a rejeição ao governo Trump e tentar barrar sua reeleição. Coisa que eu não sei se se repetiria, caso não fosse o Trump, entende?
OPEU: E, dentro do que você acabou citando a respeito dessa união contra o trumpismo e tudo mais, como você tem visto a atuação desde a posse do Biden? Esse ano teremos eleições legislativas e, até o momento, as pesquisas mostram o índice de desaprovação muito grande ao governo do Biden. Tentando fugir daquele exercício de futurologia, mas tentando pensar num futuro próximo, você entende ser possível o quadro como acelerador para que o Partido Democrata acabe aderindo de vez a uma ideologia mais progressista, já que o fenômeno trumpista continua bem vivo?
Sim, é isso que eu ia comentar. Na realidade, não foi porque o Trump não foi reeleito que acabou o trumpismo. Inclusive ele teve um número de votos muito expressivo. Então, uma parcela da população muito expressiva ainda apoia, mais do que ele, uma determinada agenda que é conservadora, que é representativa, atualmente, no Partido Republicano. Com relação a Biden, fica uma situação muito delicada. Porque, de fato, ele, como eu disse, foi alguém que permitiu que esses grupos atuassem durante a sua campanha, mas ele não é uma figura que coordena essas vertentes progressistas. Está ali tentando conversar com todas as facções intrapartidárias: aqueles da ala do establishment e aqueles mais ligados ao Sanders, com uma pauta mais socialista, mais progressista. Então, é claro que ele, ao tentar agradar a ambos os lados, às vezes acaba não agradando a ninguém. E algumas questões que estão presentes na plataforma do Biden foram imposições, demandas desses que atuaram na escrita da plataforma. É claro que ele ainda não conseguiu colocar em prática, então também deixa todos esses grupos que atuaram tanto para a eleição dele frustrados.
Mas a gente não pode também esquecer que, de fato, seria, talvez, até injusto de esperar dele algo que não é dele. Ele não representa essas facções, ele deixou, naquele momento, que atuassem, e acho que, em alguns momentos, ele vem tentando colocar um pouco essas pautas. Mas eu acho que, para o futuro, pelo que a gente está vendo, a força desses grupos e a atuação deles realmente dentro da sociedade civil, a eleição de várias dessas lideranças para o Congresso, por exemplo… Acho que o caminho é, de fato, eles irem ocupando um espaço, uma fatia cada vez maior dentro do partido.
OPEU: Perfeito. Para as pessoas que têm interesse em realizar pesquisas sobre o tema, você teria alguma dica? Além, claro, de ler seu capítulo no livro.
Eu diria que a gente precisa ter uma leitura crítica. Inclusive dentro da teoria. Não receber abordagens teórica prontas e que são representativas de um determinado espaço geográfico, econômico, social, político e importar para outra realidade, para nossa realidade. Então, acho que esse é o primeiro ponto. A gente, por mais que se utilize de autores, enfim, e de abordagens feitas nos Estados Unidos, a gente precisa ter o nosso olhar. E esse olhar precisa ser crítico. Então, esse é um primeiro ponto. Por isso que a própria ideia de partido network é algo ainda muito ligado a uma determinada universidade nos Estados Unidos, é algo que não está ainda dentro dos Estados Unidos. Mas vem ganhando cada vez mais espaço, porque tem sido uma das únicas, se não a única, abordagem a levar em consideração esse papel desses grupos. E quando a gente fala em polarização partidária, quando a gente fala do Partido Democrata indo para a esquerda, ou do Partido Republicano indo para a direita, o que a gente vai ver é que esse movimento é feito por esses grupos quando adentram no partido. A gente precisa levar isso em consideração e entender, de um modo um pouco mais holístico, mais aberto, mais descentralizado, do que entender simplesmente aquele lado do Executivo, aquele lado do Legislativo. Existe toda uma base que sustenta eles. A gente tem que perceber essa base, né? Acho que essa seria a dica.
OPEU: Só para fechar, nós, do OPEU, queremos saber se você teria alguma pesquisa no forno para ficarmos atentos para os próximos meses.
Eu tenho algumas. Ultimamente, venho trabalhando um pouco mais o papel de instituições estadunidenses, tanto no âmbito militar, quanto no âmbito econômico – instituições que preconizam uma ideia neoliberalismo. E a atuação dessas instituições dentro da América Latina. As parcerias que eles fazem com institutos liberais, por exemplo, aqui no Brasil. As parcerias que são feitas com escolas e com instituições militares. Então, eu terei um artigo em breve, está na reta final, é só questão de tradução e tudo mais, para a revista. Mas que vai tratar disso e, em específico, do Comando Sul, que é essa instituição estadunidense, mas que opera dentro da América Latina. E eu venho tratando também bastante, junto com alguns orientandos, da Atlas Network que é esse grande guarda-chuva em termos de instituto, nos Estados Unidos, que trata de divulgar o ideário neoliberal em outros institutos ao redor do mundo.
OPEU: Muita coisa boa pela frente. Fiquemos de olho! Quero agradecer por seu tempo e disposição em compartilhar seu conhecimento sobre o tema com a gente e desejar muito sucesso para você.
Eu que agradeço, Marcus. Foi um prazer essa conversa. É sempre bom falar do que a gente está pesquisando, eu adoro, então, eu que agradeço pela possibilidade. Fico à disposição para o que precisarem.
* Marcus Tavares é bolsista de Iniciação Científica (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) do OPEU, mestrando em Economia Política Internacional no Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI/UFRJ), além de bacharel em Relações Internacionais e graduando em Direito, ambos os cursos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: marcus.tavares1987@yahoo.com.br.
** Primeira versão recebida em 16 jun. 2022. Revisão e edição final por Tatiana Teixeira. Esta entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook
e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.