Felipe Loureiro ao OPEU: ‘derrota da extrema direita não significa que será enfraquecida’
Crédito da arte: Natália Constantino (bolsista de IC do OPEU, INCT-INEU/PIBIC-CNPq)
Por Lucas Amorim*
Felipe Loureiro é historiador, mestre e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Fez seu “período sanduíche” na Universidade de Londres durante o doutorado e estágios pós-doutorais nas universidades Brown e George Washington, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor associado no Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI-USP), onde obteve o título de livre-docente.
Também é coordenador do Observatório da Democracia no Mundo (ODEC-USP), vice-coordenador da Área Temática de Análise de Política Externa da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Labmundi).
O professor tem pesquisa nas áreas de História das Relações Internacionais, com foco nas relações entre Brasil e Estados Unidos durante a Guerra Fria, especialmente, o governo João Goulart e o período da ditadura militar brasileira; e na história da Política Externa Brasileira, com foco na Política Externa Independente (PEI), na política externa do regime militar e na política externa do governo Jair Bolsonaro.
Nesta edição do OPEU Entrevista, ele fala, entre outros temas, de questões metodológicas, da interdisciplinaridade no campo das Relações Internacionais e de sua atividade acadêmica recente, em especial a publicação do capítulo “A eleição contestada: a disputa presidencial de 2020 e a crise da democracia norte-americana”, no livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas. Organizada por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian, a obra foi publicada pela Editora Unesp, em 2022.
OPEU: Diversos pesquisadores atuantes na área das Relações Internacionais são egressos, como o sr., de cursos de História. Como sua trajetória na Academia levou-o a ser professor de RI? Como você enxerga a contribuição dos historiadores para o campo?
A área de Relações Internacionais, como eu enxergo, é uma área essencialmente multidisciplinar e que tende para a interdisciplinaridade. Então, é muito comum, e eu diria que é saudável, que egressos de outras áreas das ciências humanas e ciências sociais, como História, Ciência Política, Sociologia, Antropologia, Economia, ou mesmo Literatura, façam parte da área de Relações Internacionais e enxerguem seus objetos como objetos que têm natureza internacional. Meu caminho foi exatamente esse. Meu doutorado foi sobre política econômica nos governos Jânio Quadros e João Goulart. Eu trabalhei com classes sociais, grupos de interesse e investiguei como empresários e trabalhadores influenciaram os rumos da política econômica no início dos anos 1960. Ao fazer esse trabalho, ficou muito claro para mim que eu não poderia entender a política econômica do período e, consequentemente, a instabilidade econômica que contribuiu para o golpe militar de 1964, sem olhar para os atores internacionais e entender a inserção do Brasil junto aos seus vizinhos, junto a organismos internacionais, como no caso do FMI [Fundo Monetário Internacional], mas, principalmente, a interação com o governo norte-americano. Esse foi o caminho que me levou, fundamentalmente, para a área de Relações Internacionais.
OPEU: Seu capítulo no livro De Trump a Biden discorre sobre o processo eleitoral dos Estados Unidos em 2020 e sua posterior contestação por parte de Donald Trump. A eleição do democrata Joe Biden, um candidato que defende as instituições, não bastou para pôr fim às ameaças à democracia nos Estados Unidos. Trump é um dos principais cotados para ser o candidato republicano à Presidência em 2024. Que lições podem ser extraídas dos acontecimentos recentes nos EUA?
Eu acho que a principal lição das eleições de 2020 e do trumpismo é que uma derrota eleitoral da extrema direita para um candidato que respeita as regras, mesmo em uma democracia tão antiga quanto os Estados Unidos (em que pese o fato de a democracia norte-americana também apresentar várias limitações e obstáculos), não significa, de fato, que a extrema direita vai-se enfraquecer no médio prazo. O trumpismo mostrou que o discurso de deslegitimação eleitoral, o discurso de que as eleições teriam sido roubadas, o discurso conspiracionista com relação a vários temas envolvendo políticos tradicionais e o establishment político-partidário continua sendo um mecanismo de mobilização importante na sociedade norte-americana e capaz de manter o trumpismo e a extrema direita fortes, mesmo após a derrota eleitoral de 2020 e a tentativa fracassada de golpe de Estado de 2021.
OPEU: Como você espera que o questionamento do processo eleitoral vá impactar as eleições de meio de mandato (midterms) em novembro?
O impacto é severo. É possível perceber que, nas eleições para a Câmara de Representantes [órgão equivalente à Câmara de Deputados no Brasil] e para o Senado norte-americanos, Trump conseguiu colocar vários dos seus candidatos no pleito e candidatos que mantêm a narrativa de que as eleições de 2020 teriam sido roubadas, e que seria preciso, claramente, ir contra as instituições tradicionais, na medida em que elas tenderiam a ser contra Trump, ou contra o trumpismo. Nós sabemos que não há nenhuma evidência robusta nesse sentido, muito pelo contrário. Além disso, há todo um conjunto de estratégias para dificultar o voto por correio, para dificultar o voto das minorias, de classes populares, de grupos mais pobres que, nos Estados Unidos, tendem a votar historicamente nos democratas. Isso acontece pelo menos desde as últimas décadas, com um realinhamento fundamental que começa após a administração de Franklin D. Roosevelt e que se fortalece com administração Lyndon B. Johnson.
Então, são implementadas estratégias para eleger figuras-chave nos estados e nas assembleias estaduais, como, por exemplo, dos secretários de Estado das diferentes unidades da federação norte-americana. Estes postos são essenciais para a condução do processo eleitoral de 2024. Infelizmente, o impacto é muito severo. Eu temo que se, de fato, o Congresso norte-americano virar favoravelmente para os republicanos, isso fortaleça ainda mais essa onda antidemocrática nos Estados Unidos. Caso esse cenário culmine na vitória dos republicanos para a Presidência da República em 2024, isso representará um risco muito grande para a democracia nos Estados Unidos e, consequentemente, para a democracia em outras partes do mundo.
OPEU: O capítulo oferece um robusto relato dos eventos subsequentes ao voto popular em 2020. Quais são, em sua perspectiva, os maiores desafios de realizar pesquisa histórica em relação a eventos tão recentes?
Essa é uma pergunta bem importante, porque quando a gente trabalha com objetos e problemas de pesquisa recentes – como no caso no meu capítulo, que tratou da tentativa de golpe do Trump em relação aos resultados eleitorais para a Presidência dos Estados Unidos em 2020 –, a gente tem que compreender que há uma limitação estrutural nas fontes que estão disponíveis para nós. Todo conhecimento científico, sobretudo em ciências humanas e sociais, tem um caráter de provisoriedade, de ser um conhecimento provisório. Portanto, outras perspectivas, outros olhares, mas também acessos a novas fontes que não estavam disponíveis no momento em que você pesquisa, tendem, no futuro, a modificar conclusões da sua pesquisa. Só que, quando você trabalha com temas extremamente recentes, essa tarefa se torna mais complicada e difícil. É preciso, por parte do analista, do cientista social, compreender as limitações das fontes que estão disponíveis. Na maioria dos casos, a gente está falando de fontes públicas, de notícias de jornal. Estamos falando sobre discursos de autoridades e, obviamente, esse tipo de fonte tem um conjunto de limitações. A gente tem que compreender que essas limitações também impactam a capacidade que a gente tem para responder as perguntas de pesquisa que nós fazemos. Então, ter esse cuidado é absolutamente fundamental quando a gente trabalha com temas de pesquisa tão recentes.
OPEU: É impossível não fazer paralelos com a situação eleitoral do Brasil, onde o presidente também questiona flagrantemente a integridade do sistema de votação. Quais são as principais semelhanças e diferenças entre os dois casos?
Infelizmente, os paralelos são muito grandes em ambos os casos. Você teve nos Estados Unidos, em 2020, e no Brasil, agora em 2022, uma preparação do cenário informacional para que Trump e Jair Bolsonaro, respectivamente, pudessem contestar as eleições. Então, Trump, em 2020, utilizou, principalmente, a dúvida sobre o voto por correio, batendo muito na tecla de que o voto por correio seria fraudulento. E o Bolsonaro, como a gente sabe, faz isso em relação à urna eletrônica. Uma outra semelhança que a gente percebe são estratégias de mobilização dos apoiadores bastante violentas contra autoridades e quaisquer figuras públicas que contestem as teses da extrema direita, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Então, essa violência retórica, que muitas vezes também resvala para a violência física, é algo que a gente começa a notar também em termos de semelhança, mas também existem algumas diferenças importantes. Eu acho que a mais significativa é o fato de que, aqui no Brasil, a gente não tem clareza, mas, muito provavelmente, o apoio que o Bolsonaro tem nas Forças Armadas e nas forças policiais é muito mais significativo e muito mais capilarizado do que o que Trump teve das Forças Armadas norte-americanas em 2020. Acho que essa é uma diferença importante.
Outra diferença é que Trump conseguiu dominar um dos dois grandes partidos dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro, de uma maneira bastante impressionante, mesmo sem ter conseguido construir um partido seu, embora tenha tentado, conseguiu mostrar que a força do bolsonarismo independe de uma estrutura partidária. É evidente que ele usou a estrutura partidária do PL e máquina do governo federal para conseguir votos e para ampliar seu apoio político junto a sociedade. Isso ocorre, no entanto, sem a estrutura de um partido político, seja tradicional, como aconteceu no caso dos Estados Unidos, ou mesmo novo. Há outras diferenças de outros paralelos, mas esses pontos me parecem os mais significativos.
OPEU: Na sua pesquisa anterior, você se concentrou nas relações entre Estados Unidos e Brasil, em especial no governo João Goulart. Em função da conjuntura, seus esforços têm-se voltado para questões mais contemporâneas, como a Guerra da Ucrânia. Quais são os próximos projetos?
Eu ainda continuo. Meu foco é, basicamente, relações entre Estados Unidos e América Latina, especialmente o Brasil, durante a Guerra Fria, e história da política externa brasileira, sempre resvalando bastante nas relações entre Brasil e Estados Unidos. Então, eu continuo trabalhando forte nessa agenda, que é a minha agenda principal, mas a Guerra da Ucrânia abriu a necessidade, a meu ver, de a gente repensar o confronto estratégico entre grandes potências no sistema internacional contemporâneo. No caso, há um confronto reeditado entre Estados Unidos e Rússia, entre OTAN e Rússia e, obviamente, também envolvendo a China, mas meu interesse na Guerra da Ucrânia provém, principalmente, da agenda de pesquisa sobre Guerra Fria. Ressurge esse debate sobre até que ponto a gente está entrando em um novo ciclo de confrontação estratégica entre grandes potências no século XXI, com semelhanças e diferenças, mas também bastantes paralelos com as características do sistema internacional entre 1945 e 1991. Minha agenda continua, em que pesem essas reflexões sobre um novo ciclo de rivalidade estratégica entre superpotências que a guerra da Ucrânia abriu e que vai continuar sendo uma preocupação minha, mas, como eu disse, minha principal agenda continua sendo Guerra Fria na América Latina, relações entre Brasil e Estados Unidos e história da política externa brasileira.
OPEU: Professor, agradeço em nome do OPEU pelo tempo dedicado a esta entrevista. Espero que possamos manter essa colaboração!
* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do OPEU e doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Contato: amorimlucas@usp.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 26 out. 2022. Esta entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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