América Latina

(Re)Pensando a dependência: Atlas Network e institutos parceiros no governo Bolsonaro

Brasil na mira (Crédito: Rachwal/Depositphotos)

Por Camila Feix Vidal e Jahde Lopez*

Ao longo dos últimos anos, uma série de institutos liberais espalhados pela América Latina (AL) vem desenvolvendo atividades para a criação e a manutenção de consentimento, visando a converter suas proposições particulares, em defesa do livre-mercado, em proposições públicas na política doméstica desses países. Partindo de uma suposta legitimidade “técnica” desses institutos, seus dirigentes passam a atuar direta, ou indiretamente, no Executivo e Legislativo desses países. Um importante elo que sustenta e articula grande partes do institutos liberais latino-americanos consiste na vinculação destes com o instituto neoliberal estadunidense Atlas Network.

Atlas Network - Instituto LiberalA Atlas se configura e atua como uma espécie de organização guarda-chuva, que tem a finalidade de orientar e facilitar a criação e a manutenção de institutos neoliberais parceiros ao redor do mundo. Criada em 1981, a Atlas busca “fortalecer uma rede global de organizações independentes da sociedade civil, que promovam a liberdade individual e removam as barreiras ao desenvolvimento humano” (tradução nossa). Hoje, conta com 470 institutos parceiros em 97 países distribuídos pelo globo. Deste total, 100 parceiros estão apenas na região da América Latina e Caribe.

Essa instituição estadunidense se apresenta formalmente como uma organização de cunho privado, apartidário e apolítica. Observa-se, contudo, que boa parte de seus recursos financeiros advém do Departamento de Estado dos Estados Unidos e, mais especificamente, de organismos como o National Endowment for Democracy (NED) e o Center for International Private Enterprise (CIPE). Essas organizações são criações governamentais estadunidenses e repassam recursos públicos para a Atlas e para seus institutos parceiros, partindo da premissa de que, se o dinheiro público for filtrado por um número suficiente de camadas burocráticas, transforma-se em financiamento “privado”.

Na América Latina, a Atlas vem atuando com o objetivo de influenciar na implementação de agendas econômicas e no curso de mudanças políticas. Nessa região, foi criado em 2018 o primeiro centro regional da Atlas. O Atlas Network’s Center for Latin America busca ser o elo de apoio e sustentação de uma frente dedicada à defesa e à promoção do neoliberalismo nos países latino-americanos. Para alcançar seus objetivos, o Centro atua destinando recursos financeiros, treinamentos e outros suportes que visam a promover e a aproximar institutos e indivíduos comprometidos com transformar, por meio dos preceitos neoliberais, os rumos econômicos da América Latina.

Com base em uma leitura teórica que privilegia o papel das ideias na manutenção da dependência, optou-se aqui por vincular as contribuições advindas da Teoria Marxista da Dependência em conjunto com os conceitos edificados por lentes neogramscianas. Sob essa opção teórica, entende-se que visões de mundo e agendas políticas estão ligados e circunscritos por determinados contextos históricos e interesses específicos, sendo necessário (re)pensar o subdesenvolvimento a partir da recriação de estruturas de pensamento que levem em consideração as particularidades da periferia.

Nesse sentido, a hegemonia estadunidense se apresenta a partir de estruturas cada vez mais extensíveis e interconectadas, não limitando-se ao uso de recursos materiais e coercitivos, mas privilegiando o uso de instituições sociais e da produção de ideias como um meio de legitimar seu domínio e direção. A partir deste quadro, os Estados Unidos promovem uma institucionalização de estruturas hierárquicas que contribuem diretamente para a disseminação de uma agenda que contempla os seus interesses e os propaga enquanto universais. Dentro destes esforços, o neoliberalismo representa uma dimensão fundamental na propagação e na preservação da hegemonia estadunidense.

Nesse sentido, os institutos liberais parceiros da Atlas no Brasil são utilizados enquanto espaços capazes de promover seus dirigentes na esfera política e, desse modo, influenciar na proposição de legislações que coadunam com seus interesses hegemônicos. Trata-se de um esforço que visa a compreender o movimento cristalizado na forma dos institutos liberais parceiros da rede Atlas no Brasil e seu papel na difusão das ideias atreladas a uma classe econômica dominante. Para isso, tratamos a temática a partir de um estudo de caso específico: a ascensão de dirigentes desses institutos no governo de Jair Bolsonaro. Assim, implícita ou explicitamente, buscamos apresentar nessa pesquisa a forma como institutos liberais e a promoção de seus dirigentes na política contribuem para a produção de um consentimento neoliberal benéfico para a manutenção hegemônica de uma classe dominante.

Poder das ideias e papel dos institutos liberais parceiros da Atlas no Brasil

A criação e a consolidação da rede de institutos liberais da Atlas no Brasil nos remetem a ações promovidas no passado que contribuíram de maneira substancial para o atual quadro de penetração de seus dirigentes no governo Jair Bolsonaro. É frente ao processo de redemocratização no país que parte do empresariado nacional busca se reorganizar por meio de novos mecanismos de participação política e legitimação de seu domínio. Assim, o empresariado nacional contou com o desempenho singular de Hayek e Fisher que tiveram um papel fundamental na construção e no assessoramento de uma elite empresarial interessada em promover os seus objetivos na forma de consenso neoliberal, dentre os quais destacam- se nomes de Og Leme, Donald Stewart, Henry Maksoud, Nahum Manela e José Stelle.

Nesse sentido, esforços para a construção de um instituto liberal no Brasil foram cristalizados por meio do encontro de Hayek e Fisher com o empresário Donald Stewart no início da década de 1980 quando, sob o nome de Instituto Liberal do Rio de Janeiro (IL-RJ), temos o primeiro marco de um processo de consolidação e posterior disseminação de aparelhos privados de hegemonia difusores do neoliberalismo no país.

Saiba mais sobre os institutos liberais e a Atlas Network no Brasil, neste episódio do podcast Chutando a Escada com o pesquisador Luan Corrêa Brum, da UFSC, e membro do Grupo de Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC)

Sob influência da conformação dos institutos liberais no Brasil, assistiu-se, nos anos 1990, à penetração do ideário neoliberal, agora na forma de um projeto político consubstanciado a partir da ascensão de Fernando Collor à Presidência do Brasil (1990-1992) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). Assim, houve redução das atividades dos institutos liberais em consequência da representação de seus interesses nos governos supracitados. No entanto, nos anos seguintes, há uma rearticulação das forças neoliberais na forma de uma contraofensiva frente à ascensão de governos de esquerda no âmbito da AL e, em específico, no Brasil. É com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder (2003-2016) que se tem o momento de maior proliferação dos institutos liberais parceiros da Atlas, contando com 15 institutos parceiros no país na atualidade.

Por meio de uma nova roupagem e de uma postura mais ativa, o movimento liberal, em estreita relação com apoio financeiro e logístico da Atlas, foi uma parte fundamental no contexto de mobilização e de protestos generalizados no Brasil pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Nas palavras de Alejandro A. Chafuen, presidente da Atlas na época, “surgiu uma abertura – uma crise – e uma demanda por mudanças, e nós tínhamos pessoas treinadas para pressionar por certas políticas”.

Alejandro A. Chafuen, director gerente de Acton Institute … | Flickr

Chafuen, em 2018 (Casa de América)

Essa nova roupagem e postura ativa proporcionou também a atuação de Winston Ling, fundador do IL-RS, na construção da atual equipe econômica do governo Bolsonaro. Colega de Paulo Guedes na Universidade de Chicago e aluno de Milton Friedman, foi ele quem apresentou o que viria a ser o atual ministro da Economia ao candidato à Presidência. Como destacado por Chafuen, “há alguns anos, Winston Ling me disse, confidencialmente, que viu potencial no Bolsonaro e que o estava apresentando a economistas notáveis da tradição de Chicago”.

Como resultado do ambiente propiciado pelos institutos liberais e da própria atuação ativa por parte de indivíduos como Winston Ling, Paulo Guedes e do próprio Alejandro Chafuen, observou-se a ascensão de dirigentes de institutos liberais ao governo Bolsonaro, compondo grande parte de sua equipe econômica.

A influência na política econômica deste conjunto de atores vinculados aos institutos parceiros da Atlas no Brasil pode ser mais bem apreendida a partir da materialização de medidas com impactos reais na agenda econômica do governo. A exemplo, tem-se o caso da implementação da Medida Provisória da Liberdade Econômica (MP de Liberdade Econômica), formulada com respaldo intelectual e logístico dos institutos liberais e de seus dirigentes. Para Chafuen, “é o melhor plano que vi e avaliei durante minha longa carreira em pesquisa e defesa de políticas”. De 15 institutos parceiros da Atlas no Brasil, 14 participaram da reunião sobre a formulação dessa Medida Provisória.

Estando presente no interior do Estado e de suas instituições, esse conjunto de dirigentes liberais se utiliza do espaço estatal e de seus mecanismos para impor políticas econômicas e sociais que visam a construir e a consolidar um mundo neoliberal legítimo. Além de sua função de aparelho privado de hegemonia na disseminação da ideologia neoliberal, os institutos e seus indivíduos, que agora se encontram como atores políticos, utilizam instrumentos de poder político como comissões de especialistas e todo um conjunto de leis que objetiva transformar os interesses de uma minoria em interesse da maioria.

Nesse sentido, sua legitimidade cresce perante a sociedade e ascende no âmbito político como responsáveis por pensar as políticas públicas. Munidos de uma credencial e legitimidade supostamente “técnica”, os institutos, por meio dos seus dirigentes, são responsáveis por pensar as políticas de desenvolvimento de um país. A equipe econômica, sob o comando de Guedes, ele próprio um membro fundador de um desses institutos, contém oito dirigentes de institutos liberais contemplando uma relação direta com nove institutos liberais brasileiros.

Nesse sentido, concluímos que a Atlas, a partir de seus institutos parceiros, contribui diretamente para a manutenção de uma dependência não apenas econômica, mas também estrutural, operada por meio de estratégias de consentimento. Diante disso, é possível constatar uma continuidade da dependência da AL frente aos EUA que não se limita às diferenças materiais e que se utiliza de mecanismos menos evidentes, se comparadas às intervenções militares recorrentes durante o século XX na região.

Desse modo, a Atlas e seus institutos parceiros, mediante uma ampla gama de práticas político-pedagógicas, impactam diretamente os rumos políticos para a institucionalização do projeto neoliberal. Isso explica a continuidade e a perpetuação dessa dependência estrutural, em vez de lançar luz sobre as condições desiguais no sistema internacional. Com isso, eternizam-se as diferenças das condições, tanto no que diz respeito ao relacionamento dos países do centro e da periferia, como de suas frações de classe.

 

* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), membro do INCT-INEU e do GEPPIC. Contato: camilafeixvidal@gmail.com.

Jahde de Almeida Lopez é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Contato: jahdelopez@gmail.com.

** Recebido em 9 ago. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. Artigo completo publicado na Revista Brasileira de Ciência Política, n. 38, 2022.

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