Imigração como arma de provocação política
(Arquivo) Protesto ‘Um dia sem imigrantes’, San Francisco, Califórnia, em 1º de maio de 2006 (Crédito: Thomas Hawk/Flickr)
Por Marcos Cordeiro Pires e Thaís Caroline Lacerda, do Latino Observatory*
A crise imigratória é um tema recorrente no debate político dos Estados Unidos. Em dezembro de 2021, discutimos a crise de imigrantes do Triângulo da América Central. Em abril de 2022, discutimos a flexibilização de regras na fronteira com o México. Também naquele mês, nós tratamos do privilégio dado a imigrantes ucranianos em detrimento dos latinos que ficavam acampados nas cidades fronteiriças mexicanas. Em muitas outras análises, lidamos com como a temática da imigração tem constrangido os democratas, principalmente por não cumprirem suas promessas feitas na eleição de 2020, além de impulsionarem o discurso anti-imigratório do Partido Republicano, que afirma que o governo Biden escancarou o país para o crime por conta da entrada pretensamente indiscriminada de pessoas pela fronteira Sul.
Esta temática continua polarizando a política estadunidense. A mais recente polêmica está relacionada com o translado de imigrantes em situação ilegal do Texas para Washington, D.C., e Nova York. O governador texano, Greg Abbott, está custeando ônibus para deslocar os recém-chegados para as duas cidades governadas por democratas. A ação de Abbott se insere na Operação Lone Star, que mobiliza recursos humanos e financeiros para que o Texas organize sua própria estratégia para bloquear a imigração. A nova política foi anunciada em 6 de abril de 2022.
De acordo com a ABC NEWS: “Abbott ordenou que as tropas estaduais comecem a parar e inspecionar veículos comerciais que cruzam a fronteira EUA-México e disse que fretamentos de ônibus serão oferecidos para levar imigrantes a Washington, D.C., em uma provocação ao presidente Joe Biden e ao Congresso. Autoridades do Texas também disseram que começariam um ‘aumento da atividade militar’ na fronteira sul e instalariam arame farpado em algumas águas baixas ao longo do rio para impedir a travessia de imigrantes. (…) as últimas ordens ampliam ainda mais os limites de uma missão multibilionária de segurança na fronteira do Texas que o governador republicano de dois mandatos, que está concorrendo à reeleição em novembro, tornou a pedra angular de seu governo. O Texas já enviou milhares de soldados e membros da Guarda Nacional, instalou uma nova barreira na fronteira e prendeu milhares de imigrantes sob acusações de invasão”.
Em publicação no Twitter, Abbott afirmou: “Enquanto Biden continua a FALHAR na América com suas políticas de fronteira aberta, o Texas está tomando medidas SEM PRECEDENTES para proteger nosso estado e país: Inspeções aprimoradas de veículos nos pontos de entrada; Ônibus fretados para enviar imigrantes ilegais para D.C.; Bloqueios de barcos. Mais está por vir”.
Como resultado desta política, a cidade de Washington, D.C., de acordo com a CNN, recebeu mais de cinco mil imigrantes até o final de julho. A prefeita Muriel Bowser está pedindo ajuda da Guarda Nacional de D.C. para ajudar com os migrantes enviados de ônibus do Texas e a conversão dos edifícios federais do D.C. Armory, da Joint Base Bolling, ou do Fort McNair, em centros de processamento para os migrantes. O centro regional de acolhimento estabelecido para ajudar os migrantes no condado de Montgomery, Maryland, já estaria em sua capacidade máxima, de acordo com o pedido.
A mesma reportagem traz uma declaração da assessora de imprensa do governo do Texas, Renae Eze, incitando a prefeita de Washington, tal como segue: “Washington, D.C., finalmente entende com o que os texanos estão lidando todos os dias, pois nossas comunidades são invadidas e sobrecarregadas por milhares de imigrantes ilegais, devido às políticas de fronteira aberta do presidente Biden. Se a prefeita quiser uma solução para esta crise, ela deve pedir ao presidente Biden que tome medidas imediatas para proteger a fronteira – algo que ele não conseguiu fazer”.
Em 5 de agosto, as investidas de Greg Abbott se voltaram contra a cidade de Nova York, quando chegou o primeiro ônibus com imigrantes ilegais procedente do Texas com 55 pessoas vindas de Bolívia, Colômbia, Equador, Honduras e Venezuela. Naquele dia, ele publicou uma nota em que provocava o prefeito de Nova York, Eric Adams, com os seguintes termos: “Por causa da contínua recusa do presidente Biden em reconhecer a crise causada por suas políticas de fronteira aberta, o estado do Texas teve de tomar medidas sem precedentes para manter nossas comunidades seguras. Além de Washington, D.C., a cidade de Nova York é o destino ideal para esses migrantes, que podem receber a abundância de serviços e moradias da cidade que o prefeito Eric Adams se gabou dentro da cidade santuário. Espero que ele cumpra sua promessa de acolher todos os migrantes de braços abertos para que nossas cidades fronteiriças invadidas e sobrecarregadas possam encontrar alívio”.
Em 7 de agosto, Adams reagiu à ação do governador do Texas, de acordo com o site Gothamist: “Isso é horrível quando você pensa no que [Abbot] está fazendo. Nova York é uma cidade que sempre representou valores democráticos. Mostrando nossos valores. É isso que estamos fazendo hoje. É inimaginável o que o governador do Texas fez. Quando você pensa neste país, um país que sempre esteve aberto para aqueles que fogem de perseguições e de outras condições intoleráveis. Nós sempre demos boas-vindas a isso. E este governador não está fazendo isso no Texas. Mas vamos definir a mensagem certa e o tom certo de estar aqui para essas famílias”.
Em 26 de agosto, outra nota do governo do Texas apresentou um balanço da Operação Lone Star e também da estratégia de trasladar imigrantes para outras cidades: “Desde o lançamento da Operação Lone Star, o esforço de várias agências levou a mais de 297.200 apreensões de migrantes e mais de 19.000 prisões criminais, com mais de 16.400 acusações criminais relatadas. Na luta contra o fentanil, o DPS apreendeu mais de 335,5 milhões de doses letais durante esta missão de fronteira. O Texas também transportou mais de 7.400 migrantes para a capital do país desde abril e mais de 1.500 migrantes para a cidade de Nova York desde 5 de agosto. A missão de ônibus está fornecendo o alívio necessário para nossas comunidades fronteiriças sobrecarregadas. A Operação Lone Star continua a preencher as perigosas lacunas deixadas pela recusa do governo Biden em proteger a fronteira. Cada indivíduo que é apreendido, ou preso, e cada grama de drogas apreendidas teriam chegado às comunidades do Texas e do país, devido às políticas de fronteira aberta do presidente Biden”.
(Arquivo) Governador do Texas, Greg Abbott, anuncia expansão da Operação Lone Star, Austin, 17 mar. 2021 (Crédito: Release da assessoria do governo)
Apesar da disputa política entre democratas e republicanos, é preciso considerar que a imigração em massa tende a causar transtornos para a população local. De acordo com a Bloomberg, apenas no período de setembro de 2021 a junho de 2022, mais de 600 mil pessoas tentaram cruzar a fronteira ilegalmente. Vale considerar que este número não contabiliza aqueles que conseguiram ingressar ilegalmente com o apoio de redes criminosas. A respeito disso, nós registramos aqui o incidente envolvendo mais de 50 pessoas que morreram dentro da carroceria de um caminhão ao tentarem entrar no Texas.
É preciso considerar também que, em meio à imigração de pessoas pobres que buscam uma vida melhor, o fluxo fronteiriço abriga também um grande rol de atividades ilegais, como o tráfico de pessoas, o tráfico de drogas, o tráfico de armas etc. A violência endêmica que aflige o México por conta da atuação de cartéis de droga transborda para os Estados Unidos, não apenas por conta do enorme mercado consumidor de drogas sintéticas, ou de cocaína vinda da América do Sul, mas também pelas inúmeras atividades que se entrelaçam, como as mencionadas acima. Há que se considerar as atividades das “maras”, gangues de rua formadas em Los Angeles e outras cidades estadunidenses por imigrantes salvadorenhos (mas que também envolvem hondurenhos) que estabeleceram raízes em seus países de origem.
Do ponto de vista dos habitantes das cidades situadas ao longo da fronteira com o México, a sensação de insegurança tende a aumentar na medida em que aumenta a atuação das gangues e dos cartéis operantes na região. O sentimento de insegurança sempre foi utilizado politicamente pelos partidos de direita, tal como faz o governador Greg Abbott, que caminha para uma reeleição tranquila sobre o candidato democrata, Beto O’Rourke, de acordo com as projeções do site FiveThirtyEight.
O jornal ligado ao magnata Rupert Murdoch, The New York Post, busca criar um clima de apreensão, ao relacionar a atuação de cartéis mexicanos à epidemia de opioides que assola os Estados Unidos. Nessa manipulação do medo, incluem até mesmo a China, tal como segue: “O fentanil está sendo produzido em grande parte pelo Cartel de Sinaloa, que era controlado por Joaquín ‘El Chapo’ Guzmán antes de ser condenado à prisão perpétua no tribunal federal do Brooklyn por assassinato e tráfico de drogas em 2019. Ao contrário da cocaína, ou da maconha, o opioide sintético é relativamente barato de fabricar, com laboratórios mexicanos operando 24 horas por dia e usando substâncias químicas importadas da China, de acordo com a Drug Enforcement Administration”.
Por mais que possa parecer absurda a utilização de pessoas como peões no tabuleiro político, a estratégia de Greg Abbott é amplamente apoiada por seus partidários republicanos, a tal ponto que o governador da Flórida, Ron DeSantis, cogitou adotar estratégia similar de despachar imigrantes ilegais para as cidades governadas por democratas. Ele até pediu uma verba de US$ 12 milhões ao Legislativo estadual para pagar as viagens de ônibus. A lógica é a mesma: despertar o sentimento de medo das populações locais por conta de uma imigração descontrolada.
(Arquivo) DeSantis discursa na Estação da Força Aérea do Cabo Canaveral, na Flórida, em 21 ago. 2020 (Crédito: Guarda Nacional Aérea dos EUA/Tech Sgt. Chelsea Smith)
A ideia de DeSantis foi colocada na geladeira, porque sua vice-governadora, Jeanette Nuñez, admitiu a ideia de enviar imigrantes ilegais cubanos para Delaware (estado natal de Joe Biden), durante uma entrevista à Rádio Actualidad 1040 AM realizada na sexta-feira, 19 de agosto. Ao ser questionada sobre a recente onda de imigrantes vindos de Cuba para a Flórida, Nuñez disse que o governo DeSantis adotaria uma linha dura. Em um estado em que a comunidade cubano-americana tem um enorme peso político e econômico, a notícia foi recebida com indignação. A vice-governadora chegou a emitir uma nota, retificando sua posição: “Foi uma discussão geral sobre a imigração ilegal não direcionada aos migrantes cubanos que estão fugindo do regime ditatorial. Acho que conheço isso melhor, como filha de imigrantes cubanos”.
O governador da Flórida afirmou que não iria enviar imigrantes para outros estados, pois, na visão dele, o Texas estava fazendo muito bem este trabalho e que não haveria muitas pessoas para despachar. De acordo com ele: “O Texas está levando as pessoas. Biden não enviou ninguém para nós desde que conseguimos isso. Ele manda crianças para todo o país no meio da noite e as joga por todos os Estados Unidos, o que eu acho muito imprudente. Não tivemos ônibus chegando, tivemos pessoas chegando. Acho que, por causa do que o Texas fez, isso realmente tirou muita pressão de nós”.
É importante considerar que Ron DeSantis está articulando sua candidatura presidencial pelo Partido Republicano e desafiando o ex-presidente Donald Trump. Além da questão da imigração ilegal, ele defende a restrição ao aborto, o fim da chamada “ideologia de gênero” e o ensino da “teoria racial crítica”. É um entusiasta da guerra cultural iniciada pela extrema-direita dos Estados Unidos. Daqui até as eleições presidências de 2024, o tema da imigração não sairá dos debates partidários. Situação difícil para milhares de pessoas que se tornarão peões no xadrez político dos Estados Unidos.
P.S.: Quando estávamos concluindo esta análise, a Reuters informou que Greg Abbott havia enviado um ônibus com 60 pessoas para a cidade de Chicago em 31 de agosto. Em tom provocativo, Abbott disse: “A prefeita Lightfoot adora divulgar a responsabilidade de sua cidade de acolher todos, independentemente do status legal. Estou ansioso para ver essa responsabilidade em ação”.
Após o anúncio de Abbott, o porta-voz da prefeita Lori Lightfoot, Ryan Johnson, confirmou no Twitter que cerca de cinco dúzias de imigrantes foram enviados do Texas para Chicago. E ressaltou: “Chicago é uma cidade acolhedora e, como tal, colaborou com vários departamentos e agências para garantir que os recebamos com dignidade e respeito”.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Thaís Caroline Lacerda é coordenadora do Latino Observatory e doutora em Ciências Sociais (Unesp-Marília). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.
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