Deterioração do poder americano e multipolaridade do sistema internacional
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Por Robson Coelho Cardoch Valdez, para Congresso em Foco*
Como é sabido, nos estudos de Economia Política Internacional, é o poder que determina a relação entre autoridade e mercado. Assim, para operar de forma decisiva, o mercado necessita da autorização de quem quer que projete poder e possua autoridade. Nesse sentido, ao estabelecer uma relação de identidade entre autoridade e poder, não basta perguntar onde está a autoridade, ou quem tem poder. É importante saber por que se tem poder e qual é a fonte do poder. Desse modo, temos o poder relativo e o poder estrutural como as duas formas de exercício de poder no âmbito das relações políticas e econômicas no sistema internacional.
Enquanto o poder relativo diz respeito à capacidade de fazer com que outro país faça algo que normalmente não faria; o poder estrutural trata do poder de moldar e determinar as estruturas da economia política global, na qual outros estados e suas instituições devem operar. Dessa forma, dado o dinamismo das intrincadas relações internacionais envolvendo Estado e empresas, o foco das análises recai sobre as fontes de poder estrutural. Assim, na visão de Susan Strange, acadêmica inglesa que, nos anos 1970, lançou as bases para o surgimento do campo de estudos da Economia Política Internacional, as quatro fontes do poder estrutural, que se relacionam umas com as outras, são: conhecimento, segurança, finanças e produção.
Ao tratar a segurança como uma estrutura de poder, tem-se a capacidade de se prover proteção contra ameaças internas e externas. No que se refere à produção, essa estrutura de poder diz respeito ao poder de decidir o que deve ser produzido, por quem, por quais meios e com qual combinação de fatores de produção: terra, trabalho, capital e tecnologia. Quanto ao poder estrutural das finanças, pressupõe-se o poder de se criar e controlar a oferta e a distribuição de crédito. Por fim, o conhecimento como fonte de poder estrutural aborda a habilidade e a capacidade de se prover, limitar e decidir o acesso de outros ao conhecimento.
A disputa pelo poder entre os países é um jogo de soma-zero, ou seja, a emergência de novas potências pressupõe a perda de poder, em alguma medida, por parte das demais. Assim, não é de hoje que se discutem os sinais da queda do poder norte-americano no cenário internacional. Nesse contexto, temos visto, desde o colapso do bloco soviético, dificuldades crescentes dos Estados Unidos em liderar agendas de seu próprio interesse junto à comunidade internacional (decréscimo de poder relativo); bem como desafios estruturais à ordem estabelecida pelo país norte-americano a partir da Segunda Guerra Mundial (decréscimo de poder estrutural).
Não por acaso, o então indicado para o Departamento de Estado do governo Biden, Antony Blinken, posicionou-se de forma dura sobre a China durante sua sabatina no Comitê de Relações Exteriores do Senado. Na ocasião, declarou que a China é um país a ser vencido: “Podemos vencer a China e lembrar ao mundo que um governo do povo, para o povo, pode ajudar seu povo”. Adicionalmente, em linha com a abordagem da administração Trump em relação à China, Blinken deixou claro que se trata do “desafio mais importante de qualquer Estado-nação aos Estados Unidos em termos dos nossos interesses: os interesses do povo americano”. Da mesma forma, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, já se referiu à China como um ator hegemônico regional que busca se tornar a “potência proeminente no mundo em um futuro não muito distante”.
Secretário americano da Defesa, Lloyd Austin, em Tóquio, em 16 mar. 2021 (Crédito: Lisa Ferdinando, DoD/Flickr)
Quanto à Rússia, tem-se percebido que o conjunto de suas já conhecidas capacidades vem impondo uma série de adversidades diretas à Ucrânia, e indiretas, aos Estados Unidos e seus aliados, principalmente os europeus. Como já foi mencionado em artigo anterior, “Neste momento, em que a aliança ocidental evita o confronto militar direto com a Rússia, os Estados Unidos buscam, de todas as formas, manter a estrutura petróleo/dólar como lastro das transações comerciais internacionais diante das reais alternativas que vinham paulatinamente consolidando-se como opção ao dólar e que ganharam relevância diante das incertezas da crise russo-ucraniana”. Trata-se de uma ameaça sino-russa à dimensão financeira do conjunto do poder estrutural dos Estados Unidos.
No curto prazo, além das já sabidas adversidades das sanções ocidentais à economia russa sobre o conjunto da economia global, a expectativa é que o conflito se prolongue por período indeterminado, podendo levar à deterioração da coesão europeia em relação à liderança norte-americana. O ponto mais sensível dessa aliança se encontra no temor de que os crescentes custos da energia para o cidadão europeu possam promover um descontentamento popular generalizado em cada um dos países do bloco. Essa preocupação é real, e a Rússia segue se articulando com outros países no sentido de minimizar os efeitos das sanções econômicas sobre sua economia.
Enquanto Índia e China defendem sua neutralidade diante do conflito russo-ucraniano, os dois países se acercam dos russos para assegurar compras massivas de petróleo a preços mais atraentes ainda que isso prejudique, em alguma medida, um de seus tradicionais fornecedores dessa commodity, os iranianos. Contudo, em que pesem os conflitos de interesses, Rússia e Irã, além de compartilharem uma mesma visão de mundo em diversas áreas, os dois países também se opõem à forma de inserção dos Estados Unidos no sistema internacional. Na atual conjuntura em que os dois países estão sob fortes sanções econômicas, Rússia e Irã têm mostrado disposição para aumentar a cooperação comercial e militar. Além de atuarem no conflito sírio, o Irã pode se tornar um importante fornecedor de armas (drones, por exemplo) para a Rússia no âmbito do conflito russo-ucraniano.
É dentro desse contexto de desafios reais ao poder estrutural norte-americano e deterioração patente de sua capacidade de liderar (pela força, ou pelo consentimento) que se reforça, pouco a pouco, a ideia de que o mundo caminha para um mundo caracterizado pela multipolaridade. Da mesa forma que a questão ucraniana, muito cara para os russos, chegou ao limite da guerra, não se pode perder de vista que 2047 é o ano-limite para que Hong Kong seja reintegrada à soberania total da China colocando um fim ao princípio de “um país, dois sistemas”, conforme estipulado pela Declaração Conjunta de 1984 que foi assinada pelo Reino Unido e a China. Assim, enquanto o ano de 2047 não chega, Taiwan continua sendo uma fonte de preocupações para a comunidade internacional na medida em que o aumento das capacidades chinesas lança luz sobre a política norte-americana de ambiguidade estratégica em suas relações com Taiwan.
Nesse mundo multipolar que se consolida, os Estados Unidos seguirão firmes como um importante polo de poder do sistema internacional. Muito provavelmente, China, Rússia e Índia (potências nucleares) atuarão, de forma coordenada, ou isolada, para contrapor o poder norte-americano estabelecido. Resta saber como países emergentes como o Brasil (potência média com uma série de desafios estruturais) irão acomodar seus interesses nacionais diante de um cenário externo onde os países pautam sua inserção internacional justamente pelo incremento de suas fontes de pode estrutural: conhecimento, finanças, segurança e produção.
* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB), doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019). Contato: robsonvaldez@hotmail.com.
** ** Publicado originalmente no site Congresso em Foco, em 3 jul. 2022. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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