OPEU Entrevista

Celly Cook conversa com OPEU Entrevista sobre legado de Trump no Judiciário dos EUA

Por Augusto Scapini*

Pesquisadora Celly Cook (Crédito: Arquivo pessoal)

Doutora e Mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduada em Ciências Sociais por esta mesma instituição, Celly Cook Inatomi é pesquisadora colaboradora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Especializada em relações entre política, direito e Poder Judiciário, é autora do livro As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020).

Baseado em um informe escrito para o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), grupo de pesquisa do INCT-INEU, seu texto “Os juízes de Trump e os desafios ao governo Biden” compõe o terceiro capítulo do livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas, organizado pelos pesquisadores do INCT-INEU Neusa Maria P. Bojikian e Sebastião Velasco e Cruz, lançado em 2022 pela editora Unesp.

Neste OPEU Entrevista, Celly aborda ideias centrais do referido capítulo e de sua pesquisa, em um sentido mais amplo. Com isso, ajuda-nos a entender as transformações em curso na mais alta instância do Poder Judiciário dos Estados Unidos e seus riscos para a sociedade norte-americana.

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O que a motivou a escrever sobre a questão do conservadorismo no sistema judiciário dos Estados Unidos? Como surgiu a ideia para o texto e por que ele é importante para o estudo da política americana no Brasil?

Desde 2017, venho realizando dois trabalhos de pesquisa que são complementares: um, enquanto pesquisadora colaboradora no Departamento de Ciência Política do IFCH/Unicamp, e outro, enquanto pesquisadora do INCT-INEU. Na Unicamp, venho estudando de modo aprofundado a abordagem da mobilização do direito, pensando nas suas influências, teses e limitações. Já no INEU, venho estudando o tema do conservadorismo no sistema judiciário dos Estados Unidos, aparecendo quase que como uma consequência natural dos meus estudos na Unicamp, conformando, por assim dizer, um esforço empírico de aplicação e também de questionamento da abordagem da mobilização do direito.

A mobilização do direito é uma abordagem bastante interessante, porque ela parte de um pressuposto de pesquisa, vindo dos Critical Legal Studies, que fala do indeterminismo do direito, isto é, sua capacidade latente de se tornar tanto instrumento de resistência quanto de dominação. Além disso, trata-se de uma abordagem que está preocupada, assim como os estudos culturalistas, com o direito na vida cotidiana (Law in everyday life), em que se pensa os significados e as construções diárias sobre o jurídico nas interações entre diferentes pessoas com as instituições, observando tanto a sedimentação de práticas de contraconduta quanto práticas normalizadoras e controladoras.

Para saber mais sobre Critical Legal Studies

Há tempos, no entanto, essa abordagem vem recebendo uma série de críticas. Uma delas é que a mobilização do direito sofre de uma incapacidade de teorização, dado que ela enfatiza a realização de muitos estudos de caso sem grandes conclusões de causa e consequência. E outra crítica bastante conhecida é que a abordagem tem uma grave limitação acadêmico-política, dado que ela não dá a devida seriedade ao caráter violento que o direito liberal pode assumir, especialmente em períodos de crise política, em que os direitos e as instituições que os protegem são constantemente atacados e fragilizados, ficando difícil falar em estratégias jurídicas de resistência e de emancipação.

Michael W. McCann, autor central da abordagem da mobilização do direito, reconheceu essas críticas e formulou uma espécie de agenda de pesquisa para que os estudos da mobilização do direito se atentassem para o cenário crescente de crise dos direitos. Um dos pontos que ele ressaltou foi a necessidade de os estudos começarem a pensar nas mobilizações feitas pelos setores conservadores, para que, dessa maneira, os estudiosos voltassem a pensar nas grandes questões sociológicas sobre dominação e hegemonia.

E foi nessa esteira estendida por McCann que eu resolvi tentar entender a mobilização conservadora do direito nos Estados Unidos, pensando a grande transformação feita por Donald Trump no Judiciário federal como parte dessa mobilização e da construção de uma política de direitos conservadora. É uma pesquisa que tem-me permitido conhecer os meandros e a historicidade da mobilização conservadora, bem como suas articulações com as instituições do Estado, que se deram em concomitância com o avanço das políticas de direitos civis e dos novos movimentos sociais, isto é, quando não se imaginava que ideias extremamente retrógradas de sociedade pudessem estar em plena construção e avanço, inclusive institucional.

Acredito que estudar a política de direitos conservadora, ou a mobilização do direito conservadora nos Estados Unidos, é importante para as pesquisas brasileiras por chamar atenção para um campo de estudos ainda bastante inicial e incipiente no Brasil, que é o estudo das mobilizações conservadoras do direito, ou o estudo de movimentos sociais conservadores. Nos Estados Unidos, já se tem uma literatura mais consolidada sobre esse tema, diferentemente daqui. Como me disse a professora Débora Alves Maciel, nós estamos acostumados a entender movimento social e mobilização por direitos como sendo elementos próprios de setores progressistas da sociedade, mas não são. Os conservadores daqui têm descoberto o uso das ruas e as mobilizações para protestos, e acredito que, embora isso possa parecer tudo muito novo, existe aqui, tal qual nos Estados Unidos, uma história construída e costurada concomitantemente ao avanço das garantias de direitos. Essa história precisa ser estudada e compreendida.

Estamos acostumados a entender movimento social e mobilização por direitos como sendo elementos próprios de setores progressistas da sociedade, mas não são

Em seu texto, são mencionadas as decisões da Suprema Corte de impedir a discriminação contra cidadãos pertencentes à comunidade LGBTQ+ e de bloquear as tentativas do ex-presidente Donald Trump de contestar os resultados das eleições de 2020. Como você explicaria esse comportamento da instituição, considerando-se sua maioria conservadora? Estaria atribuído às questões políticas e morais, ou se deve à imparcialidade e textualidade dos juristas?

Essas decisões recentes da Suprema Corte são bastante controvertidas, justamente porque elas bagunçam qualquer interpretação polarizada, ou binária, que possamos fazer sobre a relação entre a preferência dos juízes e suas decisões. De fato, é surpreendente um juiz nomeado por Donald Trump, que selecionou suas indicações com base em listas feitas por organizações ultraconservadoras, juntar-se a juízes liberais para decidir a favor dos direitos LGBTQ+. É ainda mais surpreendente ver a Suprema Corte, com uma supermaioria conservadora, decidir, unanimemente, não reconhecer os pedidos de anulação das eleições em que Trump foi vencido.

É preciso, porém, ir com calma com essas interpretações, caso contrário, podemos chegar erroneamente à conclusão de que nenhum direito democrático está sendo destruído por esse Judiciário federal atual. Tanto uma decisão quanto a outra podem ser perfeitamente explicadas dentro do padrão de interpretação constitucional conservadora, amenizando, portanto, a ideia de que os juízes de Trump teriam-no “traído” e se afastado das causas conservadoras. Precisamos olhar para o que está invisível no visível.

No caso da discriminação contra LGBTQ+, Neil Gorsuch se utilizou de uma interpretação textualista, que é, juntamente com o originalismo, uma das interpretações judiciais preferidas entre os meios conservadores, sob o argumento de que o textualismo impediria a criação jurídica por parte dos juízes, fazendo-os seguir estritamente o que está escrito no texto da lei. Ao analisar o texto do Título VII da Lei de Direitos Civis de 1964, fundamento da argumentação LGBTQ+, Gorsuch chegou à conclusão de que o texto da lei é amplo, não colocando exceções aos tipos de discriminação que ocorrem no ambiente de trabalho e que, portanto, é ilegal discriminar homossexuais e transgêneros.

Ao mesmo tempo, contudo, em nenhum momento de sua decisão, Gorsuch falou em “direitos LGBTQ+”, não os reconhecendo como um grupo social especial que precisa de meios ativos do Estado para a proteção de sua integridade e liberdades. Embora seja uma vitória importante no campo das mobilizações jurídicas LGBTQ+, Gorsuch apenas reconheceu seus direitos individuais, o que significa que qualquer outra política implementada por Barack Obama para a promoção dos direitos LGBTQ+ poderia ser julgada inconstitucional pelo próprio Gorsuch, dado que, sob essa interpretação individualista dos direitos, políticas especiais feririam o princípio da igualdade entre os indivíduos. Além disso, o próprio Gorsuch ponderou que sua decisão deveria ser revista em casos futuros que envolvessem a liberdade religiosa dos empregadores, pois a liberdade de religião, para ele, é um dos direitos mais sagrados da Constituição dos Estados Unidos.

No caso dos pedidos de Trump para anular as eleições de 2020, a Suprema Corte também não se distanciou do padrão decisório que veio construindo por pelo menos há uma década acerca das leis estaduais eleitorais, e que permitiu o esvaziamento completo da Lei de Direitos de Voto de 1965. Da mesma forma que a Corte não impediu que alguns estados fizessem leis eleitorais que favorecessem explicitamente os republicanos, alegando a inviolabilidade dos direitos dos estados em regerem suas eleições, ela também não interferiu nos estados que não aceitaram refazer a contagem eleitoral, ou anular votos, a pedido de alguns republicanos e de Trump. Em outras palavras, o que sobressaiu da decisão não foi necessariamente a defesa de princípios e de instituições democráticas básicas, mas simplesmente a defesa de uma autonomia estadual exacerbada, que tem sido utilizada pela própria Suprema Corte para derrubar outros tipos de direitos, como o direito ao aborto.

A questão que confunde e que, por vezes, nos faz olhar com mais esperança para as decisões judiciais é que interpretações não são exclusivas deste, ou daquele grupo, embora possam apresentar uma identificação maior com um, ou com outro. As interpretações existem no mundo como instrumentos disponíveis a todos aqueles que estão a postos e ativos na mobilização por direitos, construindo e tecendo argumentos para defender e garantir liberdades diante de ataques políticos e sociais. O próprio movimento LGBTQ+ se utilizou estrategicamente do textualismo conservador. Assim, questões como da imparcialidade, da independência, ou da restrição judicial, bem como os seus opostos, não são identificáveis necessária e exclusivamente com um grupo, ou com outro. O que precisamos é olhar com cuidado para os diferentes investimentos feitos com relação a esses elementos, no sentido de verificar os propósitos inclusivos, ou excludentes, de seus usos.

As interpretações existem no mundo como instrumentos disponíveis a todos aqueles que estão a postos e ativos na mobilização por direitos

Seguindo essa linha de raciocínio, a que nível o pensamento conservador impede, ou não, a imparcialidade dos juízes, ou favorece uma agenda política partidária, que extrapola o poder da instituição? A conexão de alguns dos juízes, como Amy Coney Barrett, a grupos políticos conservadores poderia influenciar, ou já influencia, suas decisões?

Como pudemos ver na decisão sobre a discriminação LGBTQ+ e sobre a anulação das eleições, a interpretação conservadora da Constituição conseguiu, de fato, impedir um comportamento explicitamente partidário e ideológico de Gorsuch, fazendo-o ceder e ir contra suas preferências particulares imediatas. Mas isso só parece ter sido possível, especialmente no caso da discriminação, porque a mobilização do direito por parte da comunidade LGBTQ+ já havia tomado para si a interpretação textualista, tornando difícil uma torção jurídica dos conservadores contra seus próprios argumentos. Ao mesmo tempo, contudo, o pensamento e a interpretação conservadora – sobretudo, no caso sobre a anulação das eleições – favoreceram explicitamente uma agenda política partidária, pois se utilizaram dos mesmos argumentos que os juízes conservadores vêm utilizando para destruir os direitos de voto dentro dos Estados Unidos a favor do Partido Republicano.

Gostaria de chamar atenção, no entanto, para um elemento bastante interessante e que vem permitindo que o pensamento conservador dos juízes favoreça uma agenda política partidária: a utilização de ideias liberais clássicas, como o direito individual e os direitos dos estados, para fazer avançar, gradual e paulatinamente, concepções conservadoras de política de direitos. Essa espécie de “aliança” sempre permitiu, desde Brown v. Board of Education, ou até mesmo antes, que os grupos conservadores influenciassem a construção da política de direitos sem nem sequer aparecerem como sujeitos determinantes nesse cenário. Assim, quando olhamos para juízas como Amy Coney Barrett (foto abaixo), ou para qualquer outro juiz nomeado por Donald Trump e por outros conservadores, é preciso olhar as formas pelas quais esses juízes teceram, ao longo de suas carreiras jurídicas e políticas, a aliança entre valores liberais e conservadores que os permitiu chegar tão longe em sua política de direitos.

Os casos sobre aborto, por exemplo, que estão para serem decididos pela Suprema Corte este ano, mostram de modo muito claro a apropriação não apenas de direitos liberais, como também da historicidade e do significado de eventos e de personagens importantes para o movimento de direitos civis, de forma a defender concepções absolutamente conservadoras e religiosas sobre os direitos das mulheres. Apropriam-se, inclusive, até mesmo do progressismo, das discussões acerca do racismo institucional sofrido pelas mulheres negras, para mostrar o aborto como mais uma forma de discriminação racial.

Assim, a construção da política de direitos conservadora é complexa, cheia de meandros e nuances, e que influencia, com toda certeza, as decisões dos juízes. No caso do aborto, os conservadores já obtiveram uma liminar favorável e um indicativo de que vão conseguir a reversão de Roe v. Wade, e uma das inúmeras justificativas é a não interferência na liberdade dos estados e dos indivíduos de protegerem suas crenças e valores.

A reforma da Suprema Corte foi um tema recorrente na campanha eleitoral de Joe Biden e em seu primeiro ano de mandato, chegando a formar uma comissão para analisar, por exemplo, um possível aumento de cadeiras do órgão federal. Essa, em específico, foi muito criticada pelos republicanos, que procuram manter a maioria conservadora na Casa. Como essa, entre outras reformas, poderia impactar as decisões dos juízes e as lutas pelos direitos civis?

Primeiramente, é importante termos em mente que essa Comissão do Biden está discutindo uma série de reformas da Suprema Corte, cada qual com impactos distintos sobre as decisões dos juízes e sobre o papel político da Corte de modo geral. Discute-se, por exemplo, desde o aumento no número de juízes, as formas de seleção, tempo de mandato, e até mesmo a retirada de poderes revisionais da Suprema Corte.

Contudo, a mídia e os meios políticos têm chamado a atenção justamente para o possível aumento do número de juízes, dado que além de ser uma medida de impactos imediatos e sem necessidade de regras de transição, é uma medida cercada de polêmicas na história da Suprema Corte nos Estados Unidos. E, atualmente, ela divide não apenas as opiniões entre democratas e republicanos, mas entre os próprios democratas e estudiosos liberais.

Alguns comissionados alertam, em tom de urgência e de preocupação, que aumentar o número de juízes seria a medida mais rápida e talvez mais eficaz para se reequilibrar a balança ideológica dentro da Corte. Dizem que o país corre um sério risco de ver direitos constitucionais já garantidos serem destruídos pela atual composição da Corte, como de fato já vem ocorrendo com o direito de voto, direito de aborto e, possivelmente, com direitos LGBTQ+. Outros alegam, no entanto, que a medida apenas aumentaria o revanchismo político contra Biden e os democratas em outras esferas políticas e na própria sociedade, além de ser uma reforma que não tem como garantir de fato um alinhamento ideológico dos novos juízes com políticas de caráter progressista.

Mas, para além dessas divisões, outro ponto me chamou muita atenção, que é algo bastante interessante e, ao mesmo tempo complicado, sobretudo entre os estudiosos liberais e progressistas: uma defesa de medidas que retirem o poder político que a Suprema Corte tem, como o poder de revisar leis e políticas estaduais. São pesquisadores que resgatam todas as medidas ruins e autoritárias já tomadas pela Suprema Corte e que poderiam ter seguido por outros caminhos caso fossem deixadas para os estados solucionarem de forma democrática, ou mesmo para o legislativo federal, fortalecendo os mecanismos de participação e de engajamento político dos cidadãos. Isso valeria, especialmente, para a Suprema Corte atual, que estaria decidindo questões extremamente importantes para a política e para os direitos nos Estados Unidos, mas seguindo princípios altamente retrógrados e conservadores que não condizem com a pluralidade da sociedade americana.

Entendo esse argumento. Ao mesmo tempo, contudo, penso que, embora a retirada de poder da Suprema Corte possa ter resultados de fortalecimento da democracia, é importante lembrar que se trata de uma medida também defendida por conservadores, o que por si só já levanta um alerta. Além do mais, se formos olhar para as decisões recentes da Corte, ela tem decidido justamente pelos direitos dos estados de seguirem com suas leis e políticas, que, por sua vez, tem enfraquecido e minado direitos básicos e constitucionalmente garantidos. Diante disso, tenho minhas dúvidas se retirar o poder da Suprema Corte de revisar leis estaduais não aprofundaria o quadro de destruição de direitos que diversos estados já vêm fazendo. E tal medida também impediria algo bastante importante, como mostram os trabalhos da mobilização do direito, que é a construção de votos dissidentes e vencidos, que poderiam ser utilizados pelos movimentos sociais na construção de suas pautas de reivindicações.

Tenho minhas dúvidas se retirar o poder da Suprema Corte de revisar leis estaduais não aprofundaria o quadro de destruição de direitos que diversos estados já vêm fazendo

Como você diria que a teoria exposta em seu texto se encaixa no contexto atual, considerando-se as recentes decisões da Suprema Corte contrárias a temas controversos como, por exemplo, o direito ao aborto? Confirmam, ou contradizem, sua tese?

Não estou defendendo, propriamente, uma teoria, ou uma tese, no meu artigo. Faço algo muitíssimo mais simples e mais exploratório. O que eu tento fazer nesse texto é identificar os principais lugares por onde os juízes de apelação de Trump passaram ao longo de suas trajetórias pessoais e profissionais e falar sobre a importância desses lugares para o movimento conservador e sua política de direitos. E, quando eu olho para o passado desses juízes, é possível perceber que sua formação e sua socialização em meios ultraconservadores têm, de fato, impactado suas decisões.

Há estudos, como os de Lee Epstein e Jeffrey Segal, que mostram que os juízes, especialmente os de cortes federais de apelação, mudam de comportamento depois de empossados, tornando-se mais moderados e mais atinentes às opiniões e ÀSaceitações de seus pares. Com os juízes de Trump, contudo, vem-se observando uma mudança significativa nesse diagnóstico, dado que eles não só não mudam de comportamento, como têm auxiliado no aumento de dissidências entre juízes e no aumento do não reconhecimento de precedentes já estabelecidos. É o que temos visto nos casos do direito de voto e do direito de aborto. E essas dissidências, ou votos vencidos, de juízes trumpistas têm sido mobilizados pelos setores conservadores em amicus curiae e recursos na Suprema Corte.

O caso do aborto é, mais uma vez, exemplar. Se formos ler os amicus curiae encaminhados pelos setores conservadores à Suprema Corte, veremos que muitos deles citam votos dissidentes e vencidos de juízes de apelação de Trump, além de votos de muitos outros juízes conservadores da própria Suprema Corte. Dentre os juízes de Trump mais citados está James C. Ho, que, contrariamente ao precedente Roe v. Wade, vem sedimentando argumentos já bastante conhecidos e propagados entre os meios conservadores de que o aborto é um instrumento eugenista e racista de controle populacional. Além de ter ocupado diversas funções políticas no estado do Texas, fazendo parte de comissões legislativas sobre o Judiciário e sobre a situação de cidadania de imigrantes, Ho já trabalhou como assistente do juiz conservador Clarence Thomas, que defende justamente a tese acerca do caráter racista e eugenista do aborto e da decisão Roe v. Wade. Além disso, Ho também faz parte de diversas organizações defensoras de valores conservadores, como a Federalist Society, por meio da qual viajou o país dando palestras sobre a importância da 14ª Emenda, que é a lei mais citada pelos conservadores no caso do aborto. Alegam que, ao contrário de ter qualquer prescrição para um “direito” ao aborto, ela defende o direito à vida de todos os seres humanos, incluindo a do feto.

Até o momento, Biden nomeou 59 juízes federais e, em 2021, quebrou o recorde de mais nomeações judiciárias por um presidente em seu primeiro ano de mandato. Você acredita que a rede conservadora do sistema judiciário construída por Trump em seu mandato terá chances de ser desmontada pelo novo governo? Como você avalia os esforços de Biden e dos democratas de montar uma nova rede de juízes progressistas e o que mais poderia ser feito para atingir esse objetivo?

Ainda não tive tempo de estudar quem são os juízes que estão sendo nomeados por Biden, mas acredito que, para além do número de juízes que ele indicou até o momento, é preciso verificar diversos outros fatores. É preciso ver, por exemplo, se os juízes que ele indicou permitiram reversões nos quadros entre juízes liberais e juízes conservadores, dado que Trump não apenas colocou seus juízes em 11 das 13 cortes federais de apelação, por exemplo, como estabeleceu maioria conservadora em sete delas, das quais três têm uma supermaioria quase impossível de se reverter. Além disso, também é preciso levar em conta algo que eu já disse anteriormente acerca do comportamento dos juízes de Trump depois de empossados, que se mantiveram ultraconservadores em seus posicionamentos e, com isso, aumentaram o número de dissidências entre os juízes. Como será que estão atuando os juízes de Biden? Essa é uma pergunta importante para se investigar.

Outro ponto ainda mais relevante diz respeito às pessoas que estão sendo indicadas por Biden. No início de seu governo, ele me parecia bastante ciente do desafio que teria pela frente diante do Judiciário de Donald Trump, e isso se dava não somente pela questão numérica, quase que impossível de se superar, mas principalmente porque as pessoas indicadas por Trump estavam imbuídas de um projeto conservador de construção dos direitos já bastante antigo e enraizado socialmente. Ao escrever uma carta aos senadores democratas para que eles dessem preferência, em suas indicações judiciais, a pessoas com vínculos com a defesa de direitos civis e com escritórios públicos de advocacia, Biden indiretamente admitiu que as indicações judiciais feitas por presidentes democratas vinham-se baseando, sobretudo, na passagem dos indicados por grandes firmas de advocacia, e não em suas ligações com os problemas da sociedade.

As pessoas indicadas por Trump estavam imbuídas de um projeto conservador de construção dos direitos já bastante antigo e enraizado socialmente

Se os senadores estão seguindo, ou não, a recomendação de Biden é uma questão a se investigar, mas Biden estava ciente das dificuldades e resolveu pegar, até o momento, o caminho mais longo e demorado, que é o da reconstrução de um Judiciário com valores democráticos e socialmente guiados. A Comissão sobre a Suprema Corte representa um outro tipo de saída, que pode ser mais rápida, mas não acredito que Biden terá forças políticas para encabeçar mudanças muito drásticas. Mas aí são apenas conjecturas minhas.

Uma das promessas feitas pelo presidente foi nomear a primeira juíza negra para ocupar uma das cadeiras da Suprema Corte, que será deixada vaga com a futura aposentadoria do atual juiz Stephen Breyer. Essa promessa foi cumprida com a nomeação da juíza Ketanji Brown Jackson, ex-escrituária de Breyer, que, em abril deste ano, foi aprovada pelo Senado para ocupar o cargo. Apesar disso, a proporção majoritariamente conservadora da Corte se mantém. Como você imagina que a presença de uma mulher negra, com pensamentos mais “liberais”, poderá influenciar, ou não, as decisões da instituição, especialmente em relação às questões raciais?

Tem dois lados importantes a serem considerados. Um primeiro é que, de fato, a proporção majoritária conservadora da Corte se mantém, o que significa que, questões que envolvam direitos de alguns grupos específicos, como mulheres, negros, imigrantes e LGBTQ+, ou até mesmo questões mais gerais, como o direito de voto, por exemplo, poderão continuar a sofrer derrotas sucessivas. Esse é um lado mais realista, ou mais concreto e imediato.

Um outro lado, contudo, é a importância fundamental de termos uma primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na mais alta corte dos Estados Unidos. Trata-se de um acontecimento muito importante e representativo, dado que ele é simbólico de uma mudança crucial que precisava muito acontecer. E a simbologia aqui não fica apenas no plano do etéreo, ou da imaginação, pois ela tem impactos concretos sobre a representatividade e sobre os novos valores que podem ser levados àquela Corte e propagado na sociedade de modo geral.

Em termos da abordagem da mobilização do direito, podemos pensar que, apesar das derrotas sucessivas que alguns movimentos sociais certamente irão sofrer na Suprema Corte, começando pela questão do aborto, eles poderão ter como instrumento de mobilização os votos vencidos de Ketanji Brown Jackson (foto abaixo), dando-lhes potencialidade, legitimidade e autoridade em suas contestações futuras. Isso acontecia com os votos da juíza Ruth Ginsburg, que, apesar de vencidos, representavam uma enorme potência para a continuidade das lutas políticas e sociais pelos significados dos direitos. Neste sentido, eu vejo a nomeação de Ketanji Brown Jackson como uma vitória, um caminho para frente, ainda que bastante árduo.

Por fim, há algo que você acrescentaria em seu capítulo no livro De Trump a Biden, tendo o privilégio da retrospecção? Há alguma questão incluída nesse tema que você poderá buscar expandir em pesquisas futuras?

Gostaria de ter incluído nesse trabalho minhas análises acerca das palestras que os juízes de Trump deram por universidades, pois vejo essas palestras como meios de formação e de sedimentação dos valores conservadores. Queria ter apresentado, sobretudo, o envolvimento de universidades “de ponta” na propagação de tais valores. Como elas olham para esse processo? Veem tudo como uma questão de liberdade de pesquisa acadêmica? Ou existem outras ligações que devem ser esclarecidas nesse processo? E gostaria de acrescentar uma investigação mais aprofundada sobre as ligações acadêmicas dos juízes de Trump, de forma a retrabalhar as teses de que os conservadores são eminentemente contrários ao trabalho intelectual feito dentro das universidades. Pelo que eu observo, vem ocorrendo a delimitação de uma “nova” ciência acadêmica, que se coloca em direta competição e oposição com aquela ciência acadêmica que nós conhecemos, e que vem permitindo ligar valores ultraliberais de um laissez-faire desmedido com valores ultraconservadores de um Estado cristão.

 

* Augusto Scapini é pesquisador bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: augusto.scapini@ufrj.br.

Ele entrevista Celly Cook, doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora colaboradora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e do INCT-INEU). Especializada em relações entre política, direito e Poder Judiciário, é autora do livro As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.

** Edição e revisão: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 4 de maio de 2022. Esta entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.

 

 

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