Símbolos, mitos e narrativas mobilizados na formação e consolidação da potência
American Progress, de John Gast (1872), uma representação do Destino Manifesto (Fonte: CNN)
Série Excepcionalismo Americano: discursos, símbolos e narrativas de uma nação
Por Ingrid Cagy Marra*
Uma resenha crítica do livro Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900), de Mary Anne Junqueira
Sobre a autora
Mary Anne Junqueira é professora associada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP). Fez sua graduação em História, e seu Doutorado, em História Social, ambos pela USP. É especialista em História dos Estados Unidos, com mais de duas décadas de experiência e pesquisa. Por quatro anos, foi coordenadora do Laboratório de Estudo de História das Américas e é autora de diversas obras relacionadas aos estudos da História dos Estados Unidos, incluindo o livro Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900).
O livro é dividido em sete seções, além de uma introdução, considerações finais e elementos pós-textuais. De maneira cronológica e organizada, a autora cria uma linha do tempo que passa, de maneira aprofundada e sistemática, desde as treze colônias inglesas, por todo projeto de construção de narrativa da nação, da conquista de novos territórios, da traumática Guerra Civil até a reconfiguração dos Estados Unidos para além de suas fronteiras nacionais. De maneira geral, o livro expõe de que forma o projeto estadunidense foi construído e consolidado, com base nos amplos (e perenes) uso e articulação de narrativas específicas, assim como de seus mitos fundacionais.
Desigualdade do direito de voto na pedra fundamental do país
No primeiro capítulo, dividido em cinco subseções, a pesquisadora relata e explica, em detalhada exposição, a configuração de poder das treze colônias, divididas em três grandes grupos. No primeiro deles, que contava com terras férteis no Sul, foi adotado o regime escravocrata das plantations, seguindo as mesmas bases econômicas latifundiárias do restante das colônias portuguesas e espanholas, além de possuir grande parte de sua população seguindo a Igreja Episcopal. O segundo, estabelecido no Norte, tinha sua economia baseada no comércio, nas pequenas agriculturas e na extração de madeira para uso em estaleiros, além de rejeitar tanto a Igreja Protestante quanto a Episcopal. O terceiro grupo, as colônias intermediárias, ostentava uma demografia populacional diversa, com grande número de artesãos e de comerciantes, além de manterem um posicionamento moderado em questões divisivas. Foram, por exemplo, os primeiros a defenderem a abolição da escravatura.
Família de escravos em plantação de algodão no sul dos EUA, no século XIX (Crédito: Bettmann Archives/Getty Images)
O projeto de formação de uma nova nação, trabalhado no primeiro capítulo, contou com um extenso processo histórico de tentativa e erro para a implementação da união pós-independência (obtida em 1776), de maneira a evitar o colapso do novo país. O primeiro período, que contou com uma etapa confederativa, ou seja, de união política sem um governo central forte, foi crítico: o Congresso Continental, instância criada para administrar as vontades dos Estados, não tinha força, nem poder vinculante. Dessa forma, em 1787, 55 delegados de todos os estados (exceto Rhode Island) se reuniram para criar o documento que, baseado em premissas gerais, viria a se tornar a Constituição dos Estados Unidos.
A partir de movimentações políticas, a Constituição foi assinada por 11 dos 13 estados, e a Federação foi constituída em 1788. Para garantir a assinatura por parte da maioria, o processo eleitoral, segundo Junqueira, foi essencial. Nas eleições, que seriam censitárias e indiretas, cada eleitor (branco, pois negros, indígenas, ou outros grupos, seriam equivalentes a um quinto de eleitor) votaria em delegados de seu próprio colégio eleitoral, e estes escolheriam seu presidente.
Plasticidade dos símbolos e das narrativas da América
No segundo capítulo, dividido em três subseções, a autora trabalha os mitos fundacionais e a construção da narrativa da nação, que parte da ideia de um passado glorioso e do excepcionalismo americano. Forjada, a identidade única de uma nação dividida em treze colônias foi baseada em símbolos de pertencimento, cujas “tradições inventadas” e história “comum”, construída, fossem compartilhadas entre todos os cidadãos. Como o mito dos Pais Fundadores da nação, brilhantes e excepcionais, que seriam exemplos de vida pública (embora, em alguns casos, tivessem escravos) e se tornaram a face do projeto vencedor federalista da experiência estadunidense. De maneira específica, alguns outros símbolos do neoclassicismo e do puritanismo recuperado foram utilizados para estabelecer o chamado mito da América. A parte mais interessante, assinala Junqueira, é que esses símbolos não são utilizados somente por um partido, ou por grupo de pessoas. A narrativa da nação é trazida e relembrada por diversos personagens de relevância política e social para fins diversos, em diferentes contextos e épocas, cujo meio é o sentimento de união e de pertencimento.
O terceiro capítulo, subdividido em sete, debruça-se sobre a expansão territorial para o Oeste, que ocorre de maneira muito rápida (em somente 65 anos) e de maneira brutal para a natureza e para os povos originários. A pressão pela expansão territorial dos 13 estados iniciais partiu de várias frentes, com tensões nas fronteiras das colônias inglesas, francesas e espanholas, além dos confrontos com a população indígena. O primeiro grande esforço para a penetração de novos territórios se dá com Thomas Jefferson, a partir de 1803, cujas intenções também eram estratégicas, políticas e econômicas. A expedição, que durou de 1804 a 1806, chegou à costa do Pacífico, no estado que hoje se chama Oregon. Para além do Oeste, entretanto, ainda havia outras ameaças ao projeto de nação: o império espanhol, ao sul; e as colônias inglesas, ao norte. Com uma guerra vencida contra a Inglaterra, e a compra de parte do território espanhol, agora as preocupações se voltavam, novamente, para o Oeste.
Mary Junqueira trabalha, de maneira muito interessante, a presidência de Andrew Jackson como ponto de virada na construção da narrativa da nação no quarto capítulo. Ao defender o direito ao voto para todo o homem branco (que pagasse impostos), Jackson inaugura uma era de participação popular. Ele mesmo era considerado um homem comum, simples, que chegou à presidência por seus próprios esforços: assim se deu, em parte, a construção da narrativa meritocrática tão comum nos Estados Unidos. Outra política adotada pelo então presidente foi a remoção dos povos originários para dar lugar ao expansionismo branco.
Cartaz de venda de terras indígenas, durante a Dawes Act, de 1887 (Fonte: PBS Learning Media)
Apoiando-se no autoarvorado direito natural de ocupação do território, a expressão Destino Manifesto ganha força, já que remetia à predestinação dos puritanos ao fundarem as treze colônias no Novo Mundo. A migração para o Oeste resultou na perda de metade do território do México, cuja população era vista como inferior. Para finalizar o capítulo, a autora aborda, brevemente, a Corrida para o Ouro, que ajudou na ocupação e na habitação do território da Califórnia e levou à popularização do jeans como vestimenta dos trabalhadores das minas.
Novos heróis para novos mitos
Dentro da perspectiva da narrativa da nação, Junqueira trabalha dois mitos importantes construídos durante o século XIX: a criação de um estado mental (chamado de wilderness) para a contemplação da natureza – e a própria ideia da natureza intocada, selvagem, árida – e o sentir-se abalado, ou perturbado, pela falta de civilização; e o mito do homem da fronteira, que se torna um herói, desbravador e destemido, caçador de animais selvagens e de indígenas. Vale pontuar que, embora Junqueira utilize de maneira contínua o termo índios, o mais correto seria povos indígenas, originários, ou ainda, nativos. Uma outra observação importante: no inglês, há a separação entre borders, como fronteira territorial, e frontier, como a linha divisória entre a civilização e o wilderness, ou o bárbaro. Essa linha divisória, especialmente no momento de expansão para o Oeste, segue imaginária e móvel, amplamente trabalhada em materiais jornalísticos e editoriais, que constroem a imagem do cowboy e dos fora-da-lei. São os novos heróis da nação, também calcados nos mitos fundacionais, que ditavam novas regras de conduta da população em geral, e dos que habitariam o Oeste, em particular. Sem eliminar os demais mitos e heróis.
No capítulo cinco, são trabalhadas as principais causas da Guerra Civil, em dez subcapítulos, em detalhe. Embora a causa racial tenha sido um dos principais motivadores para o conflito, o dissenso entre Norte e Sul tem outros aspectos importantes. Economicamente, por exemplo, enquanto o primeiro considerava a manufatura e a produção industrial como de maior importância, o último entendia que o país deveria ser um campo cultivado, uma democracia de fazendeiros. Ao mesmo tempo, ambos mantinham relações comerciais entre si, de maneira que suas produções não eram independentes. O Oeste também se torna uma questão sensível, já que os projetos de “conquista” deveriam seguir um dos modelos de produção da época, com implicações na organização do tecido social e no pagamento de impostos. O movimento abolicionista, cujas origens datam do século XVIII, era um assunto que gerava grandes tensões no Congresso. Mesmo entre os abolicionistas, os negros ainda eram vistos como inferiores. Muitos acreditavam que estes deveriam ser tutelados e educados, em um processo de libertação gradual. Outros entendiam que a abolição deveria ser rápida e definitiva, mas estes não eram maioria.
O estopim da guerra foi a eleição de Abraham Lincoln, cujo Partido Republicano defendia a abolição. Sete estados do Sul se separaram da União, tornando-se Estados Confederados com uma Constituição própria, que garantia a escravidão e os impostos reduzidos de importação. O Norte, que dependia de matéria-prima do Sul e cujos bancos tinham a maior parte de seus empréstimos tomada por sulistas, não tinha como maior interesse o fim da escravidão, mas evitar a secessão. No discurso de Abraham Lincoln após a consagração de Gettysburg como cemitério nacional, elementos de coesão da nação (como a invocação dos Founding Fathers e a questão da “Casa Dividida” pela escravidão) foram utilizados para evocar a união do país. Poucos dias depois, o presidente foi assassinado com um tiro na cabeça, tornando-se mártir da causa. Ele próprio é elevado ao panteão dos heróis da nação, cuja excepcionalidade de seus projetos colocou-o ao lado dos Founding Fathers.
O fim da Guerra Civil traz o nascimento de organizações construídas por e para homens brancos, como a White League e a Ku Klux Klan. Como explica Junqueira, os homens brancos que participavam dessas instituições acreditavam serem eles as vítimas e que, por isso, deveriam ser protegidos de negros fora-da-lei e bárbaros. Mesmo com o fim oficial dessas organizações, os ideais supremacistas brancos nunca deixaram de vigorar nos Estados Unidos.
Rumo à consolidação da nação
O sexto capítulo está dividido em sete subseções sobre o processo de construção moderna do país após o período de Reconstrução. Versa sobre o processo de industrialização, a importância das ferrovias para a integração da união e a adição do mito do self-made man, a partir da concentração de capital massiva no período pós-guerra. A concentração de renda massiva leva a um movimento progressista, a favor da regulação dos monopólios e da reforma do sistema eleitoral. Esse movimento compreendia que os Estados Unidos estavam corrompidos e que os vícios da população (assim entendidos como prostituição, álcool e divórcio) deveriam ser banidos, ou superados, pela educação.
Mapa da expansão do sistema ferroviário nos EUA (1830-1990)
Nesse período, Junqueira também explicita a restrição dos povos indígenas a reservas cada vez menores, ou até mesmo o genocídio de diversas comunidades de populações originárias. No Monte Rushmore, considerada terra sagrada para os indígenas, foram esculpidos os rostos dos considerados heróis da nação: um símbolo de que o “selvagem” havia sido controlado, subjugado e derrotado. Outras perturbações no tecido social, como a imigração e o crescimento de grandes cidades, também são desenvolvidos pela autora.
No sétimo e último capítulo, divide-se a expansão dos Estados Unidos para além de suas fronteiras territoriais, em cinco subseções. Com participações em exposições universais – um importante cartão de visitas, para o exterior, sobre as potencialidades e riquezas da potência debutante –, crescimento econômico e consolidação do Estado nacional, o país se sentia pronto para ocupar um espaço no sistema internacional que julgava ser seu. Após a Guerra Hispano-americana, já no final do século XIX, os Estados Unidos anexam e intervêm em diversos territórios do Caribe e se estendem até a Ásia, espaços considerados estratégicos para o país, incluindo a construção do Canal do Panamá. Evocando os mitos fundacionais de destino, sua autointitulada missão seria a de levar a “civilização” (seu protestantismo, capitalismo e valores morais) para outros espaços do planeta, um comportamento que poderia ser visto como de um hegemon em construção.
Comentário crítico
Junqueira traça, de maneira brilhante, uma cronologia que vai da construção dos primeiros momentos do Estado Nacional, no século XVIII, até o reforço dessa versão dos Estados Unidos nos séculos XX e XXI. Tanto conservadores quanto progressistas se utilizaram dos símbolos e dos mitos para mobilizar referências compartilhadas pela nação.
Ao contrário da propagada da linearidade, a narrativa da nação, tão bem trabalhada pela autora, é constituída por vitórias e reveses, por adaptações e distorções de uma realidade vivida em grupo por estadunidenses. Como em um pacto, os cidadãos aceitam e reproduzem essa narrativa, que foi tantas vezes questionada por negros, indígenas, imigrantes, ou outros grupos que não se sentem representados por ela.
Ainda assim, é importante o reconhecimento do poder dessa narrativa, que serve de referência e modelo para os cidadãos durante a história da nação estadunidense. De maneira rica, sólida e minuciosa, a autora a expõe e nos faz questionar nossas próprias histórias e referências.
Síntese
Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900)
Autora: Mary Anne Junqueira
Editora: EdUSP
Ano: 2018
184 páginas
* Ingrid Marra é pesquisadora voluntária do OPEU, graduada pelo curso de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ (IRID/UFRJ) e integrante do Laboratório Orti Oricellari de Economia Política Internacional, onde pesquisa moeda enquanto instrumento de pressão política em países não-alinhados à hegemonia estadunidense, hierarquia monetária internacional e criptomoedas. Participa, desde 2020, do Grupo de Estudos em Neurociências da Universidade Estadual do Norte do Paraná e é Assistente de Pesquisa, desde 2022, do International Relations Microfoundations Laboratory. Contato: Linkedin.
** Texto escrito como parte da avaliação proposta pela disciplina eletiva de Geopolítica Contemporânea dos Estados Unidos, ofertada em 2021 pela professora colaboradora do IRID/UFRJ e editora do OPEU, Tatiana Teixeira, responsável por sua revisão e edição final. Nova versão recebida em 2 de maio de 2022 e incluída na Série Excepcionalismo Americano: discursos, símbolos e narrativas de uma nação. Esta Resenha OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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