Como o Brasil deve agir diante de disputas hegemônicas na América Latina?
Presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping, em 5 jun. 2019 (Crédito: Alexey Druzhinin/The Presidential Press and Information Office)
Por Luciana Wietchikoski e Lívia Milani*
Através da sua comandante, a general Laura Richardson, em 8 de março, o Comando Sul (SOUTHCOM) apresentou ao Congresso estadunidense seu plano anual de ação. Considerada uma das principais instituições dos Estados Unidos da América (EUA) para atuação na América Latina desde a década de 1960, oficialmente o Comando Sul coordena ações das Forças Armadas no território que vai do sul do México à região da Antártida. Reproduzindo a estratégia de segurança nacional elaborada por Washington, opera com o objetivo de manter a hegemonia da potência do norte na região por meio do uso de suas bases militares, operações de “cooperação” em defesa, “parcerias” de ajuda humanitária e de instituições para treinamento e educação das forças militares e de segurança latino-americanas.
A tenente-general Laura J. Richardson, então comandante do Exército Norte dos EUA (à esq.), em visita a St. Croix, em 18 jul. 2019 (Crédito: U.S. Army National Guard/Army Sgt. Priscilla Desormeaux)
Em 2022, alinhando-se com a estratégia global dos EUA, o plano acentuou algumas tendências. Em especial, a retórica de ameaças ligadas às disputas geopolíticas internacionais dos EUA com China e Rússia – agravadas nas últimas semanas em razão da guerra na Ucrânia. De acordo com o plano do Comando Sul, “nossa ameaça condicionante número um é a República Popular da China, nossas ameaças secundárias são a Rússia, Organizações Criminosas Transnacionais e Irã”.
Embora a presença das duas potências já fosse retratada como desafio à hegemonia estadunidense na América Latina em anos anteriores, esta fala é nova. É mais explícita e coloca definitivamente a competição com grandes potências como a prioridade central das Forças Armadas estadunidenses, à frente das principais ameaças definidas desde o início dos anos 2000, agora marginalmente citadas: narcotráfico, terrorismo e crime organizado. Como afirmou o representante (deputado) republicano Mike Rogers em audiência do Comitê de Forças Armadas, “Enquanto nos concentramos na crescente ameaça da China e na terrível influência de Putin na Ucrânia, não devemos negligenciar os muitos desafios de segurança nacional em nosso próprio quintal [América Latina] [….]”.
A fala do deputado escancara a persistente percepção das elites estadunidenses que enquadram a América Latina como área submetida à sua hegemonia. Isto implica que as relações entre os países da região e outras potências, especificamente aquelas não alinhadas aos EUA, sejam vistas como desafios à segurança nacional da potência e, portanto, devam ser contidas. Em um cenário no qual especialmente a China, mas também a Rússia, situam-se como atores cada vez mais importantes na América Latina, seja do ponto de vista econômico, ou diplomático, o aumento das tensões e a busca de retomada hegemônica se apresentam como desafios cruciais. Neste contexto, a disputa desencadeada pela insistência estadunidense em definir a região como “área de influência” tende a diminuir a margem de manobra dos países latino-americanos para pensar seus próprios problemas e soluções.
Para o “quintal” estadunidense, a comandante afirma que a China é um competidor estratégico de longo prazo, enquanto a Rússia seria uma ameaça mais imediata. A general afirma que a influência chinesa se manifesta em diversos âmbitos, como econômico, financeiro, tecnológico, diplomático e, inclusive, o militar. Esta é uma importante intensificação da retórica. Seu antecessor, general Craig Faller, também apontava a China como ameaça à hegemonia regional dos EUA, porém o mesmo não chegava a admitir que tal dinâmica estivesse presente no âmbito propriamente militar.
De acordo com Richardson, a China custeia viagens de oficiais das forças de segurança latino-americanas para cursos e treinamentos militares em Pequim ministrados em espanhol e em português e modelados nos programas de educação militar profissional dos EUA. Além disso, há um aumento no número de militares de nações parceiras que viajaram para o país com o intuito de receber treinamento em mandarim, segurança cibernética e doutrina militar chinesa. Os EUA também se preocupam com a transferência de equipamentos de segurança e de telecomunicações, interpretados como alavancas para se obter acesso e ganhar o favor das forças de segurança regionais. Um exemplo de infraestrutura considerada de “uso dual” é a estação de pesquisa espacial construída e administrada pela China na província argentina de Neuquén, que supostamente poderia rastrear e atingir satélites dos EUA. A visão de tais projetos como ameaçadores não condiz, necessariamente, com interesses latino-americanos. Os mesmos provavelmente refletem ambições chinesas, porém podem ser relevantes no sentido de diversificação de parcerias e de aquisição de conhecimento.
A preocupação com a expansão econômica chinesa, já apresentada em outros momentos, permanece como ponto central do discurso estadunidense, que ressalta a construção de infraestrutura e o projeto Cinturão e Rota da Seda. Nesse sentido, o plano de ação do Comando Sul apresenta os empréstimos e investimentos diretos chineses – citando áreas como portos, telecomunicações, estradas e pontes – como prejudiciais aos receptores, uma forma de atuação predatória. Este argumento é, no entanto, contestável. Os investimentos chineses na América Latina são, em muitos aspectos, semelhantes aos provenientes de outras regiões, inseridos na lógica do lucro, e costumam ser vistos como vantajosos pelos países da região por amenizarem necessidades em infraestrutura de comunicações, energia e outros setores.
Com a Rússia, as principais preocupações se voltam para as relações mantidas com Venezuela, Cuba, Nicarágua e para o que Richardson rotula de “operações de desinformação”. Alguns dos exemplos apresentados sobre a suposta campanha russa de desinformação são, contudo, pífios. A general apresenta a atuação do canal de televisão Russia Today (RT) e da agência de notícias Sputnik como exemplos principais. Richardson chega a dizer que a decisão equatoriana de tirar a RT do ar é muito boa. No Brasil, a RT em espanhol foi bloqueada no YouTube.
Embora seja possível argumentar que tais canais passam uma visão de mundo e sobre a ordem internacional mais próxima à narrativa russa, o mesmo ocorre, com ideologia oposta, no caso dos canais de mídia estadunidenses que atuam na região. A cobertura da guerra pela CNN Brasil, por exemplo, ocorre imbricada de uma visão de mundo e de valores estadunidenses. Neste sentido, falar em cancelar canais de difusão de notícias se aproxima muito de colocar limites à liberdade de imprensa.
A escalada das tensões com China e Rússia não se apresenta, contudo, apenas de forma discursiva. O Comando Sul afirma que atuará de maneira mais “agressiva” por meio, por exemplo, do apoio da iniciativa privada (como o Conselho das Américas) para aumentar “a conscientização pública sobre as atividades malignas de nossos adversários em diversas áreas e ampliando as histórias de sucesso do setor privado dos EUA”. A organização também promete intensificar uma de suas principais estratégias de atuação: formação de “parcerias” com os militares latino-americanos. Apesar do termo utilizado e das alegações de “soluções compartilhadas para problemas comuns”, sobretudo as bases educativas e ideológicas são de origem exclusivamente estadunidense. Fundamentada em treinamentos e em “cooperação” interagências (de defesa e segurança) com os chamados aliados e parceiros latino-americanos, o objetivo é “compartilhar as melhores práticas e alinhar iniciativas com os homólogos das Interagências dos EUA no combate à República Popular da China, Rússia, Organizações Criminosas Transnacionais e outros atores malignos”.
Nesta estratégia de atuação com base em “parcerias”, o Brasil é central para os EUA, tendo em vista o peso econômico, territorial e demográfico do país na região. Sobre a posição do Brasil, é possível perceber duas dinâmicas paralelas: a das relações entre as presidências e a das relações entre os militares. No primeiro ponto, apesar da aproximação que ocorreu desde o governo de Michel Temer e do alinhamento ideológico promovido pelo governo Bolsonaro, recentemente houve alguma flutuação e esgarçamento das relações bilaterais, principalmente pelo apoio de Jair Bolsonaro aos intentos golpistas de Donald Trump, em 6 de janeiro de 2021, e, mais recentemente, no contexto da guerra na Ucrânia.
Vale lembrar que, em fevereiro, o presidente brasileiro visitou Moscou, o que foi fortemente criticado pelos estadunidenses, ainda mais quando Bolsonaro se “solidarizou” com a Rússia. Posteriormente, as falas sobre neutralidade e equilíbrio como posições do Brasil frente ao conflito também foram mal recebidas em Washington. O Brasil, na condição de membro não permanente da Conselho de Segurança da ONU, foi muito pressionado por Antony Blinken para que condenasse a invasão da Ucrânia. Apesar de os estadunidenses demandarem convergência completa neste tema, buscando colocar freios ao posicionamento do país, o governo brasileiro segue a tradição diplomática de longa data e se recusa a apoiar as sanções impostas por Washington e por Bruxelas.
Do ponto de vista das relações entre os militares, contudo, parece haver uma continuidade do alinhamento que, apesar de pouco comentado, pode ser rastreado ao menos desde o governo Temer e mapeado pela ocorrência de treinamentos militares. Em 2017, foi anunciada a execução de treinamento militar no território brasileiro com a presença de participantes estadunidenses e colombianos. Desde 2019, cogita-se a entrada do Brasil como parceiro extrarregional da OTAN, além dos acordos assinados em março de 2019 para a participação de empresas brasileiras nas cadeias produtivas da área de defesa. Já durante o atual governo, em fevereiro de 2021, os militares brasileiros participaram de treinamento em solo estadunidense e, posteriormente, receberam suas contrapartes para treinamento conjunto em novembro.
Militares americanos e brasileiros na cerimônia de abertura da Operação Southern Vanguard 22 em Lorena, em 6 dez. 2021 (Crédito: U.S. Southern Command)
Recentemente, em meio ao contexto de guerra na Ucrânia, o comandante do Exército Brasileiro, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, viajou para os EUA com a pretensão de encontrar seu homólogo. De acordo com Twitter do Exército Brasileiro, no dia 18 de março foi realizada reunião com o componente Sul do Exército estadunidense para planejamento do próximo exercício conjunto, que ocorrerá nos EUA. O general Paulo Sérgio também se encontrou com o chefe do Estado-Maior do Exército estadunidense, James Charles McConville. No contexto delineado nos últimos anos, a visita do general brasileiro parece intensificar o processo de aproximação no âmbito militar já presente há algum tempo.
Em momento no qual as disputas hegemônicas globais se refletem mais claramente e com maior intensidade na América Latina, reafirmar as tradicionais posições da política externa brasileira voltadas à equidistância com as principais potências, à busca de autonomia e à diversificação de parcerias se mostra fundamental para nossos interesses nacionais. O diálogo bilateral e os investimentos estadunidenses em infraestrutura pela iniciativa Build Back Better World (B3W) podem ser importantes. Contudo, também devemos manter um relacionamento pragmático com outras potências como China, Rússia e os europeus, que apresentam grande interesse em investimentos comerciais e financeiros, além de serem importantes parceiros nos campos político e diplomático.
No campo militar, diante das assimetrias em relação aos EUA, é necessário criticidade sobre até que ponto o alinhamento atende aos interesses brasileiros. Manter o contato e o acesso dos militares à potência pode ter vantagens, mas é preciso cautela para que a proximidade não crie expectativas de atuação conjunta, ou de subordinação. Neste campo, também é importante diversificar relações e buscar conhecimento e tecnologia em outras latitudes, especialmente em convergência com outros países do Sul Global. Regionalmente, manter diálogo com todos os nossos vizinhos é fundamental, tendo em vista que compartilhamos fronteiras e desafios. É importante que as relações no eixo Norte-Sul não comprometam tal diálogo e é essencial buscar soluções endógenas para problemas em comum.
As transformações geopolíticas recentes impõem maiores desafios para a Política Externa Brasileira. Em um mundo conflagrado, é preciso cautela ainda maior. Os EUA buscam evitar a presença de “novas potências” na região, ao mesmo tempo em que demandam “parceria” dos latino-americanos, o que se traduz em pressões por alinhamento. Em outras palavras, os EUA percebem com crescente desconfiança as relações entre países latino-americanos e a China, mesmo em temas econômicos e comerciais. Lidar com este cenário desafiador – sem comprometer as relações com nossos dois maiores sócios comerciais – demanda reflexão, pragmatismo e prudência.
* Luciana Wietchikoski é pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea da UFSC (GEPPIC) e do Grupo de Estudos em Segurança e Política Internacional da UFRGS. Contato: wietch.luciana@yahoo.com.br.
Lívia Milani é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), bolsista Capes-PrInt, e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos de Defesa e Internacional (GEDES). Contato: livialpm@gmail.com. Twitter: @Livia_LPM.
** Publicado originalmente na seção na Coluna Democracia e Diplomacia do UOL, em 29 mar. 2022. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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