‘Atuação dos EUA na COP-26 foi cirúrgica’, diz pesquisador Pedro Vasques ao OPEU Entrevista
Crédito da Arte: Natália Constantino
Por Luísa Azevedo*
No capítulo “A política ambiental norte-americana para a terceira década do século XXI: limites e possibilidades à luz da conjuntura e do passado”, publicado no livro recém-lançado De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas, organizado por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian (Editora Unesp, 2021), o pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) Pedro Henrique Vasques aborda a transição do governo de Donald Trump para o de Joe Biden da perspectiva da emergência do ambientalismo contemporâneo nos Estados Unidos.
O tema é parte significativa de seu amplo projeto de pesquisa nesta área. Ao observar a conjuntura, o especialista destaca as consequências da atual crise sanitária mundial e a percepção, acentuada por este contexto, sobre a relevância e a urgência, cada vez maior, da agenda ambiental. Em paralelo, o pesquisador trata do agravamento da polarização política doméstica estadunidense entre 2020 e 2021 e suas implicações para o avanço (ou não) desta que foi elencada como uma das áreas prioritárias da plataforma da presente administração democrata.
Dessa maneira, Pedro Vasques pondera sobre as possibilidades de atuação do governo Biden-Harris na agenda climático-ambiental. Entre outros pontos, o autor argumenta que, a despeito das limitações impostas pela conjuntura, o governo Biden redireciona a agenda ambiental para políticas de bem-estar social, baseando-se na defesa de um futuro coletivo que trará mais benefícios e será mais adequado – assim diz o presidente – às necessidades e às demandas da sociedade estadunidense contemporânea.
Foi sobre estes e outros assuntos que o pesquisador conversou com o OPEU Entrevista.
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OPEU: Gostaria de começar por sua trajetória acadêmica, que passa pelo Direito (PUC-RJ e Uerj) e pela Ciência Política (Unicamp), com uma sólida pesquisa dedicada ao Brasil. De que forma e por que os Estados Unidos se tornaram uma parte importante de sua pesquisa?
O meu trabalho de pesquisa começa seguindo uma linha dogmática, muito comum nos cursos do Direito, voltada para disputar os sentidos e as formas de aplicação das normas jurídicas, se valendo de ferramentas próprias desse campo. No entanto, à medida que essas análises são conduzidas sob uma perspectiva crítica, torna-se possível observar que tal abordagem é permeada de limitações, em especial, quando confrontada com aspectos e dinâmicas, os quais as dimensões mais positivistas do Direito se esforçam em evitar. Considerando-se que minhas análises se referiam especificamente à regulação do meio ambiente, essa opção de tensionar a dogmática jurídica, buscando pensar o Direito com base em outros ferramentais teóricos, produzia em mim uma série de dúvidas que as narrativas dominantes sobre a trajetória da proteção ambiental não davam conta de solucionar. Para repensar esse modelo explicativo, foi necessário colocá-lo em xeque, desfazê-lo e, finalmente, propor uma alternativa. No âmbito dessas tarefas, seria impossível conduzi-las sem começar pelos Estados Unidos, lugar onde vão-se consolidar as principais referências conceituais que serão trabalhadas no campo internacional, influenciando tanto as dinâmicas nacionais internas, quanto a redefinição das relações entre nações.
OPEU: Como esse capítulo voltado para prospecções da conjuntura norte-americana se insere e contribui para seu projeto de pesquisa, no INCT-INEU, sobre a trajetória do ambientalismo contemporâneo?
Como trato no meu projeto de pesquisa, a dinâmica de consolidação das condições que tornam possíveis a emergência do ambientalismo a partir da segunda metade do século XX está profundamente entrelaçada com a predominância de formas específicas de relacionamento entre as nações que emergem no Pós-Guerra e com as expectativas de cidadania que passam a caracterizar as democracias representativas ocidentais. Condição essa que se acentua e ganha contornos próprios no âmbito da oposição posta pela Guerra Fria – e que se modifica, novamente, após seu encerramento.
Nesse contexto, se, para parte da sociedade estadunidense, a promoção de uma agenda ambiental passaria a compor os contornos necessários dessas expectativas de cidadania, para outra parcela da população, tais demandas representariam exatamente o oposto disso. Ou seja, uma barreira que os impossibilitaria de concretizar, no regime democrático, seus desejos, interesses e perspectivas. Será, a partir desse antagonismo, que a gestão do meio ambiente nos Estados Unidos será posta no debate eleitoral, opondo democratas e republicanos. E isso será feito, com base em uma pluralidade de estratégias que irá compor o repertório de ambas as perspectivas. É possível observar, no entanto, a configuração de vetores principais que orientarão a mobilização dessas ferramentas.
No caso dos grupos progressistas, a agenda ambiental será tomada sob uma perspectiva negativa, na qual seria indispensável repensar o modelo de vida estadunidense na direção de reduzir sua produção e consumo em favor de formas alternativas de relacionamento e de exploração dos recursos naturais – que, em regra, estará bem próxima do discurso ambiental dominante. Já para os conservadores, essa demanda imperativa por uma transformação comportamental será percebida como um ataque direto aos pressupostos fundacionais da nação, impedindo, ou restringindo, o acesso e a exploração de bens que seriam seus por direito. E, na medida em que essas políticas inviabilizariam a concretização de suas expectativas de cidadania, tal narrativa ambientalista contribuiria para produzir, também, uma horda de descontentes não somente em relação à referida agenda, mas, sobretudo, no tocante ao próprio regime democrático.
Essa percepção acerca dos evidentes limites do discurso ambientalista dominante nos Estados Unidos não é recente. Todavia, sua incorporação à agenda eleitoral propositiva do partido da situação vem caminhando do modo mais lento do que a ascensão dos eleitores insatisfeitos com essa oposição. E a aposta na manutenção dessa agenda anacrônica está ligada, em especial, à manutenção de um discurso ambiental profundamente elitista e que ainda domina os principais debates no país. De todo modo, fica evidente que a campanha presidencial de Biden-Harris ao longo de 2020 buscou incidir diretamente sobre essa clivagem, com a inclusão de uma agenda ambiental positiva.
Isso é explicitado de forma mais evidente após a incorporação, de modo central, em sua plataforma de governo da ideia de um Green New Deal. Isso também foi feito, incluindo-se os debates sobre justiça ambiental, permitindo abarcar nesse debate frações marginalizadas da população estadunidense. Mesmo que o atual governo democrata implemente de forma limitada essa agenda ambiental propositiva e um pouco mais inclusiva, a partir dessa proposta de pensar em termos prospectivos, é possível vislumbrar que o discurso ambiental eleitoral experimentou, na campanha presidencial de 2020, uma rearticulação relevante que, estima-se, provocará mudanças importantes na forma como essa agenda é conduzida por grupos progressistas nos Estados Unidos. O que, sem dúvida alguma, também suscitará transformações significativas nas estratégias das articulações conservadoras. O desafio está em compreender como essas reações se darão, considerando-se os vários possíveis cenários, indo do sucesso ao fracasso completos, na implementação da agenda ambiental de Biden-Harris.
OPEU: Neste primeiro ano do governo dos democratas Joe Biden e Kamala Harris, como você avalia as políticas ambientais adotadas pelos Estados Unidos em um momento de recuperação pós-pandemia?
Ainda que as primeiras ações do governo Biden-Harris no início do ano tenham causado alguma surpresa, as avaliações gerais mais atuais não escapam em muito das reflexões feitas ao longo da campanha eleitoral. Ou seja, a reversão das políticas adotadas por Donald Trump se daria de forma mais imediata, notadamente, nas rearticulações institucionais e na revogação de regulações administrativas. Mas, mesmo com relação a essas últimas, regramentos estabelecidos há mais tempo já seriam objeto de maiores dificuldades, considerando-se não só questões ligadas à segurança jurídica, mas também operacionais, associadas aos custos e ao tempo necessários para sua adaptação. Modificações legislativas, como a aprovação do plano de investimentos, dependerão de concessões e de amplas e difíceis articulações, tornando seu processo mais lento, mas sem dispensar, com isso, um alto grau de incerteza. De todo modo, com a vinculação da agenda ambiental à econômica, espera-se que determinados avanços sejam, de fato, verificáveis ao longo do atual governo democrata. O que não significa que isso atenderá de forma satisfatória às demandas de ambientalistas e dos grupos periféricos e marginalizados que vislumbraram em seu governo uma maior possibilidade de verem seus interesses atendidos.
Nesse contexto, também não é possível descartar a influência das dinâmicas internacionais sobre a capacidade de Biden-Harris de promoverem essa agenda no plano interno. Ambas as situações operam, produzindo limitações umas às outras. No caso da política externa estadunidense, a tentativa de retomar um protagonismo – com destaque para o debate climático – não se refere apenas às decisões de Trump, mas a um comportamento que é dominante, excepcionado em circunstâncias muito específicas, desde a Rio-92, quando países europeus assumiram para si o espaço deixado pelos Estados Unidos. Sob essa perspectiva, a tarefa de John Kerry [enviado especial dos EUA para o Clima, foto abaixo] não é apenas ainda mais complexa do que se poderia imaginar. Aumenta também sua importância para conseguir enfraquecer oposições e promover a agenda ambiental no plano doméstico.
Kerry no painel ‘Climate Action is Ocean Action’ da COP-26, em nov. 2021, em Glasgow (Crédito: Karwai Tang/UK Government)
OPEU: Em novembro passado, ocorreu o 26º encontro da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021, a COP-26. O que se pode esperar do impacto dos acordos firmados pelos Estados Unidos, no plano internacional, no andamento da ambiciosa agenda verde de Biden?
Podemos olhar a estratégia estadunidense na COP-26 tanto nos seus efeitos de curto quanto de longo prazo. Como anteriormente mencionado, a tentativa de retomar uma posição de protagonismo demandará dos Estados Unidos mais do que o desfazimento das ações de Trump e a celebração de acordos não vinculantes e voluntários com outros países. Trata-se de uma longa caminhada para a recuperação de um espaço abandonado quase que por completo durante cerca de três décadas.
Ainda que a reaproximação do país do debate internacional sobre meio ambiente e clima não tenha produzido grandes efeitos imediatos – afinal, tanto o texto final da COP-26 não atendeu às expectativas da comunidade internacional, como os acordos paralelos firmados pelos Estados Unidos não estimam grande confiança sobre seus efeitos –, em uma perspectiva de curto prazo, a atuação da delegação estadunidense na COP-26 se deu de forma cirúrgica. Ela contribuiu para impedir a formulação de um texto que fosse oneroso para os Estados Unidos – sem que o país fosse publicamente exposto –, ao mesmo tempo em que essa versão final (que propôs o phase down no uso de carvão, ou seja, sua redução gradual) manteve algum grau de sinalização para as promessas de campanha de Biden-Harris, sem perder toda aderência. Em outras palavras, ao se opor às propostas iniciais da Índia no sentido de incluir todos os combustíveis fósseis, e não apenas o carvão, os Estados Unidos se privavam de terem de lidar com esses impactos sobre a indústria do petróleo, enquanto admitiam a possibilidade de administrar essas obrigações junto à exploração de carvão que, em território estadunidense, encontra-se em declínio, mas não nos países em desenvolvimento, muito mais dependentes dessa fonte de energia.
Diante dessa oposição, a Índia acabou figurando como um dos grandes vilões da conferência, uma vez que propôs, em vez do phase out, o phase down, como estratégia para limitar os desdobramentos dessa abordagem estrita sobre o carvão na sua economia. Assim, ainda que possamos falar em uma ambiciosa agenda verde confeccionada no governo democrata, é preciso também estar atento aos detalhes de sua implementação, pois estes explicitam contornos não tão aparentes diante da grandiosidade dos discursos, das propostas e das ações adotadas.
* Luísa Azevedo é pesquisadora voluntária de Iniciação Científica do Opeu, pesquisadora do Núcleo de Avaliação da Conjuntura América do Norte & Central no Boletim Geocorrente – Periódico de Geopolítica e Oceanopolítica e graduanda de Defesa e Gestão Estratégica Internacional do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid/UFRJ).
Ela entrevista Pedro Vasques, pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pedro é autor, entre outros, do capítulo “A política ambiental norte-americana para a terceira década do século XXI: limites e possibilidades à luz da conjuntura e do passado”, do livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas, organizado por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian (Editora Unesp, 2021).
** Edição e revisão: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 16 dez. 2021. Esta entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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