América Latina

Conflito na Ucrânia fragmenta relações EUA-América Latina

Resolução foi aprovada por 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções (Crédito: ONU News)

Por Lívia Milani*

O posicionamento diplomático da América Latina frente à guerra na Ucrânia tem refletido especificidades nacionais, com nuances e divergências da narrativa estadunidense, e elevada fragmentação regional, apesar das pressões de Washington pela condenação à Rússia. A situação mostra a dificuldade dos Estados Unidos em impor sua visão e a crescente importância de parcerias com outras potências – inclusive a Rússia – para a América Latina.

Nenhum país latino-americano votou contra a resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2 de março que condenou o ataque russo à Ucrânia, porém três se abstiveram – Bolívia, Cuba e Nicarágua –, e a Venezuela foi impossibilitada de votar por falta de pagamento à organização. Os presidentes destes quatro países emitiram declarações, condenando a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Leste Europeu. Outros países, como Brasil e Argentina, apresentaram uma postura mais ambígua, condenando o ataque no âmbito da ONU, mas evitando assinar o documento da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre o tema.

A posição da América Latina pode ser dividida em três grupos: os que condenam a guerra e se aproximam dos Estados Unidos; os que condenam as ações da OTAN, considerando-as precursoras do conflito; e aqueles que apresentam posições ambíguas. Entre os primeiros, destacam-se Chile, Colômbia e México, além de grande parte dos países do Caribe e da América Central. Entre os que têm uma posição mais palatável à Rússia, estão Cuba, Venezuela e Nicarágua e, por fim, Brasil e Argentina adotaram uma postura ambígua. O que explica essas posições?

Posições de condenação à invasão

A condenação à invasão russa em termos que replicam a narrativa estadunidense foi expressa no âmbito da OEA, onde foi aprovada declaração de um grupo de países. O documento condena a “ilegal, injustificada e não provocada invasão da Ucrânia pela Federação Russa”. A declaração foi assinada por Chile, Colômbia e México, assim como por diversos países da América Central e do Caribe, mostrando a continuidade da influência estadunidense em regiões mais próximas ao seu território nacional. O documento não foi apoiado por Argentina e pelo Brasil e, no caso no México, a assinatura se combina com um discurso crítico às sanções unilaterais.

Há uma coincidência esperada entre os países que têm cooperação relevante com os Estados Unidos e que se posicionam de acordo com as demandas da potência. É o caso da Colômbia, que mantém uma parceria de longo prazo com os Estados Unidos, especialmente nos campos da segurança e do combate ao narcotráfico, sendo, inclusive um parceiro global da OTAN. O presidente Iván Duque foi recebido na Casa Branca em 10 de março deste ano, onde ouviu agradecimentos por condenar a invasão russa, imediatamente e sem ressalvas. Na ocasião, A Colômbia foi designada como aliado extra-OTAN, e apresentada por Joe Biden como pivô da segurança regional. O timing destas ações mostra a intenção de Washington de fortalecer a cooperação com seu principal aliado na América do Sul, em um momento de intensificação das rivalidades globais.

Declaración conjunta del presidente Biden y el presidente Duque sobre alianza bicentenaria entre EE. UU. y Colombia - Embajada de los Estados Unidos en ChileDuque e Biden na Casa Branca, em Washington, D.C., em 10 mar. 2022 (Crédito: Embaixada dos EUA no Chile)

No caso do Chile, a parceria com os Estados Unidos também é antiga – e envolve um Tratado de Livre-Comércio (TLC). Neste caso, tanto o ex-presidente Sebastián Piñera, quanto seu sucessor, Gabriel Boric, que assumiu em 11 de março, condenaram a invasão. O México assinou a declaração da OEA e foi favorável à resolução vetada pela Rússia no Conselho de Segurança. O presidente Andrés Manuel López Obrador se posicionou, contudo, de forma contrária à adoção de sanções contra o país euroasiático, afirmando desejar boas relações com todos os países. Honduras assinou a declaração da OEA, mas evitou criticar Putin diretamente. As posições destes três países são diferentes daquelas adotadas por seus vizinhos regionais governados pela esquerda, os quais mantêm posturas mais próximas à Rússia e críticas aos EUA.

Além da demanda de Washington para que os países da região condenem a Rússia, cabe pontuar que a tradição diplomática na América Latina é condizente com esta posição. Historicamente, a Política Exterior dos países da América Latina privilegia a defesa da soberania, da não-intervenção e da resolução pacífica das disputas nas relações internacionais. Tais princípios convergem com a condenação da invasão russa, embora isto não signifique, necessariamente, apoio total às posições dos Estados Unidos, como fica claro no caso mexicano.

Posições de apoio à narrativa russa

Entre os países que se abstiveram de condenar a Rússia, estão aqueles que têm uma política externa de afastamento em relação aos Estados Unidos, como Cuba, Nicarágua e Venezuela. Nestes casos, houve esforço de Moscou para reafirmar as relações antes da invasão à Ucrânia, telefonando para os presidentes Miguel Díaz-Carnel, Daniel Ortega e Nicolás Maduro, respectivamente, em fevereiro. Após o início da guerra, o Ministério cubano das Relações Exteriores divulgou uma nota, caracterizando a expansão da OTAN como uma ameaça à paz e à segurança internacional. Maduro e Putin conversaram por telefone em 1º de março, quando Maduro expressou apoio às “posturas decisivas” russas.

Nos últimos anos, tais países se aproximaram da Rússia, o que foi parcialmente motivado pela intensificação das tensões com Washington. Cuba, Nicarágua e Venezuela foram definidos pelo então conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, como a “troika da tirania”, e são governos, aos quais Washington impõe sanções e busca mudança de regime. No caso venezuelano, a Rússia – assim como a China – é uma parceira importante do governo por ter rechaçado o intervencionismo estadunidense. A parceria Caracas-Moscou no campo militar remonta ao início dos anos 2000, quando, após Washington desautorizar a venda de caças brasileiros com peças estadunidenses, Caracas optou pela aquisição de aviões russos. A partir de então, a parceria cresceu, sendo que as importações de armamentos pela Venezuela são concentradas em equipamento russo.

A guerra tem, no entanto, potencial de alterar parcialmente o cenário conflitivo entre Caracas e Washington. Em 5 de março, os EUA enviaram uma delegação composta de negociadores da Casa Branca e do Departamento de Estado para Caracas. Este parece ser um giro importante da política estadunidense, que, desde 2019, reconhece o opositor Juan Guaidó como presidente interino. A questão energética dominou o encontro e, pouco depois, os EUA colocaram sanções ao petróleo russo.

Anteriormente, Juan Gonzalez, responsável pela América Latina no Conselho de Segurança Nacional, havia dito que os EUA continuam reconhecendo Guaidó, mas entendem que apenas a negociação pode gerar mudanças políticas no país. Em coletiva de imprensa, o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, admitiu que algumas sanções à Venezuela podem ser revistas, caso haja avanço nas negociações entre governo e oposição. Assim, a visita de representantes estadunidenses à Venezuela mostra que o país pode ser uma saída para aliviar os efeitos negativos que a suspensão da compra de petróleo russo terá para os estadunidenses, além de evidenciar o interesse de Washington em diminuir a influência de Moscou na América Latina.

Posições ambíguas de Brasil e Argentina

Entre aqueles países que tem uma postura mais dúbia, destacam-se Argentina e Brasil. A primeira condenou o ataque e, em uma declaração de seu Ministério das Relações Exteriores, pediu um cessar-fogo. Não assinou, porém, o documento da OEA. Além disso, o presidente Alberto Fernández viajou para a Rússia no início de fevereiro. A visita teve como tônica a retomada da parceria estratégica bilateral, estabelecida em 2015, e parece ter sido motivada pelo objetivo argentino de angariar investimentos e garantir transferências de tecnologia. Em Moscou, Fernández reiterou a necessidade de superar a dependência argentina em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e a importância de estabelecer parcerias para atingir este objetivo. A retórica do presidente argentino traz de novo à tona uma questão-chave para os países latino-americanos: a defesa de um sistema internacional multipolar, que esteve muito presente nas políticas exteriores da região nos anos 2000 e que converge com o discurso russo.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, também visitou Moscou recentemente, uma semana antes do início da guerra, ocasião na qual manifestou solidariedade à Rússia. O gesto foi prontamente criticado pela Casa Branca. De acordo com o jornal americano The New York Times, o governo brasileiro havia demandado uma reunião com o presidente dos EUA e, não obtendo respostas favoráveis, indicou que poderia aceitar o convite para visitar Moscou. Após o anúncio da visita, o governo dos Estados Unidos pediu a Bolsonaro que cancelasse o encontro, o que não ocorreu. A visita a Moscou também envolveu interesses comerciais, uma vez que a produção da agricultura brasileira depende da importação de fertilizante russos.

Depois do início do conflito armado, o presidente brasileiro defendeu uma postura de “neutralidade”, posteriormente reapresentada como de “equilíbrio”. Há divergências entre as falas defendidas pelo presidente e a postura adotada pela diplomacia nas  Nações Unidas, onde houve condenação à invasão da Ucrânia e votos contrários à Rússia na Assembleia Geral e em seu Conselho de Segurança. Os Estados Unidos têm demandado uma que o Brasil adote uma postura de condenação à invasão e de apoio às sanções contra a Rússia, como expresso em telefonema entre Antony Blinken e Carlos França. As posições de Brasil e Argentina decorrem de interesses materiais e também da busca de diversificação de parcerias, temas caros à Política Exterior dos países latino-americanos.

Posicionamentos diversos, razões múltiplas

As razões para os posicionamentos dos países latino-americanos são diferentes, porém existem dimensões materiais e elementos tradicionais de política exterior que têm influência nas diversas posições adotadas. Países como Argentina, Bolívia, Nicarágua e Venezuela viram na parceria com a Rússia uma alternativa à subordinação e à dependência dos Estados Unidos. Além disso, a busca de uma ordem internacional multipolar converge com a narrativa russa. Nestes casos, há busca de financiamento e de importação de produtos importantes para estes países.

A postura próxima a Washington pode ser explicada pela importância das relações com a potência, mas há convergência entre tal posicionamento e temas historicamente caros à diplomacia na região, como a não-intervenção, a defesa da soberania, do direito internacional e da paz. Esta foi a posição adotada por aqueles países que assinaram a declaração da OEA, mas não significa, necessariamente, conforme já exposto, uma convergência total com os EUA.

Em termos gerais, a fragmentação da posição latino-americana frente ao conflito na Ucrânia mostra, por um lado, a falta de coordenação regional, que dificulta uma postura mais homogênea e o fortalecimento das vozes latino-americanas em fóruns mundiais. Por outro, também expõe a dificuldade dos Estados Unidos em difundirem sua visão de mundo em um continente que, em muitos casos, clama por autonomia e busca parcerias com potências externas ao hemisfério ocidental. Também evidencia que, ainda não sendo prioritária, a região continua a ter relevância para a potência hegemônica, como evidenciam o reforço da parceria com a Colômbia, a tentativa de negociar com a Venezuela e a busca de modificar a posição brasileira.

 

* Lívia Milani é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), assim como pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos de Defesa e Internacional (GEDES). Contato: livialpm@gmail.com. Twitter: @Livia_LPM.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 13 mar. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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