Cooperação e conexões transnacionais entre DEA e PF são cada vez maiores
Crédito: André Gustavo Stumpf/Wikimedia Commons
Por Priscila Villela*
Em fevereiro deste ano, foi divulgado o cumprimento de duas operações (Turfe e Brutium), nas quais a Polícia Federal do Brasil atuou em colaboração com a Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês) e com a Europol, da União Europeia, na desarticulação de um grupo criminoso envolvido no trânsito internacional da cocaína produzida na Bolívia, no Peru e na Colômbia. As investigações já estavam em curso há dois anos. Envolveram autoridades dos EUA, da França e da Espanha e resultaram na apreensão de toneladas de drogas, 86 mandados judiciais, troca de tiros nas ruas do Rio de Janeiro e prisão de mais de 20 pessoas no Brasil. Apesar de grandioso, este tipo de cooperação não é um episódio isolado e muito menos incomum.
Cada vez mais as polícias estão circulando transnacionalmente, ampliando o alcance de suas operações e estabelecendo conexões com seus pares estrangeiros na busca por compartilhamento de Inteligência, mas também de recursos, saberes e práticas. Ainda que geograficamente distantes umas das outras, as polícias compartilham entre si interesses e funções muito similares, o que lhes permite estabelecer uma rede de relações com lógicas próprias em nível transnacional. Constitui-se, portanto, um campo transnacional de policiamento, um subsistema relativamente autônomo de relações entre profissionais públicos e privados de diversas partes do mundo, dedicados à segurança e ao controle do crime, e que compartilham as mesmas funções, missões, saberes e visões de mundo.
Anunciada por autoridades dos Estados Unidos, a “guerra às drogas” tem sido a mais relevante força motora desses esforços, mobilizando recursos políticos e financeiros, bem como ferramentas jurídicas para que as polícias possam operar para além das fronteiras nacionais. Como parte desse empreendimento, o governo estadunidense buscou influenciar o controle de drogas de outros países relevantes e, no âmbito desse projeto, forneceu às agências estrangeiras assistência e treinamento para esse fim.
Para isso, foi criada a DEA, em 1973, agência destinada exclusivamente ao controle de drogas dentro e fora dos Estados Unidos. Progressivamente, a presença da DEA na repressão às drogas no mundo se expandiu, tornando-a a mais poderosa e capilarizada agência antidrogas do mundo.
Reconhecido como rota do tráfico internacional da cocaína produzida na América Latina, o Brasil se tornou um dos importantes alvos desses esforços. Em articulação com a Polícia Federal (PF), a DEA estabeleceu laços de proximidade significativos, tema abordado no artigo “Transnational Policing field: the relations between the Drug Enforcement Administration and the Brazilian Federal Police”, publicado no Dossiê “Segurança em Mutação: concepções, práticas e experiências no século XXI”, da Revista Lua Nova, nº 114, este ano.
Investigar essas conexões partindo da perspectiva das organizações e dos indivíduos dos escalões intermediários e inferiores das burocracias do Estado, como as polícias e os policiais, permitiu-nos compreender as decisões diárias e a transformação dos planos de governo na realidade do seu cotidiano de trabalho. Por esta razão, escolhemos operar com a escala de análise do transnacional, apoiada por estudiosos da análise de campo nas Relações Internacionais, como Didier Bigo e Anne Leander, para citar dois dos mais relevantes.
Com o intuito de fortalecer as relações com a PF, a DEA promove programas de assistência e treinamento no Brasil desde sua criação, fornecendo recursos, equipamentos, treinamentos e apoio financeiro na condução de importantes operações conjuntas. O objetivo é melhorar a capacidade da polícia brasileira de reprimir o cultivo, o processamento, o tráfico, o consumo e a exportação de drogas para os EUA.
Para citar um exemplo marcante, a prisão do famoso traficante Fernandinho Beira-Mar também contou com o auxílio da DEA e das polícias colombiana e paraguaia. Em 2002, autoridades estadunidenses chegaram a pedir sua extradição, mas ela foi negada. Posteriormente, em 2007, a Unidade Especial de Investigação da Polícia Federal (DPU), no Rio de Janeiro, conduziu uma investigação apelidada de Operação Fênix, que visou a desmantelar a organização criminosa liderada por Beira-Mar de dentro do Presídio Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. A operação recebeu suporte financeiro da Sessão de Assuntos de Narcóticos (NAS, na sigla em inglês) da Embaixada dos EUA e da DEA.
Uma auditoria realizada pelo Departamento de Justiça dos EUA revela existir pouca transparência e controle democrático sobre as atividades realizadas pela DEA e por outras agências policiais nos países estrangeiros. No Brasil, uma investigação conduzida por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) confirmou que parte dos recursos financeiros da DEA foi disponibilizada para a PF por meio de depósitos em contas nominais, sem o conhecimento do Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo um dos policiais envolvidos, Getúlio Bezerra, os EUA preferem essa forma de transferência, pois “dava mais flexibilidade, mais empenho, rapidez […] é muito mais prático dessa maneira, do que esse dinheiro entrar em orçamento, em contas e passar por mil prateleiras”. Exemplos como estes e outros desenvolvidos no artigo revelam que as relações entre a PF e a DEA nem sempre são promovidas e sustentadas pelas instâncias governamentais. Nem sempre há capacidade, ou mesmo interesse, dos respectivos Executivos em gerir as atividades rotineiras destas agências.
Nesse processo, a DEA exerceu uma enorme influência sobre as políticas de drogas e sobre as estruturas dos corpos burocráticos antidrogas da América Latina, incluindo o Brasil. Uma vez acumulado prestígio e reconhecimento internacional, a própria PF passa a demandar e a reproduzir essas práticas, tidas como avançadas, eficientes e moralmente superiores, como mecanismos miméticos, ou de emulação. O acesso a treinamentos e a recursos da DEA se torna uma credencial importante dentro da PF e na relação desta com outras instâncias estatais. Segundo o então secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame:
“A DEA é uma marca, tem uma chancela que consegue informações em vários lugares do mundo. Não precisa ser necessariamente contra droga, ou armas. Mas nós vamos ter aqui no Rio de Janeiro um grupo especializado que já está junto conosco nessa luta”.
Isso não significa que não haja resistência e conflitos dentro desse campo. A presença da DEA é considerada intrusiva por algumas autoridades dos países onde ela atua. Na ocasião da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a DEA ofereceu seminários a policiais e autoridades de segurança pública. De acordo com o delegado Andrei Augusto Passos Rodrigues, “nós não pedimos, não propusemos, não indicamos nenhum curso específico. A organização, a dinâmica, os instrutores, o custeio, o local, é tudo a cargo do governo norte-americano”, o que nos leva a crer que a capacidade de oferecer recursos se traduz, igualmente, no potencial de pautar a agenda das polícias brasileiras.
Com isso, o artigo mencionado no início deste texto também pretende estimular a reflexão sobre possíveis implicações para a responsabilização democrática sobre a política de segurança pública.
O poder exercido pela DEA se baseia em diferentes estratégias, em ações coercitivas, mas, principalmente, na busca da construção de consensos. A organização de seminários e de treinamentos é uma das mais importantes estratégias, por meio das quais a DEA cria um ambiente de socialização entre polícias de diferentes partes do mundo, além de promover a disseminação de uma gama de conhecimentos por ela definida.
O objetivo é desenvolver relações de trabalho duradouras entre as polícias e construir infraestrutura institucional dentro das agências estrangeiras de aplicação da lei e dos sistemas judiciais. Como parte dos objetivos, os treinamentos também criam as bases para a harmonização das políticas e leis de drogas. Como previamente identificado por analistas, o resultado é que as políticas de drogas brasileiras, assim como o trabalho policial voltado para combatê-las, passaram a refletir as diretrizes construídas e aplicadas nos EUA.
A socialização que o campo transnacional do policiamento ofereceu à DEA e à PF permitiu que se desenvolvesse um sentimento de solidariedade entre elas, definido em torno de missões, valores, práticas e conhecimento compartilhados. Os policiais de ambas as agências se tornaram parte de uma comunidade específica em escala transnacional, por meio da qual criam laços de lealdade e confiança. A partir desse campo, a DEA construiu um hub pelo qual pôde influenciar o trabalho da PF e a própria política nacional voltada para o controle de drogas.
De uma perspectiva normativa, o trabalho publicado no Dossiê “Segurança em Mutação: concepções, práticas e experiências no século XXI” busca levantar questões sobre os limites da accountability democrática. A esse respeito, buscamos acessar, transitar e responsabilizar as estratégias de policiamento, garantindo um policiamento democrático, ao mesmo tempo em que enfrenta os desafios colocados pela era transnacional.
* Priscila Villela é professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS). Contato: pvillela@pucsp.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 10 mar. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. A versão original deste texto foi publicada no Boletim Lua Nova, do Cedec.
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