Build Back Better, polarização e os Latinos
Entrevista coletiva do presidente Joe Biden sobre a situação da economia americana, em Wilmington, DE, em 4 set. 2020 (Crédito: Adam Schultz/Biden for President)
Por Marcos Cordeiro Pires e Thaís Caroline Lacerda, do Latino Observatory*
Durante sua campanha eleitoral, Joe Biden prometeu um forte pacote de investimentos para modernizar a economia dos Estados Unidos, cujos focos eram a reconstrução da infraestrutura, a reconversão energética, o auxílio às empresas e famílias para a retomada das atividades no contexto pós-pandemia e, ainda, a ampliação da assistência social para ajudar as famílias mais pobres. Considerando-se que a maior parte da população de origem latina está na base da pirâmide social, tais medidas tiveram grande repercussão entre essa parcela dos eleitores.
O governo Biden apresentou uma série de leis relacionadas à sua plataforma de campanha conhecida como Build Back Better Plan, ou “Reconstruir Melhor”, em uma tradução livre em português. A iniciativa envolve os seguintes aspectos, os quais resumimos a seguir:
a) The American Rescue Plan (Plano de Resgate Americano): Aprovado pelo Congresso em 11 de março de 2021, este projeto garantiu recursos para o socorro das famílias e das empresas durante a pandemia da covid-19. Em suma, garantiu o pagamento de US$ 1.400 para indivíduos solteiros e chefes de família; aumentou o crédito de imposto de renda para famílias com crianças e dependentes; prorrogou o seguro-desemprego até 6 de setembro de 2021 com um benefício suplementar semanal de US$ 300, além do benefício regular de US$ 400; apoiou as pequenas empresas, ao garantir subsídios de emergência, empréstimos e também forneceu capital de crescimento para pequenas empresas de rua em áreas economicamente desfavorecidas, incluindo empresas pertencentes às minorias; entre outras medidas;
b) The Infrastructure Investment and Jobs (Investimento em Infraestrutura e Empregos): Aprovado pelo Congresso em 5 de novembro de 2021, este projeto tem por objetivo aumentar os investimentos públicos para renovar a infraestrutura dos Estados Unidos, como rodovias, pontes, ferrovias, aeroportos, portos, saneamento, geração e distribuição de energia elétrica, ampliação e melhoria da qualidade do acesso à Internet de banda larga, etc. Também prevê investimentos na modernização do parque industrial e a reorganização das cadeias de suprimento, apoiando a construção de uma manufatura avançada; e
c) The American Families Plan/The Build Back Better Act (Plano das Famílias Americanas): Este projeto, cujo nome coincide com o nome da Iniciativa mais abrangente, foi rejeitado pelo Congresso, principalmente por dois senadores democratas. O projeto previa o aumento dos investimentos em melhoria da oferta de serviços públicos, como educação infantil, educação básica, assistência a idosos e deficientes, corte de impostos para as famílias de menor renda, etc. Adicionalmente, o projeto também previa fortes investimentos no setor de energia limpa, incentivando a reconversão energética e o compromisso de longo prazo para zerar as emissões de gás carbônico.
É interessante constatar que a parte do projeto de Biden que trata de ampliação da assistência social, do enfrentamento da mudança climática e da economia verde são temas bastante sensíveis para a população de origem latino/hispânica. Em edições anteriores desta análise semanal, fizemos referência a esses temas e como eles impactam a vida desta população. A elas se juntam em importância o debate sobre uma nova abordagem à imigração e aos direitos de voto.
Indivíduo x Sociedade
De acordo com Erik Reinert, “… desde sua fundação, os EUA sempre estiveram divididos entre duas tradições: as políticas ativistas de Alexander Hamilton e a máxima de Thomas Jefferson, segundo a qual ‘o governo que governa menos é o que governa melhor!’. Com o tempo e o costumeiro pragmatismo americano, essa rivalidade foi resolvida com os seguidores de Jefferson encarregando-se da retórica, e os seguidores de Hamilton, cuidando da política”. Tal como sinaliza Reinert, as tradições intelectuais de Benjamin Franklin e de Alexander Hamilton continuam a polarizar a sociedade dos Estados Unidos até os dias atuais. Daí que os temas da intervenção estatal na economia e da assistência social aos mais pobres são extremamente controversos.
Parcelas da população, mesmo aquela passível de ser beneficiada com medidas como acesso universal à saúde, creches gratuitas, subsídios para a habitação, ou para a educação, são doutrinariamente contrárias a uma maior participação do Estado e a uma maior tributação sobre as camadas mais ricas da sociedade. É factível mencionar que parte da opinião pública seja influenciada por campanhas milionárias patrocinadas por organizações ultraliberais, como a Charles Koch Foundation, Heritage, Catho, Atlas Network, entre outras. Há, no entanto, questões históricas relacionadas às características da colonização inglesa na América do Norte que explicam, em parte, a aversão ao Estado e à centralização política.
As colônias do Norte dos Estados Unidos foram formadas por famílias que fugiram da repressão da monarquia inglesa por conta da fé que professavam. A maioria teve de suportar com seus próprios bolsos os custos da viagem marítima. Durante o século XVII, instituições sociais, como igrejas, escolas, universidades, foram construídas, graças aos esforços das comunidades. Mesmo as ações e a conquista contra os povos originários foram empreendidas com pouco apoio do Estado inglês. Pesquisas históricas podem relativizar esta informação, mas este “mito” social enraizado no estereótipo do “self-made man” é uma figura recorrente na consciência social da população estadunidense e elemento devidamente explorado pelas correntes políticas avessas a uma maior intervenção do Estado na economia e sociedade. O romance da escritora Ayn Rand Atlas Shrugged, de 1957, explora este mito e exalta o papel dos ricos na luta contra a regulamentação do Estado.
No campo oposto, quando se pensa na adoção de políticas em favor de um maior intervencionismo estatal e de maior assistência social aos pobres, remete-se, quase que automaticamente, à ala mais progressista do Partido Democrata, como os nomes de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, influenciados em maior ou menor grau pelas tradições do New Deal, da social-democracia, do marxismo, do feminismo, ou do ambientalismo. Também nesse caso, faz-se necessário considerar a experiência histórica para resgatar outras contribuições, como o populismo e o evangelismo social. A primeira influência remonta a Andrew Jackson, que, em 1832, afirmou: “é lamentável que os ricos e poderosos muitas vezes dobrem os atos do governo para seus propósitos egoístas”. Outra importante influência “populista” foi a de William Jennings Bryan que, em 1896, durante sua primeira tentativa de se eleger presidente dos Estados Unidos, defendeu uma política monetária expansionista baseada na prata, no imposto progressivo e na nacionalização das ferrovias. Tais propostas tiveram grande ressonância entre os pequenos fazendeiros, principalmente no Sul dos Estados Unidos.
É preciso considerar, ainda, a atuação das igrejas locais em auxílio às famílias mais vulneráveis, papel que gradativamente se estendeu para o Estado a partir do começo do século XX, por conta da crescente demanda por assistência que ocorreu com a rápida industrialização e urbanização. Diferentemente da corrente calvinista, que defende o individualismo e a predestinação, igrejas como a Católica e a Metodista valorizam a caridade e a solidariedade aos mais pobres. Especialmente esta última se engajou no chamado movimento conhecido como “evangelismo social”, que buscava a melhoria das condições de vida dos pobres e miseráveis por meio da aplicação dos princípios bíblicos da caridade e da justiça. Derivado do movimento metodista, o Exército da Salvação teve um papel importante durante a Grande Depressão, quando organizou campanhas para alimentar trabalhadores desempregados. Nesse sentido, as políticas que se seguiram ao New Deal de Franklin D. Roosevelt foram, em parte, uma consequência desses movimentos populistas e religiosos, e não apenas por influência do keynesianismo, ou da social-democracia europeia. Veja aqui um histórico da implantação do Estado de Bem-Estar Social, a partir do governo Roosevelt.
Os Latinos e as percepções sobre o Build Back Better
A polarização entre estas duas posturas frente ao papel do Estado está levando à paralisação da estrutura política dos Estados Unidos e gerando muita frustração entre os eleitores de ambas as alas em disputa, pois as propostas majoritárias dos Partidos Republicano e Democrata são barradas pela falta de consenso ou, na sua ausência, pela falta de uma clara maioria que possa garantir a aprovação de seus projetos. O fracasso do governo Biden em aprovar as seções que tratam do pacote ambiental e social do Build Back Better reflete esse problema, pois, se de um lado os democratas demandam o aumento do gasto público e dos impostos sobre os mais ricos, os republicanos defendem o corte de impostos e a diminuição do tamanho do Estado.
É interessante notar que a comunidade de latinos/hispânicos também se divide em campos opostos, em que os grupos mais afluentes do sul de Miami e do Vale do Rio Grande, no Texas, são contrários à iniciativa de Joe Biden. O aumento do apoio dos latinos ao Partido Republicano foi tratado aqui. Naquela notícia, chamamos a atenção para a questão dos valores conservadores, notadamente, a questão da defesa da família, e também sobre o receio da perda de empregos no setor de petróleo e gás, como no caso do estado do Texas, por conta de uma descarbonização da matriz energética dos Estados Unidos, algo que também impacta a Virgínia Ocidental, grande produtora de carvão e reduto eleitoral do senador democrata Joe Manchin.
Podemos resumir a posição desse grupo com a declaração do presidente da The LIBRE Initiative, Daniel Garza, sobre a derrota do Build Back Better no Senado, em 19 de janeiro de 2022:
“Como temos dito há meses, esse enorme gasto excessivo do governo resultará em perda de empregos, salários estagnados e piorará a inflação para milhões de americanos – incluindo muitos na comunidade hispânica que estão lutando para encontrar trabalho e sustentar suas famílias. Aplaudimos o senador Joe Manchin por entender essas preocupações e rejeitar os apelos para aumentar o tamanho do governo e, ao mesmo tempo, aumentar a dívida de nosso país […] Mas não temos a ilusão de que este é o fim da linha para os formuladores de políticas determinados a forçar elementos de uma agenda de extrema esquerda. A LIBRE está empenhada em continuar a educar a crescente comunidade latina do nosso país sobre os perigos da crescente dependência do governo, gastos excessivos e aumento da nossa dívida nacional”.
Em contrapartida, vale a pena citar o artigo do congressista Juan Vargas (D-CA), defendendo sua posição em favor do projeto de Joe Biden e explicando como o projeto impactaria a vida das comunidades latinas:
“Em novembro, juntei-me aos meus colegas democratas na Câmara e votei a favor do Build Back Better Act. O projeto propõe fazer investimentos históricos em comunidades latinas. É uma vitória para os latinos que criará empregos, impulsionará nossa economia e investirá em pessoas trabalhadoras em todo país. Com esses investimentos transformadores em assistência médica, creche e moradia acessível, poderíamos melhorar a vida de quase todos os latinos […] O Build Back Better Act inclui um investimento de US$ 390 milhões para reduzir os custos com cuidados infantis e expandir o acesso à pré-escola gratuita para crianças. No meu distrito, a falta de acesso à pré-escola acessível afeta inúmeras famílias. Em todo país, apenas 59% das crianças latinas estão matriculadas em programas pré-escolares. Colocar mais crianças na escola e aprender desde cedo só beneficiará a próxima geração da nossa nação. O Build Back Better também garante que a maioria das famílias trabalhadoras não pague mais de 7% de sua renda em cuidados infantis. Como resultado, os pais podem ficar tranquilos, sabendo que seus filhos estão seguros enquanto permanecem empregados, tendo mais dinheiro no bolso para ajudar suas famílias e investir em nossa economia em crescimento”.
É um discurso otimista, feito para reforçar sua posição política. Mas os votos de dois senadores democratas derrubaram o projeto e postergaram os benefícios advindos da estruturação de um Estado de Bem-Estar Social para as famílias mais pobres, não apenas latinas.
Como podemos notar, há um contraste muito grande entre as opiniões de Garza e de Vargas. Refletem as duas visões de mundo que separam a comunidade latina. De um lado, os grupos mais bem estabelecidos, que depois de muitas privações conseguiram realizar o “sonho americano”, mesmo que, para isso, tenham usufruído dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. São trabalhadores formais, pequenos empresários, profissionais liberais, etc. que querem esquecer as duras condições de seus pais e “chutar a escada” para uma nova geração de concorrentes. Isso pode ser visto no apoio dos latinos/hispânicos ligados ao Partido Republicano às restrições a uma nova leva de imigração. Também reflete a crise de identidade desse segmento, que traz no sangue sua ancestralidade, mas que busca garantir aquilo que consideram como os “privilégios” merecidos pelo mito do “self-made man”.
De outro, estão as gerações mais recentes de imigrantes, que enfrentam muitas dificuldades para se estabelecer no país e se sentem inseguros e receosos quanto ao futuro. Estão fora do mercado formal de trabalho, vivem em condições precárias, alguns vivem no país sem documentos e, de forma geral, esperam que o processo político possa oferecer condições equitativas para que também possam usufruir de sua quota do “sonho”.
Estas diferentes visões de mundo coexistem entre os imigrantes integrados e aqueles recém-chegados. Isso nos remete ao cinema, mais especificamente ao filme “Gangues de Nova York”, em que a geração mais antiga de imigrantes buscava se diferenciar dos novatos e tratava de demarcar seu território com unhas e dentes, fosse pela arrogância, pela violência, ou pela humilhação.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Thaís Caroline Lacerda é coordenadora do Latino Observatory e doutora em Ciências Sociais (Unesp-Marília). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.
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