Estados Unidos da América: uma democracia restrita
(Arquivo) ‘À venda’, diz cartaz em protesto perto do Capitólio, em Washington, D.C., em 13 abr. 2016 (Crédito: Stephen Melkisethian/Flick)
Por Marcos Cordeiro Pires e Thaís Caroline Lacerda, do Latino Observatory*
Mesmo com a pandemia, as eleições de 2020 obtiveram a maior participação eleitoral desde 1900, apesar dos ataques políticos e intimidações que ocorreram, em grande medida, por ações de uma nova onda conservadora que facilitou o reavivamento de grupos neofascistas no país. Os ataques ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, ocorreram nesse contexto, em que Donald Trump e seus partidários exortaram uma massa de apoiadores para inviabilizar a nomeação de Joe Biden, alegando fraudes generalizadas no pleito. A “grande mentira” que “envenenou” a política estadunidense, e que Biden costuma relembrar em alguns discursos, diz respeito ao tom ameaçador de Trump sobre fraudes eleitorais. Na atualização anterior de nosso site, fizemos menção a esse clima de radicalização.
Vale ressaltar que as eleições presidenciais recentes dos Estados Unidos têm-se caracterizado pelo elevado nível de polarização e pelas pequenas margens que definem o candidato vencedor. Em 2016, apesar de receber menos votos populares, Donald Trump ganhou a eleição por somar mais votos no Colégio Eleitoral. Naquele ano, em estados “swing”, as vantagens em favor de Trump foram muitos estreitas, como de 44 mil, na Pensilvânia; 23 mil, em Wisconsin; e 11 mil, em Michigan. Nas eleições de 2020, ocorreram resultados similares, mas desta vez em favor de Joe Biden: Geórgia, 12 mil; Wisconsin, 20 mil; e Arizona, 11 mil. Um último dado a ser considerado pelas últimas eleições foi o aumento da participação popular, pois, em 2016, 136 milhões de pessoas compareceram para votar e, em 2020, este número saltou para 158 milhões.
Nesse contexto, em que cada voto conta, literalmente, facilitar ou dificultar a inclusão de novos eleitores pode ser decisiva. Na Geórgia, por exemplo, ocorreu um grande esforço político para incluir eleitores de minorias, como afro-americanos e latinos, liderado pela democrata Stacey Adams, que fundou a Fair Fight Action 2020, uma organização de direitos civis que mobilizou esta parte do eleitorado no registro para votar. Estima-se que, por sua liderança, foram incorporados ao colégio eleitoral do estado da Geórgia cerca de 800 mil eleitores. Destaca-se que, em 2016, Trump obteve 2,09 milhões de votos contra os 1,88 milhão de Hillary Clinton. Em 2020, a votação de Trump subiu para 2,46, mas a de Joe Biden foi de 2,48 milhões.
A mobilização latinos e afro-americanos, segmento que tradicionalmente apoia o Partido Democrata, provocou uma avalanche de medidas por parte dos republicanos com vistas a dificultar o voto das minorias. Segundo o relatório do Brennan Center for Justice, um instituto americano para o direito e a política sem filiação partidária, cujos dados de pesquisa são referenciados constantemente por Joe Biden, “na esteira das eleições de 2020, uma onda sem precedentes de leis de votação restritivas e esforços de sabotagem eleitoral estão ocorrendo nos estados, com maior probabilidade de ocorrer este ano (2022). Também estamos no meio de outro ciclo de extrema manipulação partidária (gerrymandering). Esses e outros ataques à democracia muitas vezes têm como alvo principalmente as comunidades afrodescendentes”.
Ainda segundo o Brennan Center, no ano de 2021, ao menos 19 estados aprovaram 34 leis restritivas de voto. Foram mais de 440 projetos de leis com disposições restritivas apresentadas nas seções legislativas em 49 estados americanos. Conforme o instituto, os números apresentados bateram o recorde não somente em quantidade de leis estaduais de voto promulgadas, como também pelas características muito mais restritivas em comparação histórica desde o ano de 2011, quando o instituto passou a mapear e a analisar as legislações eleitorais. Mais de um terço de todas as leis de votação restritivas promulgadas desde então foram aprovadas em 2021.
Em contrapartida, outros dados apresentados pelo mesmo instituto demonstram alguns recuos por parte do Legislativo ao promulgar ao menos 62 leis estaduais com disposições expansivas em 25 estados. Os pesquisadores consideram, no entanto, que “essa legislação expansiva não equilibra a balança”, já que as leis restritivas de voto foram promulgadas em estados que já têm o histórico de limitações nesse sentido, assim como as leis expansivas de voto conseguiram campo em estados mais progressistas no tema. Conforme a mesma pesquisa, “em uma tendência emergente, leis restritivas em quatro estados – Geórgia, Iowa, Kansas e Texas – impõem penalidades criminais novas, ou mais severas, a funcionários eleitorais, ou a outros indivíduos. Essas novas leis criminais impedirão que os funcionários eleitorais e outros cidadãos que auxiliam os eleitores se envolvam em tarefas comuns, legais e, muitas vezes, essenciais. As pessoas na Geórgia agora podem ser acusadas de crime por distribuir água, ou lanches, para eleitores que aguardam na fila das urnas. Em Iowa e Kansas, as pessoas podem enfrentar acusações criminais por devolverem cédulas em nome de eleitores que precisam de assistência, como aqueles com alguma deficiência. E, no Texas, os funcionários eleitorais podem enfrentar processos criminais se encorajarem os eleitores a solicitar cédulas por correio …”.
Há ainda uma série de novas propostas de leis com disposições restritivas de voto que devem ser apresentadas neste ano, quando há eleições de meio de mandato. As propostas variam desde o estabelecimento mais rígido de requisitos para o voto, como a redução dos votos por correio, dentre outros dispositivos. Um resumo das leis promulgadas por estado no ano de 2021, tanto com disposições restritivas, como com disposições expansivas, podem ser encontradas aqui.
Para tentar fazer frente às iniciativas republicanas para dificultar o voto das minorias e das famílias mais pobres, o Partido Democrata apresentou no começo de 2021 três iniciativas: (1) a Freedom to Vote Act; (2) a John Lewis Voting Rights Advancement Act; e (3) a Electoral Count Act.
As principais medidas: propostas pela Freedom to Vote Act são: tornar o dia da eleição um feriado federal; estabelecer o registro eleitoral on-line, automático e no mesmo dia; estabelecer um mínimo de 15 dias de votação antecipada, inclusive durante pelo menos dois fins de semana; instituir a votação por correio com amplo acesso às urnas e rastreamento de cédulas on-line, além de entrega simplificada de correspondência eleitoral pelo Serviço Postal dos EUA; facilitar a identificação de eleitores; proibir a manipulação partidária, ao exigir que os estados usem certos critérios no desenho de novos distritos congressionais; exigir que os estados usem cédulas de papel verificáveis pelos eleitores e realizem auditorias pós-eleitorais; subsidiar recursos para os estados, de modo a garantir a segurança cibernética e a fortalecer os padrões de segurança cibernética para equipamentos de votação; vetar a demissão e a remoção de funcionários eleitorais; aumentar a transparência no financiamento de campanhas; criar um programa de financiamento público para as eleições para a Câmara; estabelecer uma obrigação federal para que as campanhas denunciem a interferência estrangeira no processo eleitoral.
A John Lewis Voting Rights Advancement Act buscará, por sua vez, desfazer as decisões que derrubaram, ou enfraqueceram, os principais componentes da histórica Lei dos Direitos de Voto, de 1965. Mais especificamente, ela cria uma fórmula para restaurar a exigência de pré-autorização federal, obrigando os estados com histórico de discriminação a buscarem permissão do governo federal antes de promulgarem novas regras de votação, ou planos de redistritamento.
Por fim, a Electoral Count Act é uma atualização para o ato de contagem eleitoral de 1887, que determina como o Congresso conta votos eleitorais e fornecerá um caminho ao Legislativo americano para resolver eleições contestadas. O objetivo é acabar com as ambiguidades que levaram o ex-presidente Donald Trump e seus aliados a pressionarem o ex-vice-presidente Mike Pence a derrubar a eleição de Joe Biden.
As propostas dos democratas foram alvo de duro ataque por parte de Donald Trump. Em 28 de fevereiro de 2021, ele afirmou que as leis eleitorais propostas pelo governo Biden iriam “registrar, automaticamente, todos os beneficiários da assistência social para votar”.
Tais iniciativas democratas contra as legislações restritivas de voto em todo país foram inviabilizadas pelos senadores republicanos, apesar da tentativa de alteração da “regra de obstrução”, derrotada no Senado na quarta-feira, 19 de janeiro, por 52 contra 48 votos. No ano passado, os democratas do Senado buscaram por quatro vezes levar ao plenário o projeto de lei federal de voto, o Freedom Vote Act, e foram repetidamente impedidos pelos republicanos por aquela regra. É importante chamar atenção, mais uma vez, para o papel dos senadores democratas Joe Manchin (D-WV) e Kyrsten Sinema (D-AZ) no sentido de inviabilizar as reformas eleitorais propostas por seu próprio partido.
Frente ao fracasso em modificar as regras eleitorais, resta aos democratas aumentar a mobilização dos grupos sociais tradicionalmente vinculados ao partido, como a comunidade latino/hispânica e os eleitores afro-americanos, e também superar a elevada impopularidade de Joe Biden, cujo governo não conseguiu entregar os investimentos do projeto Build Back Better, a reforma da imigração e, tampouco, as mudanças na legislação com vistas a ampliar a participação democrática no processo eleitoral. Além disso, terá de enfrentar os impactos negativos da crise inflacionária, a nova onda da covid-19 e a desmoralização decorrente da retirada de tropas do Afeganistão.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Thaís Caroline Lacerda é coordenadora do Latino Observatory e doutora em Ciências Sociais (Unesp-Marília). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.
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