Internacional

Por que precisamos ler George Kennan para compreender o conflito da Ucrânia?

Fumaça preta sobe de aeroporto militar em Chuguyev, perto de Kharkiv, na Ucrânia, em 24 fev. 2022, início da ‘operação militar’ anunciada pelo presidente Vladimir Putin, no país vizinho (Crédito: Aris Messinis/AFP-JIJI)

Por Augusto W. M. Teixeira Júnior*

Era maio de 1945, os aliados venciam o Terceiro Reich e conquistavam a tão sonhada paz. Compartilhando com suas contrapartes britânicas de uma perspectiva cautelosa acerca da confiabilidade da União Soviética, George Kennan, então alto funcionário do Departamento de Estado americano em Moscou, publicou o documento que ficou conhecido como “O Longo Telegrama”, posteriormente publicado em 1947 como “As Fontes da Conduta Soviética”.

A relevância central dessa obra está no fato de que ela contribuiu para dar corpo e sentido à nascente Guerra Fria. Mais importante, propunha uma (geo)estratégia para lidar com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ao lado de Henry Kissinger, George Kennan fora ao mesmo tempo guerreiro e intérprete da Guerra Fria. Nutria também uma apurada sensibilidade sobre como enfrentar seu oponente estratégico. É notável a utilidade de seus escritos para a compreensão do mundo em que vivemos, em particular a guerra que agora enfrenta a Ucrânia.

Uma das contribuições de maior relevância de sua reflexão foi a ideia de Contenção Geoestratética da então União Soviética. Ideia presente em teóricos da geopolítica clássica, como Halford Mackinder e Nicholas Spykman, Kennan e outros tornaram possível o convencimento do establishment político dos Estados Unidos acerca da centralidade dessa estratégia para a Guerra Fria. E aí é onde reside o detalhe: a variável tempo. A leitura da realidade internacional por Kennan era realizada com sensibilidade histórica e empatia, fundamentais para conhecer seu inimigo. Com isso, a dissolução da União Soviética entre 1989 e 1991 foi um evento que alterou radicalmente os termos em que se jogava no tabuleiro geoestratégico.

Mentalidade da Guerra Fria no mundo pós-soviético

A Federação Russa emergia como principal herdeira da União Soviética, controlando seu arsenal nuclear e o que restara dos mais modernos sistemas de armas. Mesmo com o desmembramento do país em 15 repúblicas independentes, a Rússia permanecia um colosso territorial com implicações geopolíticas ainda atuais. A Rússia fora vencida pelo Ocidente, abraçara o capitalismo e a democracia. O parto dessa nova Rússia foi doloroso, marcada por crises econômicas, guerras e perda de prestígio e influência no seu entorno estratégico. É neste ponto que, em 1997, Kennan alerta para os riscos da contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o Leste Europeu. Sobre as conversações a respeito da ampliação da Aliança Atlântica, Kennan afirmava que “Espera-se que tal decisão [alargamento da OTAN] inflame as tendências nacionalistas, antiocidentais e militaristas na opinião russa; tenha um efeito adverso sobre o desenvolvimento da democracia russa; restabeleça a atmosfera da Guerra Fria nas relações Leste-Oeste e impulsione a política externa russa em direções decididamente contrárias ao nosso interesse”.

Infographic: How NATO Expanded Eastwards | StatistaFonte: Katharina Buchholz, 25 jan. 2022. Statista.

Como resultado da evolução da “política de portas abertas” da OTAN, em detrimento das preocupações de segurança da Rússia, República Checa, Hungria e Polônia foram admitidas em 1999 e, em 2004, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia se tornaram oficialmente membros. Em abril de 2009, Albânia e Croácia também entraram para a Aliança, além de Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020). No decorrer do processo de alargamento, ocorreram discussões entre OTAN e Moscou.

Como Kennan alertava em retrospecto, porém, “Os russos são pouco impressionados com as garantias americanas de que isso não reflete intenções hostis. Eles veriam seu prestígio (sempre mais elevado na mente russa) e seus interesses de segurança como afetados adversamente. Eles não teriam, é claro, outra alternativa senão aceitar a expansão como um fato consumado militar. Mas eles continuariam a considerá-la como uma rejeição do Ocidente e provavelmente procurariam em outro lugar por garantias de um futuro seguro e esperançoso para si mesmos”.

Infelizmente, o prognóstico de Kennan de que a expansão da OTAN no pós-Guerra Fria consistia em um “erro fatal” se mostrou correto. Os resultados desse processo podem ser agrupados em duas perspectivas sobre o mesmo problema. Por um lado, a adesão à OTAN de diversos países, outrora membros do Pacto de Varsóvia, aumentava sua segurança, muitos dos quais democracias recentes em busca de maior segurança (OTAN) e prosperidade (União Europeia). Por outro, o alargamento da OTAN acirrava o dilema de segurança vivenciado pela Rússia, situação na qual o acréscimo da segurança de seus vizinhos e países de sua outrora área de influência reduzia sua própria segurança. É imperioso notar que a reação russa à transformação geopolítica de sua antiga área de influência se deu tanto no governo Boris Yeltsin, percebido como pró-Ocidente, como na administração de Vladimir Putin. E isto nos leva para a consideração acerca da guerra que se desenvolve atualmente na Ucrânia.

Guerra da Ucrânia como culminação da crise geopolítica entre Rússia e OTAN

A “operação militar especial” anunciada por Moscou é, na prática, uma guerra, um clássico exemplo do uso da força militar para subordinar seus adversários à sua vontade. O que fora iniciado como uma guerra limitada e fait accompli em 2014, escalou agora para objetivos típicos de uma guerra ilimitada, cujo objetivo proclamado é a mudança de regime com a alteração do status quo político da Ucrânia. Como ressaltaria Carl von Clausewitz, a guerra nada mais é do que a continuação da política com a entremistura de outros meios. Observe-se que, entre 2014 e 2022, desenvolveu-se uma crise prolongada. A derrubada do governo pró-Moscou de Víktor Yanukóvytch alterou as condições do frágil equilíbrio que fazia a Ucrânia pendular entre a Europa Ocidental e a Rússia. Com a erupção da guerra civil na região de Donbass e a anexação da Crimeia pela Rússia, Moscou sinalizou que escalaria a intensidade das ações para impedir que a Ucrânia entrasse na OTAN.

Fonte: George Barros, Kathryn Tyson e Thomas Bergeron – Institute for the Study of War, 2022

Com o flagrante fracasso dos Protocolos de Minsk, com acusações de desrespeito por ambos os lados, a crise escalou no final de 2021 até fevereiro de 2022. No período, a Rússia buscou alterar o comportamento da Ucrânia mediante coerção, buscando compelir Kiev a acatar suas preferências, como a desistência de sua candidatura para o ingresso na OTAN. Como podemos observar, a estratégia coercitiva russa falhou, tendo na guerra um instrumento disponível para mudar o comportamento de seu interlocutor estratégico. Esse expediente não é inédito na história recente. A guerra russo-georgina em 2008 foi mais um episódio que denota uma linha vermelha traçada por Moscou no sentido de cessar o alargamento da OTAN para o leste.

Aqui não está em questão a moralidade das ações, mas sim a busca por lançar luz sobre a racionalidade delas. Nesse sentido, ainda que possa ser enquadrada como ilegal à luz da Carta de São Francisco, de 1945, a ação de força russa na Ucrânia se assenta no peso atribuído ao seu desejo de não permitir que a Aliança se expanda. Esse desígnio tem sido publicizado por Moscou por diversos meios, mais notadamente na “Doutrina Militar da Federação Russa”. Por essa razão, apesar do esforço feito por países ocidentais para sancionar a Rússia de forma a alterar seu curso de ação, para Moscou, sair da Ucrânia sem um resultado positivo não é uma opção que esteja na mesa. Entretanto, qual resultado positivo poderia transformar o atual jogo de soma negativa, onde para que um ganhe outro tem de perder, em um jogo de ganha-ganha? Para tal, os líderes dos países ocidentais deveriam reler George Kennan.

Solução “Finlândia” como acomodação do antagonismo de vontades

Apesar de a Ucrânia ser um país soberano e independente, país algum existe no vácuo. Feliz ou infelizmente, a geografia exerce um peso importante nas opções políticas e de futuro das nações. Conforme dissertamos, a manutenção do objetivo de Kiev em se tornar membro da OTAN tende a escalar ainda mais a intensidade do conflito com consequências incontroláveis. Assim sendo, como resguardar as preferências de Kiev em seu próprio dilema de segurança com a Rússia? A resposta mora ao lado.

Suécia e Finlândia são países europeus, não-membros da OTAN com notável histórico de neutralidade durante e após a Guerra Fria. Ambos guardam também um histórico difícil com a Rússia. A Finlândia, que travou duas guerras contra a ex-URSS na primeira metade do século XX, atualmente vê crescer na opinião pública a percepção de que o país deveria entrar na OTAN. Entretanto, os custos envolvidos no abandono de uma política de neutralidade foram recentemente elevados pela ameaça de Moscou, caso Finlândia e Suécia optem por entrar na Aliança. Até o momento, o status de neutralidade é uma condição que tem permitido moderar as tensões com Moscou. A falta de poder militar que a participação em uma aliança militar poderia agregar é compensado pela preparação constante em todos os setores da defesa nacional.

Michela Giraud (@MichelaGiraud) / TwitterDelegados da Duma russa e do Parlamento ucraniano se reúnem para negociações em Belarus, em 28 fev. 2022 (Crédito: Alexander Kryazhev/TASS/Reuters)

Sabe-se que, no calor do momento, a opção pela neutralidade da Ucrânia parece descabida, dado seu contínuo desejo de ingressar na OTAN. A escalada do conflito tende, no entanto, a ceifar mais vidas ucranianas sem produzir, necessariamente, um resultado positivo para além de uma resistência heroica. É sob essa perspectiva que uma contraproposta de neutralidade, semelhante à condição da Suécia e da Finlândia, possa proporcionar à Rússia um resultado que possa ser oferecido ao seu público como uma vitória política. Possivelmente, Moscou ainda teria como alavanca o controle da Crimeia e das Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk, cuja respectiva incorporação e reconhecimento formal tornam difícil sua devolução à Kiev.

Para a Rússia, Putin poderá afirmar que impediu a expansão da OTAN em sua área de influência histórica; para a Ucrânia, Volodymyr Zelensky poderá afirmar que salvaguardou a independência do país e resguardou as vidas de seus cidadãos contra uma carnificina ainda mais brutal. Os países da OTAN, que apesar de seu apoio à Ucrânia, de 2008 até o momento não incorporaram o país como membro, ganharão, por sua vez, ao desescalar o conflito, estabilizando, assim, a frente leste da Aliança.

O problema desta solução é que ela não passa de uma possibilidade que tem em seu pressuposto que cada lado do conflito ceda. No calor do conflito, é difícil apelar pela moderação. Como nos lembra Clausewitz, a guerra não é apenas um empreendimento racional, mas também um jogo de probabilidades acrescido de paixões em antagonismo.

 

* Augusto W. M. Teixeira Júnior é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da UFPB. Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI). Pesquisador do INCT-INEU. Autor do livro Geopolítica: do pensamento clássico aos conflitos contemporâneos (Intersaberes, 2017). Contato: augustoteixeirajr@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 28 fev. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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