Internacional

Crise da Ucrânia à luz da ‘Política entre as Nações’: conjecturas sobre a vitória diplomática da Rússia

Fonte da imagem: The Second Angle

Por Thiago Lima*

Nos últimos dias, o mundo foi informado de que a Rússia invadiria a Ucrânia neste 16 de fevereiro. É a guerra com hora marcada, mas não pelo agressor (que pode ter interesse na surpresa), e sim por um ator externo, que não quer ter o fardo de, eventualmente, defender o agredido. E a guerra, aconteceu? Vai acontecer? Isso é algo impossível de se prever, porque as relações humanas são sempre abertas à criatividade e ao imprevisível, às emoções e aos erros de cálculo.

As relações internacionais não ocorrem, porém, em um vácuo de conhecimento sobre a política entre as nações, e muito menos entre nações que há séculos projetam poder no exterior e enfrentam os embates mais duros. O ápice destes embates, como sabemos, foi a Guerra Fria, que opôs o bloco Ocidental, liderado pelos Estados Unidos, e o Oriental, liderado pela então União Soviética. A Guerra Fria foi vencida pelo Ocidente sem enfrentamento direto, restando, de imediato, uma Rússia enfraquecida nos diversos quesitos que compõem o poder nacional: recursos econômicos, militares e tecnológicos; mas também culturais e políticos, no sentido da força subjetiva que é necessária para traçar planos ambiciosos e se engajar neles profundamente, a ponto de demonstrar a parceiros e adversários o que é seu “interesse vital”.

A Política entre as Nações - Hans J. Morgenthau - Traça Livraria e SeboEmbora a análise prospectiva seja sempre arriscada no âmbito das ciências sociais, creio que o pensamento de Hans Morgenthau, um dos principais autores das Relações Internacionais, tenha o objetivo de enfrentar esse desafio, o que me leva a recorrer a ele. Aos interessados, é no clássico A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz (Editora UnB/Imprensa Oficial do Estado de SP, 2003) que ele avalia as regularidades da Política Internacional, fornecendo insumo para este breve Informe. A versão integral do livro está disponível no site da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag).

O que diria o Realista Morgenthau sobre a presente crise da Ucrânia? Creio que ele sinalizaria o fim do conflito, por via diplomática, com vitória ao menos parcial para a Rússia. E que isso seria fundamental para a paz mundial. Por quê?

Clareza nos objetivos e interesses vitais das potências

Morgenthau considera que a Diplomacia é a principal forma de se manter a paz. Em um sistema internacional anárquico, onde os tratados não são escorados no uso da violência por parte de um governo mundial – a ONU está longe disso –, a acomodação entre as grandes potências é a melhor e mais eficaz forma de evitar que a política continue por meio da guerra. Isto, na era do Equilíbrio do Terror, para trazer Raymond Aron à baila, seria o desastre absoluto na forma da guerra: não apenas a derrota da paz, mas uma possível catástrofe nuclear global.

Por que, então, a Rússia precisa vencer a disputa diplomática para a paz mundial prevalecer? O raciocínio, seguindo Morgenthau (aqui, na p. 986), começa com o pressuposto de que é tarefa da Diplomacia determinar os objetivos nacionais – próprios e dos interlocutores – à luz do poder disponível para atingir os objetivos. A avaliação deve considerar tanto o poder real quanto o potencial. O próximo passo é avaliar em que medida esses objetivos nacionais são divergentes ou compatíveis. Com base nestas avalições, a Diplomacia precisa utilizar os instrumentos adequados (persuasão, conciliação e ameaça do uso da violência – o grifo é meu) para atingir os objetivos. E, continua Morgenthau à mesma página, deve fazer isso consciente de que “O não cumprimento de qualquer uma dessas tarefas pode prejudicar o êxito da política externa e, com ela, a paz no Mundo”.

Para a Rússia, o crescimento da tensão militar cumpre, portanto, a função de demonstrar que esta não apenas possui o poder de fato para um confronto militar, como também o potencial para escalar e permanecer no conflito por tempo suficiente para, talvez, desencorajar seus oponentes a partirem para a ação. Não apenas a pólvora, mas a vontade de utilizá-la, se preciso for. Já os Estados Unidos não precisam fazer demonstração de poder militar, sabidamente gigantesco, mas precisam demonstrar a vontade de utilizá-lo. E, no meio deste cenário, a Ucrânia pouco pode fazer do ponto de vista do poder, de fato, ou potencial, e mesmo sua demonstração de vontade está fracionada pelas divisões étnicas que aproximam de Moscou, mais do que de Kiev, parte considerável de sua população ao leste, mergulhada em um conflito desde 2014.

As potências europeias também pouco têm demonstrado, em termos de poder militar e de vontade, reais e potenciais, que preferem a morte à que a Ucrânia fique de fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN): sendo este o principal, alegado e crível objetivo russo. Objetivo este que é fundamental para sua segurança enquanto “interesse vital”.

Isso quer dizer que, em embates em entorno da Ucrânia, os adversários querem deixar bastante claro, uns para os outros, quais são seus objetivos e interesses vitais. Devem também, por meios explícitos e tácitos, mover-se para demonstrar o quanto estão dispostos a investir – ou a se sacrificar – para atingi-los.

Ucrânia e os objetivos e interesses vitais de Rússia e EUA

Estando claros objetivos e interesses, Morgenthau entende ser aplicável a lógica que descreverei a seguir. Em seu livro, ele aborda o modelo de forma abstrata, tratando das nações A e B. Para nosso exercício, substituiremos A e B por Rússia e Estados Unidos.

Ukrayna Devlet Başkanı Zelenskiy Biden-Putin görüşmesini 'olumlu' karşıladı​ - Yeni ŞafakPresidentes Joe Biden (EUA), Vladimir Putin (Rússia) e Volodymyr Zelensky (Ucrânia). Fonte: or6.net.

Vejamos: se Rússia e Estados Unidos têm objetivos conflitantes com relação à Ucrânia, Moscou terá de decidir se há outras maneiras de preservar seus interesses vitais, de modo a permitir que os Estados Unidos atinjam suas metas nesta questão. Se isso for possível, então a Rússia deverá abandonar seus objetivos em relação ao país vizinho. Se, no entanto, Moscou entender que seus objetivos em relação à Ucrânia são absolutamente fundamentais para os interesses vitais russos, então deverá avaliar se os objetivos de Washington na Ucrânia também são vitais para os interesses vitais dos Estados Unidos. Caso Moscou conclua que a Ucrânia não é fundamental para os interesses vitais estadunidenses, então caberá à Rússia “induzir os Estados Unidos a abandonarem aqueles seus objetivos, oferecendo aos Estados Unidos compensações equivalentes e não vitais para a Rússia. Em outras palavras, por meio da negociação diplomática, da barganha da conciliação, tem-se de buscar um meio que permita a conciliação dos interesses de Rússia e Estados Unidos”. Os grifos são meus, mas a citação é de Morgenthau, na página 970.

Por fim, caso se conclua que a Ucrânia é fulcral para os interesses vitais russos e estadunidenses, será preciso encontrar algum modo capaz de harmonizar os interesses vitais por meio da compatibilização dos objetivos. Como se observa, se este for o caso, as potências “estarão se movimentando em um campo perigosamente perto da guerra”. De novo, mesma página e grifo meu. Vimos algo assim na canônica Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, e, igualmente, em outras oportunidades ao longo da Guerra Fria.

Esta movimentação ocorre por diversas trilhas, e uma delas é a Diplomacia. Seus instrumentos (citados acima) devem ser usados de forma integrada e na medida correta, para que o resultado seja bem-sucedido para as partes envolvidas e, também, para a Paz. Obviamente, erros de avaliação podem ocorrer. Mas os interesses de Estado de ambos os países, bem como o corpo de estadistas e de profissionais que lhes dão sustentação, têm tamanha tradição que um deslize grave, ou de natureza irreversível, parece pouco provável. Fossem os governos de Joe Biden e de Vladimir Putin menos normais, mais risco haveria.

Partindo destas considerações, deve-se tentar responder à seguinte questão: a integração da Ucrânia à OTAN é um objetivo crucial para os interesses vitais dos Estados Unidos? A não integração da Ucrânia à OTAN é crucial para os interesses vitais da Rússia? Tenho a impressão de que apenas a segunda pergunta pode ser respondida positivamente. Contudo, quaisquer que sejam as respostas a essas indagações, elas devem levar em consideração uma configuração de poder muito diferente daquela que predominou desde a dissolução da União Soviética até, talvez, a anexação da Crimeia, em 2014, ou pouco antes disso.

Isto porque os anos 1990 e a primeira década dos anos 2000 foram anos de expansão da OTAN sobre o que eram áreas de influência soviética e “Estados Tampões” entre a URSS (agora Federação Russa) e o Ocidente (principalmente a Europa Ocidental). Naquele período, era menos relevante o clamor russo de que a expansão da OTAN ao leste, liderada pelos Estados Unidos, violava um interesse vital seu. A Rússia era incapaz de mobilizar poder (material e vontade) e de demonstrar que possuía esse poder, mesmo tendo o maior arsenal nuclear do mundo. Vê-se, portanto, que não é apenas uma questão de poder de fogo, mas também do desejo de usá-lo, quando usá-lo e da habilidade necessária para manuseá-lo.

O uso deste poder de fogo pode se materializar na invasão militar da Ucrânia? Como reagirão os ucranianos que rejeitam a influência russa? Estarão os ucranianos, ou outros europeus, interessados em tragar os Estados Unidos para o conflito? Depois de deixar o Afeganistão às pressas e anunciar a região do Indo-Pacífico como sua prioridade estratégica, os Estados Unidos querem entrar em um novo embate, em ano eleitoral e com um prato já cheio de imbróglios domésticos e no plano internacional? Infelizmente, para os ucranianos e para as pequenas potências, muitas vezes, esse tipo de violência corresponde mais a ajustes e a desgastes entre as grandes potências do que a problemas de interesse vital. São violências toleráveis para que não se chegue, de fato, a uma guerra mundial.

 

* Thiago Lima é professor de Relações Internacionais da UFPB, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e coordenador do grupo de pesquisa FomeRI. Contato: tlima@ccsa.ufpb.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 15 fev. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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