6 de Janeiro, radicalização da sociedade estadunidense e o fantasma da guerra civil
(Arquivo) Efeito Trump: membros da Guarda Nacional são mobilizados para reforçar segurança Capitólio após a invasão de 6 de janeiro de 2021 e às vésperas da posse de Joe Biden e Kamala Harris, Washington, D.C., 13 jan. (Crédito: Bloomberg)
Por Marcos Cordeiro Pires e Thaís Caroline Lacerda, do Latino Observatory
O principal tema político dos Estados Unidos na última semana foi a repercussão do aniversário de um ano da invasão do Capitólio, quando grupos de extrema-direita radical ligados a Donald Trump tentaram anular a sessão do Congresso que confirmaria a vitória de Joe Biden nas eleições de 3 de novembro de 2020. Aquele foi o pior momento da vida institucional dos Estados Unidos desde a Guerra Civil, iniciada em 1861, quando os estados escravistas do Sul se rebelaram contra o presidente Abraham Lincoln, defensor da abolição da escravatura. O conflito militar começou em 12 de abril e terminou somente quatro anos depois, em 9 de maio de 1865, com a derrota das forças rebeldes.
O atual nível de polarização política faz muitos analistas temerem a ocorrência de uma segunda guerra civil, visto que os partidários de Trump não se conformaram com a derrota eleitoral e continuam mobilizados contra o que chamam de manipulação da grande mídia e da conspiração “comunista e globalista” que assaltou o poder nas eleições de 2020. A despeito da crítica de líderes republicanos contra os eventos de 6 de janeiro de 2021, como o fez o vice-presidente Mike Pence há um ano, a maior parte dos membros do Partido Republicano acredita que as eleições foram roubadas e defende as reformas eleitorais para impedir uma maior participação de minorias étnicas, a quem se atribui uma fidelidade ao Partido Democrata.
Nos últimos dias, o presidente Joe Biden fez dois pronunciamentos importantes. O primeiro, no Capitólio, para tratar da invasão do Congresso ocorrida em 6 de janeiro de 2021. O segundo, em Atlanta (GA), para defender o direito de voto frente às iniciativas restritivas adotadas pelos governadores republicanos.
No primeiro discurso, Biden foi muito duro com o ex-presidente Donald Trump, acusando-o de inventar uma série de mentiras sobre fraudes na eleição, fato que mobilizou os grupos mais radicais do Partido Republicano. Disse Biden: “E aqui está a verdade: o ex-presidente dos Estados Unidos da América criou e espalhou uma teia de mentiras sobre as eleições de 2020. Ele fez isso porque valoriza o poder sobre os princípios, porque vê seus próprios interesses como mais importantes do que os interesses de seu país e os interesses dos Estados Unidos, e porque seu ego ferido importa mais para ele do que nossa democracia, ou nossa Constituição. Ele não pode aceitar que perdeu, embora tenha sido o que 93 senadores dos Estados Unidos, seu próprio procurador-geral, seu próprio vice-presidente, governadores e funcionários estaduais em todos os estados do campo de batalha disseram: ele perdeu. Foi o que 81 milhões de vocês fizeram ao votar em um novo caminho a seguir. Ele fez o que nenhum presidente na história americana – a história deste país – jamais fez: ele se recusou a aceitar os resultados de uma eleição e a vontade do povo americano. Enquanto alguns homens e mulheres corajosos do Partido Republicano estão contra ele, tentando defender os princípios desse partido, muitos outros estão transformando esse partido em outra coisa. Eles parecem não querer mais ser o partido – o partido de Lincoln, Eisenhower, Reagan, os Bushes”.
Presidente Joe Biden discursa no 1º aniversário da invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021, durante cerimônia no Statuary Hall, na referida Casa, em Washington, D.C., em 6 jan. 2022 (Crédito: Drew Angerer/Getty Images)
Conforme discutimos anteriormente, diversos estados controlados pelos republicanos estão adotando medidas restritivas ao voto, como a limitação do voto pelo correio e da distribuição de água para os eleitores que aguarda em longas filas para votar, o corte de seções eleitorais em distritos majoritariamente habitados por não brancos e, principalmente, a criação de novos mapas eleitorais que diluem o peso demográfico das minorias. No discurso de Atlanta, Joe Biden criticou os republicanos por criarem essas leis restritivas.
Disse Biden: “É por isso que estamos aqui hoje para enfrentar as forças na América que valorizam o poder sobre os princípios, forças que tentaram um golpe – um golpe contra a vontade legalmente expressa do povo americano –, semeando dúvidas, inventando acusações de fraude e procurando roubar a eleição de 2020 do povo. E agora o ex-presidente derrotado e seus apoiadores usam a Grande Mentira sobre as eleições de 2020 para alimentar torrentes, tormentos e leis antivotação – novas leis destinadas a suprimir seu voto, para subverter nossas eleições. (…) Veja, também é hora de aprovar a Lei de Avanço dos Direitos de Voto de John Lewis. Tenho tido essas conversas tranquilas com os membros do Congresso nos últimos dois meses. Estou cansado de ficar quieto! Pessoal, isso vai restaurar a força da Lei de Direitos de Voto de 1965 – aquela que o presidente Johnson assinou depois que John Lewis foi espancado, quase morto no Domingo Sangrento, apenas para que a Suprema Corte a enfraquecesse várias vezes ao longo da década passada. Restaurar a Lei dos Direitos de Voto significaria que o Departamento de Justiça pode interromper as leis discriminatórias antes que elas entrem em vigor – antes que entrem em vigor. (…) Eles querem que o caos reine. Nós queremos que o povo governe”.
As duas investidas de Biden contra Trump e seus partidários poderiam, em tese, reaglutinar as forças políticas que o elegeram. Mas justamente quando ele defende a reinstituição do direito de voto para as minorias, lideranças dessas comunidades boicotaram seu discurso em Atlanta. Em 10 de janeiro, a agência Reuters já havia advertido sobre o boicote. A principal líder pelo direito de votos das minorias da Geórgia, Stacey Abrams, uma das principais responsáveis pela vitória dos democratas no estado nas eleições de 2020, não compareceu ao evento de Biden. O ex-presidente da seção estadual da NAPCP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor) James Woodall também boicotou o evento, acusando o presidente Biden de inação.
O ex-presidente Donald Trump não perdeu a oportunidade para atacar Biden. De acordo com o site The Hill, ironizou a ausência de Abrams no evento de Atlanta: “Stacey Abrams ajudou Biden a roubar a eleição de 2020 na Geórgia, mas agora ela nem divide o palco com Joe (…) Stacey sabe que Biden realmente perdeu BIG na Geórgia e nas eleições presidenciais de 2020 como um todo, e ele tem sido tão terrível que ela agora não quer nada com ele (…) mesmo a esquerda radical percebe que a administração de Joe Biden é uma vergonha!”.
Apesar do discurso de Joe Biden para tentar aprovar uma lei federal contra as restrições ao direito de voto, a possibilidade de isso ocorrer é muito pequena, pois dois senadores democratas têm boicotado, sistematicamente, a agenda presidencial: Joe Manchin (D-WV) e Kyrsten Sinema (D-AZ). Como discutimos na análise da semana passada, a divisão política e a dificuldade de se encontrar consensos paralisam o sistema político dos Estados Unidos, ainda mais em um ano marcado pelas eleições de meio de mandato. A polarização e a radicalização política têm despertado fortes preocupações sobre o futuro do sistema democrático dos Estados Unidos, inclusive com o persistente receio de uma guerra civil, assunto que circula com força diante dos temores despertados pelo ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Uma sociedade fraturada e o fantasma da Guerra Civil
Os incidentes de 6 de janeiro de 2021 traumatizaram a sociedade estadunidense. A perspectiva da ruptura das regras constitucionais e da transição pacífica de poder ainda provoca muitos debates. Não é à toa que a menção a uma segunda Guerra de Secessão ganhou força no último ano, além de se transformar em uma preocupação recorrente para as eleições de 2024. Tratar deste tema pode parecer alarmismo, ou difusão de teorias conspiratórias, mas chama atenção o fato de o assunto ser recorrente em grandes meios de imprensa dos Estados Unidos.
Em 6 de janeiro de 2022, a CNN transmitiu uma reportagem sobre “How dangerous talk of a ‘second civil war’ is different today”, em que discute o nível de polarização política e a organização de milícias armadas que podem atentar contra a estabilidade política do país. Também em 6 de janeiro The New York Times deu destaque ao tema da guerra civil, ao publicar o artigo de Michelle Goldberg “Are We Really Facing a Second Civil War?”, em que a autora traz argumentos de dois livros lançados recentemente sobre o assunto: How Civil Wars Start, de Barbara Walters, e The Next Civil War: Dispatches From the American Future, escrito pelo canadense Stephen Marche. Ela considera improvável a eclosão de uma guerra civil, mas admite a possibilidade da criação de um sistema autocrático como os da Hungria, ou da Polônia, algo que, segundo ela, muitos governos estaduais republicanos já começaram a pôr em prática.
A revista The Economist também destacou o livro de Barbara Walter, da UCLA-San Diego. Na introdução de sua obra, a pesquisadora chamou atenção para os fortes indícios de que a situação política em seu país é bastante preocupante.
Ao mencionar sua participação na Political Instability Task Force (PITF), grupo de pesquisa sobre conflitos internacionais patrocinado pela CIA, Walter afirmou: “A ideia de que os pesquisadores pudessem prever conflitos civis era revolucionária. E assim, em 2017, quando me pediram para me juntar ao PITF, não hesitei. Quase todos os anos desde então, participei de reuniões e conferências com outros acadêmicos e analistas, nas quais estudamos a volatilidade política em todo mundo – o potencial colapso da Síria, o futuro dos ditadores africanos – e criamos maneiras de refinar ainda mais as possibilidades preditivas dos dados ao nosso alcance. Nosso objetivo sempre foi tentar antecipar a violência e a instabilidade em outros países, para que os Estados Unidos estivessem mais bem preparados para responder. Percebi algo enervante: os sinais de alerta de instabilidade que identificamos em outros lugares são os mesmos sinais que, na última década, comecei a ver em nosso próprio solo. É por isso que testemunhei os eventos em Lansing – bem como o ataque ao Capitólio dos EUA em janeiro de 2021 – com tanta apreensão. Eu vi como as guerras civis começam e conheço os sinais que as pessoas não percebem. E eu posso ver esses sinais surgindo aqui em um ritmo surpreendentemente rápido” (Barbara F. Walter. How civil wars start. New York: Crown, 2022).
Vale ainda mencionar os artigos de David Remnick, “Is a Civil War Ahead?”, na revista “The New Yorker”, de 5 de janeiro; de David Smith, “Is the US really heading for a second civil war?”, no jornal The Guardian, de 9 de janeiro; de Ron Elving, “Imagine another American Civil War, but this time in every state”, publicado pela NPR, em 10 de janeiro; e de Peter t. Coleman, “Half the U.S. Believes Another Civil War Is Likely. Here Are the 5 Steps We Must Take to Avoid That”, publicado na revista Time, em 6 de janeiro. A recorrência com que o tema é tratado pela imprensa de diferentes posições políticas é um indicativo de que um eventual conflito não pode ser negligenciado.
Ainda nesse sentido, destacamos a pesquisa nacional com jovens americanos de 18 a 29 anos do Institute of Politics/Harvard University/Kennedy Scholl, divulgada em 1º de dezembro de 2021, que indica que a maioria dos jovens americanos acredita que a democracia de seu país está “com problemas”, ou “falhando”. Um aspecto merece destaque, que é a pergunta sobre a percepção sobre as chances de verem uma segunda guerra civil em suas vidas, ou a possibilidade de que pelo menos um estado se separe da União. Para este segmento, quase metade (46%) dos jovens republicanos coloca as chances de uma segunda guerra civil em 50% ou mais, em comparação com 32% dos democratas e 38% dos eleitores independentes e não afiliados. Padrões semelhantes são válidos para aqueles que pensam que a secessão é provável. No geral, 25% classificam as chances em 50%, ou mais.
Como as elites irão se portar diante da fratura social?
O grau de polarização é muito elevado, envolvendo questões políticas, religiosas, sexuais e étnicas. Temas como a participação do Estado na economia, o direito ao aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, a igualdade de direitos entre os diferentes grupos étnicos e a imigração, por exemplo, são objeto de intensa discórdia na sociedade estadunidense. Se a discussão estivesse restrita aos processos eleitorais, isso poderia demonstrar a virtude da democracia do país. Entretanto, a desconfiança com relação aos resultados eleitorais e a difusão de teorias conspiratórias criam uma forte radicalização política que pode levar os Estados Unidos a uma situação-limite. Além da organização de milícias armadas, especialmente de grupos de extrema-direita, há uma preocupação adicional com a infiltração de ideias radicais dentro das próprias Forças Armadas. Aqui neste Observatório, nós mencionamos o aumento da busca de armas entre as comunidades negras e latinas dos Estados Unidos como uma postura defensiva frente às ameaças da extrema-direita.
Cabe perguntar como a elite política e econômica vai-se portar diante da possibilidade de ruptura social. Sabemos que há projetos nacionais que conflitam, como, por exemplo, as disputas sobre o padrão energético a ser utilizado pelos Estados Unidos nas próximas décadas. Os estados em que as empresas ligadas ao setor de hidrocarbonetos, como é o caso paradigmático do Virgínia Ocidental do senador Joe Manchin, resistem à adoção de fontes energéticas limpas e renováveis. Daí a forte oposição ao projeto Build Back Better, que prevê bilhões de dólares em investimentos para tornar a economia dos Estados Unidos mais “verde”. Porém, se há muito discordância nesse aspecto, a elite estadunidense é uníssona em estender ao máximo a posição hegemônica no mundo, tanto que os principais consensos bipartidários no Congresso giram em torno das sanções contra China, Rússia, Irã, Coreia do Norte e Cuba.
Em um contexto de grande polarização, a história nos mostra que a criação de uma ameaça (real ou imaginária) de um inimigo externo tem o poder de galvanizar e reunificar um determinado país. Considerando o fato de que ocorrerão eleições em novembro de 2022, seria imprudente considerar que o establishment poderia criar uma grande crise internacional, inclusive de uma guerra, para que os Estados Unidos possam colar os cacos de seu sistema político e social? E mais, que ajude a Joe Biden restaurar sua popularidade? Vale lembrar que os atentados de 11 de setembro de 2001 conseguiram um feito similar. A vitória de George W. Bush nas eleições de meio de mandato em 2002 foi avassaladora.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Thaís Caroline Lacerda é coordenadora do Latino Observatory e doutora em Ciências Sociais (Unesp-Marília). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.
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