COP26: Seriam os Estados Unidos os verdadeiros vilões do clima?
Multidão toma as ruas de Londres durante a COP26 em protesto contra as ações pífias dos governos frente à crise climática (Crédito: Henry Nicholls/Reuters)
Por Pedro Vasques*
Como já havíamos comentado, os Estados Unidos investiram publicamente e de forma intensa ao longo de 2021, a fim de explicitar, dentro e fora de casa, não apenas seu comprometimento de retornar às negociações climáticas, mas, sobretudo, seu interesse – ao menos alegado – de fazê-lo adotando certo protagonismo. Já no início do ano, porém, os pretensos vilões às iniciativas estadunidenses foram apontados pela Casa Branca, com destaque para China, Índia e Rússia. Empecilhos esses que se buscava contrastar com a postura otimista do enviado especial para o Clima, John Kerry, sustentada em seu relativo sucesso em negociações similares no curso do governo Barack Obama.
De todo modo, o cenário que foi sendo construído com o passar dos meses não parecia coadunar com tais perspectivas animadoras, pelo contrário. O auge desse pessimismo emergente é coroado com a realização da 26ª Conferência das Partes (COP26), em Glasgow. E, ao mesmo tempo em que nossas previsões se confirmaram, elas também se mostraram equivocadas.
Isso porque, se havia a expectativa de que um eventual acordo entre Estados Unidos e China seria negociado fora da agenda oficial do evento – o que, de fato, ocorreu –, o compromisso firmado entre ambos os países foi considerado praticamente irrelevante em um contexto mais amplo. A baixa importância dessa pactuação, em conjunto com o papel desempenhado pela delegação estadunidense, é, no entanto, uma sinalização digna de observação e que nos ajuda a caracterizar tanto os limites quanto as intenções do governo democrata em aprofundar seus compromissos na agenda climática.
Para compreender melhor os contornos da atuação dos Estados Unidos na COP26 e seus impactos para as negociações climáticas é preciso, antes, introduzir algumas particularidades que ajudam a contextualizar o evento ocorrido em Glasgow.
Óleo & gás divide potências
Primeiramente, sua realização foi marcada por uma profunda interdição – por parte de seus realizadores – da participação da sociedade civil organizada. E isso se deu apesar das promessas do governo do Reino Unido de que garantiria maior inclusividade – mesmo considerando-se as limitações impostas pela pandemia da covid-19. Essa ausência foi contrastada com a presença massiva de representantes de vários segmentos do setor privado e de seus respectivos lobistas, que tiveram amplo acesso às delegações e aos formadores de políticas públicas.
Em segundo, foi em Glasgow que, pela primeira vez, as discussões em uma COP trataram da questão dos combustíveis fósseis de forma explícita. Isso aconteceu não apenas pelos protestos e eventos paralelos conduzidos pela sociedade civil, mas por iniciativa dos próprios governos, dentro e fora dos processos de negociação. Como se viu, inúmeros anúncios voltados para o encerramento da exploração e do uso de carvão mineral foram feitos, inclusive por parte de emissores importantes, mas não de países como Estados Unidos, China, Índia, ou Austrália. Ficaram evidentes as robustas oposições das grandes economias quando o assunto incluiu o setor de óleo e gás.
Fumaça liberada de uma refinaria de Wilmington, no estado da Califórnia, EUA, em 24 mar. 2012 (Crédito: Bret Hartman/Reuters)
Em terceiro, finalmente, as partes chegaram a um acordo sobre as regras ligadas à implementação do mercado de carbono, previsto no art. 6 do Acordo de Paris. Essa aprovação também não se deu isenta de críticas importantes, como o uso privilegiado do mecanismo para compensar emissões, em vez de se concentrar em sua redução, nas inadequadas regras para a garantia dos direitos humanos das populações tradicionais envolvidas nessas dinâmicas e na existência de aberturas para aproveitamento de créditos de baixa confiabilidade, oriundos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto no Protocolo de Quioto.
Por último, também ficou evidente que as contribuições financeiras para auxiliar os países em desenvolvimento a lidarem com medidas de mitigação não só ficaram abaixo das expectativas, como também não há qualquer indicação clara de que os aportes financeiros prometidos serão integralmente realizados.
Manobras e malabarismos retóricos na declaração final
Ao retomarmos o foco para os Estados Unidos, desta vez, à luz especificamente de sua atuação na COP26, sua participação chama atenção, no que diz respeito à questão dos combustíveis fósseis. Isso porque, antes que se chegasse à versão final do texto, no qual ficou definido que, em vez de as partes se comprometerem com o abandono (phase out), elas seriam convidadas apenas a reduzir (phase down) o uso de carvão e de subsídios fósseis, representantes indianos teriam tentado verbalmente fortalecer o texto. Propuseram que a redação tratasse de carvão e também de óleo e gás, devendo ser implementada em bases equitativas. Ou seja, que países industrializados deveriam fazê-lo primeiro e mais rápido, providenciando suporte para os países em desenvolvimento realizarem suas próprias transições em momento posterior.
Ao longo do evento, porém, os representantes estadunidenses se opuseram a todas as propostas que, em alguma medida, abordavam as questões com base na equidade. Como afirma Brandon Wu, o texto final teria sido cuidadosamente calibrado para se alinhar aos interesses dos Estados Unidos, na medida em que, ao omitir óleo e gás e, ao mesmo tempo, permitir a continuidade da exploração do carvão mediante o uso de tecnologias que reduzam suas emissões, tal estratégia implicará um relativo reduzido impacto sobre o país. O mesmo não pode ser dito com relação a países em desenvolvimento, que tendem a suportar um impacto desproporcionalmente grande sobre suas economias.
É preciso lembrar que há a expectativa de que a produção de carvão nos Estado Unidos caia rapidamente nos próximos anos, enquanto o setor de óleo e gás continua atuando de forma expansiva. Uma das maiores concessões está planejada para ocorrer no curso da administração de Joe Biden e Kamala Harris, ainda que os democratas busquem isentar sua responsabilidade, ao sustentar que tal decisão estaria vinculada ao cumprimento de uma ordem judicial proferida por um juiz indicado pelos republicanos. Especialistas no tema afirmam que a Casa Branca ainda disporia de alternativas para se opor ao referido posicionamento do Judiciário, mas que o Executivo de Biden não estaria disposto a arcar com os custos políticos e econômicos de um embate dessa natureza.
O caso da indústria do petróleo nos serve de exemplo para explicitar que os Estados Unidos estão muito distantes de assumirem esse lugar de protagonismo no âmbito das negociações climático-ambientais. Dessa maneira, não é possível dissociar tais ações do texto final da COP26 da responsabilidade do governo Biden-Harris. A autodefesa da Índia nos últimos minutos do evento, propondo a passagem do phase out para o phase down do carvão a fim de mitigar os impactos sobre sua economia, levou o país a ser taxado como um dos grandes vilões da COP26.
Enquanto isso, os Estados Unidos construíram um discurso público, no qual atribuem para si os créditos de incluírem o debate sobre combustíveis fósseis pela primeira vez na história de uma Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima. Ainda que não se proponha aqui absolver qualquer país de sua justa responsabilidade sobre a questão climática, mais uma vez, os países em desenvolvimento são identificados como um obstáculo.
Esse comportamento dos Estados Unidos pode ser percebido em termos de política externa e interna, sendo necessário considerar tanto os desdobramentos de curto e de longo prazo, como as interligações entre essas dimensões. A despeito de haver realizado parte de suas promessas de campanha nos primeiros meses de seu governo, a atual administração democrata vem lutando para conseguir aprovar seus pacotes de investimentos, voltados para conciliar a retomada econômica com os discursos de justiça climática. Isso fica evidente, por exemplo, a partir de oposições internas, como aquela oriunda do senador Joe Manchin (D-WV), que vem se negando a apoiar um modelo de investimento com potencial para influir negativamente sobre seu eleitorado.
Prioridade de Biden é agenda de reformas
Associado às dinâmicas conflitivas democratas, que dependem de sua coesão para fazer valer sua apertada maioria legislativa, o governo Biden-Harris vê o declínio de sua popularidade se acentuar. Com o encerramento do primeiro ano de sua gestão, a realização das midterms pode colocar em xeque qualquer mudança que dependa do Legislativo a partir de 2022. Assim sendo, a estratégia de uma atuação comedida na COP26, voltada para administrar a pluralidade de interesses envolvidos, parece indicar que a prioridade de Biden-Harris não está no plano internacional, mas na agenda de reformas internas do país. Essa hierarquização em favor da pauta doméstica foi cuidadosamente equilibrada mediante a mobilização de, pelo menos, dois discursos por parte dos democratas.
Presidente Biden fala durante o evento ‘Acelerando a inovação e a implantação de tecnologia limpa’, na COP26, em Glasgow, em 2 nov. 2021 (Crédito: Evan Vucci/AP Pool)
O primeiro deles defenderia exatamente o protagonismo estadunidense na inclusão do debate, até então inédito, sobre combustíveis fósseis na COP26. O segundo se organizou mediante o uso do passado recente, em referência à gestão de Donald Trump, para contrastar com a atual presença dos Estados Unidos, visando a, com base nessa acentuação, conferir maior importância à atuação do país nas negociações climáticas. Assim, mesmo que os esforços de Kerry – que começaram já no início do ano – tenham produzido poucos frutos até o momento, seu desempenho precisa ser observado tanto à luz das prioridades internas imediatas, quanto pela compreensão de que as dinâmicas no plano internacional seguirão um ritmo mais lento, estando, então, voltadas para objetivos de médio-longo prazos.
Por fim, recuperando a questão dos acordos paralelos, damos destaque àqueles formulados pelos Estados Unidos com China e Brasil. Com relação ao primeiro, esse parece ser muito mais um aceno diplomático – indicando que ambas as nações estão em diálogo – do que um ponto de partida para algo relevante. Pactuações similares já foram realizadas no passado entre outros países e os Estados Unidos sem que tivessem qualquer efeito prático substantivo.
De todo modo, ainda que isso possa parecer pouco, por conta das tensões com Taiwan e da pressão republicana contra a importação de produtos chineses, a manutenção desse tipo de janela de diálogo continua sendo algo significativamente relevante. Em relação ao Brasil, esse também parece ser muito pouco promissor no que tange à sua implementação. Isso porque, como sabemos, não há qualquer interesse do atual governo de colocá-lo em prática e, além disso, Bolsonaro está muito longe de compreender o que seria necessário fazer para cumpri-lo.
* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É autor, entre outros, do artigo “Anti-ambientalismos nos Estados Unidos e no Brasil: uma avaliação sobre os elementos que contribuíram para sua emergência”, publicado na Revista Sul Global, do IRID/UFRJ, v. 2, p. 173-198, 2021.
** Recebido em 19 dez. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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