Afeganistão e o inevitável retorno da geopolítica
Afeganistão e as potências: EUA, Rússia e China (Crédito: Getty Images/BBC)
Por João Bernardo Quintanilha Chagas e Carla Morena*
A saída dos Estados Unidos do Afeganistão foi vista por alguns analistas como sinal de uma derrocada do poder americano. Os erros estratégicos que levaram à tomada de Cabul por parte do Talibã, as cenas vividas no aeroporto internacional de Cabul e o consecutivo atentado terrorista que matou 60 afegãos e 13 soldados americanos acentuaram o clima de incerteza na região. Tendo em vista a crise humanitária vivida pelo país, a recente resolução adotada por unanimidade no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) visa a facilitar o envio de ajuda humanitária para o Afeganistão, que está à beira de um colapso econômico.
Historicamente, o Afeganistão é um país dependente de ajuda externa. Agora, mais do que nunca, precisará contar com esses auxílios para mitigar a crise humanitária. No momento, porém, cerca de US$ 10 bilhões do país em ativos estrangeiros, que estão no exterior, encontram-se congelados. De acordo com a representante especial do secretário-geral da ONU para o Afeganistão, Deborah Lyons, é compreensível negar fundos à administração do Talibã, mas os efeitos disso serão vistos na forma de uma grave crise econômica, milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e uma crise migratória.
A postura de isolamento do Ocidente em relação ao Afeganistão apenas aproxima o país do seu entorno regional. Hoje, a estabilização e a eventual pacificação do Afeganistão dependem, sobretudo, de seu relacionamento com países vizinhos e potências mais próximas. Nessa linha, em participação no podcast Chutando a Escada, o professor especialista em Afeganistão Aureo Toledo, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), projeta que os cinco países-chave para o futuro do Afeganistão são: China, concentrada no potencial econômico da região; Rússia, principal força militar da Ásia Central; Índia; Paquistão, e Irã.
A recente reunião da Organização para a Cooperação de Xangai, uma organização liderada pela China que congrega quase todos os países citados pelo professor, teve como pauta central o Afeganistão e a possível formação de uma política conjunta para esse país. O evento corrobora a visão de Toledo a respeito do aumento da influência regional sobre o governo de Cabul e sua permanência. Nesse sentido, procedemos à análise dessa possível política conjunta, bem como dos interesses dos países da região no futuro do Afeganistão.
Pragmatismo chinês em meio ao caos no Afeganistão
A aproximação da China com o governo afegão vem-se dando muito antes da saída das tropas dos Estados Unidos do país. Mesmo antes de o Talibã tomar o poder, a China recebeu representantes do grupo para diálogo, ainda em julho, deixando claro que estaria disposta a ajudar o Afeganistão economicamente, desde que o território não fosse usado para apoio a atividades terroristas. As relações sino-afegãs deverão ser pautadas em duas dimensões: a econômica e a securitária.
No primeiro quesito, a China é um parceiro econômico vital para a reconstrução da economia afegã. De acordo com o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, “a China é o nosso parceiro mais importante e representa uma oportunidade fundamental e extraordinária para nós. Ela está pronta para investir e reconstruir nosso país”. Dados da World Integrated Trade Solution, informam que a China ocupa o terceiro lugar de maiores destinos das exportações do Afeganistão (aproximadamente US$ 31 mil), e o segundo lugar, em importações (em torno de US$ 1,2 milhão). Esses indicadores resultam da iniciativa de Pequim de promover as relações comerciais fortes com o Afeganistão, tornando-se um pilar importante para a reestruturação atual.
Outro interesse vital chinês no Afeganistão é o fato de a região ser rica em recursos minerais ainda não explorados. Conforme análise feita pela DW News, os recursos naturais como ouro, cobre e lítio, situados no Afeganistão, são avaliados em mais de US$ 1 trilhão. Em relação ao cobre, Mes Aynak, uma região localizada no sul de Cabul, tem umas das maiores reservas ainda não exploradas. A empresa Jiangxi Copper, em conjunto com a Metallurgical Corp of China (MCC), assinou um contrato de arrendamento por 30 anos em 2008 para a exploração da mina nessa região. Devido ao contexto instável vivido pelo Afeganistão nos últimos 20 anos, o projeto ficou parado. Hoje, a empresa monitora de perto a situação para avançar no projeto, assim que possível. O cobre é um material essencial para a produção de placas de luz solar e, em um período de transição para energias renováveis, torna-se um recurso indispensável. Sobre o lítio, estimativas sobre a província de Ghazni indicam que ela pode conter o maior depósito do mundo desse recurso, material indispensável para a fabricação de baterias elétricas.
Embora esses recursos tenham estado em solo desde a década de 1990, o país nunca teve a capacidade de extraí-los. Com a saída dos Estados Unidos, abre-se a oportunidade de exploração destas commodities, e, por isso, a construção de um cenário de estabilidade no Afeganistão é importante para a China. Embora algumas análises contradigam essa hipótese — sugerindo que um Afeganistão menos seguro não é prioridade de investimento chineses —, as empresas chinesas têm um histórico de investir em países menos estáveis.
Outro fator que poderia trazer viabilidade econômica para o Afeganistão no longo prazo se refere à “Nova Rota da Seda”. O grande projeto de infraestrutura chinês já apresenta dois planos no Afeganistão que tiveram de ser paralisados, sendo um deles o projeto de mineração da Jiangxi Copper. Nesse contexto, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, já demonstrou interesse do país, afirmando que “Pequim está pronta para discutir a retomada dos trens de carga China-Afeganistão e facilitar a interação do Afeganistão com o mundo exterior, especialmente seu acesso a suprimentos humanitários”.
O cofundador do Talibã, mulá Abdul Ghani Baradar, e o ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, em Tianjin, China, em 28 jul. 2021 (Crédito: Li Ran/AP)
O senador paquistanês e ex-presidente do Instituto China-Paquistão, Mushahid Hussain Sayed, concluiu que “o melhor caminho e a opção alternativa imediatamente disponível para o desenvolvimento econômico do Afeganistão é o Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), que inclui o Paquistão e a China”. O CPEC é um dos projetos mais centrais da Nova Rota da Seda, abrangendo US$ 62 bilhões em financiamento, composto por usinas elétricas, ferrovias, estradas e por uma importante infraestrutura portuária. Diante das análises de Zhou Bo, especialista em pensamento estratégico do Exército chinês sobre segurança internacional, a construção de uma rodovia que liga Pexauar a Cabul iria garantir uma rota terrestre mais curta para acesso aos mercados e diminuiria o impacto que a Índia tem por não aderir ao projeto chinês.
Outra dimensão da relação China-Afeganistão é a securitária. Pequim precisa da cooperação dos talibãs para prevenir o extremismo islâmico, particularmente do Movimento para a Independência do Turquestão Oriental (ETIM). O ETIM é um grupo político que luta pela independência em Xinjiang, região ao noroeste da China fronteiriça com o Afeganistão. Liderado por Abdul Haq, o ETIM tem a pretensão de criar um Estado Uigur em Xinjiang. A presença de centenas desses combatentes no Afeganistão preocupa a China acerca de possíveis ataques. Mesmo tendo garantido que o ETIM não será autorizado a operar no Afeganistão, devido à iminente crise humanitária em seu território, o Talibã pode não estar em condições de assegurar que isso não aconteça. Portanto, a China deverá fazer o possível para conseguir uma maior cooperação do entorno regional com o Afeganistão, em busca de uma estabilização viável. Esse interesse não é exclusivo da China. As atuais reuniões da Organização para Cooperação de Xangai demonstram a predisposição de uma união entre China e Rússia pela estabilização do Afeganistão. China seria mais atuante no âmbito econômico, e Rússia, no de segurança.
Interesses russos na região frente às memórias soviéticas
O caso russo é bem específico, devido ao seu histórico no país e a sua presença militar na região. A história russa no Afeganistão começa com a Guerra do Afeganistão (1979-89), uma guerra civil envolvendo a República Democrática do Afeganistão, governo amigável aos soviéticos, e grupos guerrilheiros islâmicos, os mujahideens (em árabe: “aqueles que participam da Jihad”). Os jihadistas eram contrários às reformas propostas pelo governo de Hafizullah Amin, líder revolucionário afegão. Amin foi assassinado por causa da insatisfação popular, o que impulsionou a intervenção da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no território afegão.
A geografia do Afeganistão se impôs, porém, sobre os soviéticos. O terreno montanhoso extremamente acidentado e o clima desértico favoreceram os grupos guerrilheiros locais frente às tropas soviéticas, que se mantiveram no conflito por uma década interminável. O envolvimento dos soviéticos no Afeganistão foi extremamente dispendioso em todos os sentidos. Sua economia não conseguiu se reerguer após o conflito. O abalo ao prestígio do regime e as mortes causadas pelo conflito foram alguns dos motivos para a retirada das tropas e o posterior desmembramento da URSS. Com isso, assim como o “fantasma do Vietnã”, frequentemente, paira sobre os americanos, o “fantasma do Afeganistão” ainda persiste no imaginário russo.
Mujahedines espreitam soldados soviéticos, Afeganistão, 1980 (Crédito: Steve McCurry/Magnum)
O próximo evento que pautou as relações entre Cabul e Moscou foi a invasão americana no Afeganistão. A presença militar americana na região nunca interessou ao governo russo, devido à vulnerabilidade de sua fronteira centro-asiática. Naquele período, contudo, na visão russa, a presença americana e o Talibã apresentavam ameaças equivalentes. Por isso, a “conivência” do governo de Vladimir Putin com a presença estadunidense na região.
Anna Borshchevskaya, analista especialista em Rússia, explica que: “Diferentemente de seus predecessores soviéticos, Putin tem se concentrado mais no pragmatismo do que na ideologia para conquistar seus objetivos. Desde que assumiu as rédeas do poder, mais de 20 anos atrás, ele tem construído, consistentemente, contatos com todos no Oriente Médio, tanto com governos quanto com seus principais movimentos de oposição”.
Não seria diferente no Afeganistão. Os russos mantêm relações diplomáticas com o Talibã desde 2007, algo que vem aumentando gradativamente ao longo dos anos, mesmo com o reconhecimento russo de que se trata de um grupo terrorista. Diversas reuniões de paz foram feitas entre autoridades russas e os talibãs, antes mesmo da tomada de Cabul, o que garantiu o crescimento da iniciativa diplomática russa e um enfraquecimento da liderança americana na região.
Desde a decisão americana de retirar suas tropas, o posicionamento russo tem variado bastante. Em outubro de 2020, Putin disse que a presença americana não ia contra os interesses russos e que a retirada das tropas aumentaria os riscos para a Rússia. Nos últimos posicionamentos, o tom russo foi mais crítico em relação aos americanos e, seria possível dizer, até mesmo amistoso em relação aos talibãs.
Recentemente, o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, afirmou que os talibãs “claramente não têm planos de criar problemas para seus vizinhos centro-asiáticos” e que “eles combaterão, inflexivelmente, o Estado Islâmico no país”. Todos, pontos de grande interesse para Moscou.
No início de setembro passado, por exemplo, Putin declarou que a presença americana resultou em “tragédias e perdas para todos os envolvidos” por causa da “fútil tentativa dos americanos de estabelecerem suas normas”. É perceptível a narrativa russa para se aproveitar do “fracasso” americano no Afeganistão, buscando usar seu “sucesso diplomático” na região, supostamente ao contrário de Washington, para projetar seu poder. Uma das bases do argumento seria o processo de decadência do Ocidente, ou, pelo menos, de sua principal potência.
Tomando-se esse panorama, não parece improvável uma estratégia de colaboração russa com o Afeganistão, para sustentar a sua já presente narrativa “antiamericana”. Apesar de custoso, um auxílio real de nation building no país (formação de um novo Estado enquanto unidade política), por parte dos russos, pode ser um exemplo útil para propagar a “alternativa russa” frente à “falida democracia liberal”. De qualquer modo, cabe ponderar sobre a viabilidade desse plano. As sanções impostas sobre as duas economias e a resistência de Moscou às intensas críticas que chegarão, por parte do Ocidente, são, ambos, grandes desafios para sua implementação.
O inevitável retorno da geopolítica com a retirada americana
A saída das tropas americanas do Afeganistão demonstrou que os Estados Unidos passam, agora, a se concentrar em outras temáticas e em outras regiões do planeta, o que inclui um deslocamento do eixo militar americano. Hoje, a área de maior importância para a geoestratégia estadunidense tem sido o Pacífico, principalmente o Mar do Sul da China. Essa mudança se dá dentro da lógica de contenção chinesa, país que tem adotado uma “política expansionista” em relação aos vizinhos do Sudeste Asiático. Essa mudança de orientação por parte da política externa americana gera, porém, um vácuo na região da Ásia Central que vem sendo prontamente preenchido pela agenda das potências regionais.
China e Rússia têm grandes interesses na região, com diferentes visões e finalidades. Pequim procura promover a estabilidade para garantir seus interesses econômicos, além de dar prosseguimento ao seu enorme plano de infraestrutura, a Nova Rota da Seda. Já Moscou busca o equilíbrio para reafirmar sua liderança militar e garantir a segurança de suas próprias fronteiras. Apesar das diferenças em seus objetivos, há uma interseção: a estabilidade regional. Cabe ainda analisar se esse interesse mútuo estimulará uma política conjunta entre os países, ou se o Afeganistão pode se tornar um cenário de disputa entre russos e chineses.
* João Bernardo Quintanilha Chagas é pesquisador júnior do Opeu, bolsista de Iniciação Científica do INCT-INEU/PIBIC-CNPq, e graduando do curso de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: joaobernardoqchagas@gmail.com.
Carla Morena é pesquisadora júnior voluntária do Opeu e graduanda do curso de Relações Internacionais (UniLasalle-RJ). Contato: carla.silva@soulasalle.com.br.
** Recebido em 21 de set. 2021 e publicado com revisão e supervisão da editora do Opeu e professora colaboradora do IRID/UFRJ, Tatiana Teixeira, e do editor associado do Opeu, Rafael Seabra. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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