Várias elegias, um único Cemitério: A Guerra do Afeganistão nos discursos presidenciais
Preparação para Memorial Day, no Cemitério Nacional de Arlington, no estado da Virgínia, em 27 de maio de 2021 (Crédito: Logan Carlson/Força Aérea dos EUA)
Por Eduardo Mangueira*
A retirada de tropas estadunidenses do Afeganistão pôs fim a uma guerra de quase 20 anos. Em meio à crise de refugiados afegãos e à pressão em casa, onde o processo foi considerado um fracasso, o governo do democrata Joe Biden defendeu a operação. Esta ficou marcada pelo ataque terrorista ao aeroporto de Cabul que matou mais de 180 pessoas, incluindo 13 militares estadunidenses. Em discurso, o presidente Biden buscou justificar e demonstrar a urgência dessa saída, alegando que os objetivos de combate ao “terrorismo antiestadunidense” já haviam sido atingidos e que é seu dever resguardar as vidas de seus concidadãos, além de imputar ao governo afegão a responsabilidade pela rápida retomada do poder por parte do Talibã.
Os discursos presidenciais estadunidenses são instrumentos de grande relevância para a transmissão da ideologia do governo vigente para a população. Apresentam diretrizes e objetivos gerais, delimitam linhas vermelhas, estabelecem prioridades e obstáculos a serem enfrentados, além de reforçarem e atualizarem elementos que, em seu conjunto, compõem a identidade nacional. Nos discursos que versam sobre o Afeganistão, não é diferente. Nessas falas, buscou-se justificar a ocupação do território e a deposição do Talibã, indicar para a população a necessidade de combate ao terrorismo e reafirmar a identidade do país como o bastião da democracia e da liberdade, valores que deveriam ser disseminados para o restante do mundo.
Para desenvolver e ilustrar este argumento, expõe-se uma breve análise do conteúdo dos discursos sobre o Estado da União (no inglês State of the Union e, doravante, em seu acrônimo SOTU) referente à Guerra do Afeganistão. Serão revisitados os discursos proferidos a partir de 2002, ano em que esta guerra foi mencionada pela primeira vez. O SOTU é uma exigência constitucional de prestação de contas ao Congresso, que acontece a cada início de ano. Todos os discursos mencionados ao longo deste Informe estão disponíveis aqui.
A Guerra do Afeganistão começou poucas semanas após os atentados do 11 de Setembro, cometidos pela Al-Qaeda. Sob a justificativa de que os talibãs estariam fornecendo refúgio à rede de Osama bin Laden em solo afegão, bem como fornecendo treinamento para “forças terroristas antiestadunidenses”, o governo republicano de George W. Bush iniciou a Guerra. Como consequências no curto e no médio prazos, o Talibã foi derrubado do poder, um governo “democrático” foi instaurado, e as tropas militares estadunidenses permaneceram no país, sob o pretexto de continuarem a combater o terrorismo.
George W. Bush: dever e democracia
No momento de seu primeiro discurso sobre o “Estado da União”, quatro meses haviam-se passado desde o 11 de Setembro. A invasão do Afeganistão já havia acontecido, e o Talibã fora deposto. Com isso, o discurso de W. Bush objetivou não somente exaltar a resiliência do povo estadunidense, mas justificar tal ocupação por meio do apontamento de um novo inimigo: o terrorismo transnacional. Este oponente é considerado “contrário aos valores americanos de liberdade e igualdade”, ao disseminar a “tirania” e a “opressão”, sendo caracterizado como uma “ameaça global” ao mundo “civilizado”. Segundo o então presidente republicano, os terroristas, em seus objetivos anticivilizacionais, seriam acometidos pela “maldade” e pela “loucura”, o que se teria confirmado pelos atentados de 2001. Nesse sentido, defende W. Bush, é preciso combater o terrorismo, em um esforço internacional liderado pelos Estados Unidos, “responsáveis” por disseminarem seus valores para os demais povos. Espalhar suas crenças, bem como a agenda de combate ao terrorismo, são fatores vistos como questões imperativas para a segurança nacional.
Como reforçará no SOTU de 2006, por exemplo: “No exterior, nossa nação está comprometida com um objetivo histórico e de longo prazo: nós buscamos o fim da tirania no nosso mundo. Alguns descartam esse objetivo como um idealismo equivocado. Na realidade, a segurança futura da América depende disso”.
Nos pronunciamentos de W. Bush, a Guerra do Afeganistão é representada como parte do esforço estadunidense de libertação dos afegãos contra a opressão, deixando que se manifestem no terreno os “valores democráticos” considerados inerentes ao ser humano e garantidores da paz. O esforço de nation-building (construção da nação) empregado pelos Estados Unidos, de estabelecimento de uma democracia e fomento da economia e de forças armadas locais para a garantia da paz internacional e de sua própria segurança, é tido, em vez disso, como um pequeno auxílio para que se manifestassem os valores que os estadunidenses consideram como universais. A teoria liberal da paz democrática, de que democracias tendem a não guerrear entre si, junta-se à conexão feita na época entre organizações terroristas e os chamados “Estados falidos”, que agiriam como bases de apoio e financiamento para esses grupos, utilizando como exemplo paradigmático a relação entre a Al Qaeda e o Talibã, grupo fundamentalista islâmico no poder durante o ataque do 11 de Setembro. A reconstrução do Afeganistão se daria, portanto, para angariar mudanças internas no Afeganistão e, assim, garantir a segurança interna dos Estados Unidos, ao eliminar possíveis aliados de seus oponentes.
Os governos democráticos afegãos que se seguiram eram apresentados não como conquistas devido à intervenção no país, mas como realizações próprias dos locais. Ao mesmo tempo, tratou-se de uma maneira de se eximir de quaisquer problemas estruturais em uma forma de governo artificialmente implantada e corroborar a noção de que os princípios estadunidenses, como a democracia, seriam universais, e capazes de florescer sem uma intervenção íntima dos Estados Unidos. É interessante notar que, além da ideia de cumprimento de dever, inerente ao excepcionalismo estadunidense, a Guerra do Afeganistão é tida como um ato de “compaixão”. No SOTU de 2003, W. Bush afirma: “As qualidades de coragem e compaixão, pelas quais se luta na América, também determinam nossa conduta no exterior. A bandeira americana representa mais do que nosso poder e nossos interesses (…) No Afeganistão, ajudamos a libertar um povo oprimido. E continuaremos a ajudá-los a assegurar seu país, reconstruir sua sociedade e educar todas as suas crianças, meninos e meninas”.
Nos discursos de W. Bush, a Guerra do Afeganistão também é apresentada como um grande sucesso no âmbito da Guerra Global ao Terror (GWOT, na sigla em inglês). Em seus pronunciamentos sobre o tema, o então presidente alega que, com ela, foi possível demonstrar ao povo estadunidense que seus esforços na luta contra o terrorismo não foram em vão e que os objetivos de destruir seus inimigos e de disseminar seus ideais eram exequíveis. Este estado de guerra era, porém, acima de tudo, uma forma de manter vivo o sentimento de insegurança, a urgência deste combate e a necessidade de sua continuação. Embora houvesse muitos ganhos territoriais estratégicos, os Estados Unidos, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e as recém-formadas – com patrocínio e treinamento estadunidense – Forças Armadas afegãs falharam em eliminar completamente as forças do Talibã e da Al-Qaeda na região. A alegada possibilidade de ocorrência de um novo ataque em retaliação em solo estadunidense tornava imperativa a remoção de qualquer risco à segurança e à manutenção do governo afegão. Assim, a permanência das Forças Armadas estadunidenses era justificada.
Barack Obama: custo e promessa
Durante o governo do democrata Barack Obama, a mesma narrativa foi, em grande medida, mantida. Sem a menção direta a termos como “Eixo do Mal”, o presidente apresentava pontos muito similares. Para garantir a segurança doméstica e imbuído de um senso de dever em defesa do “correto”, seria necessário o contínuo combate ao terrorismo internacional, a disseminação dos valores mais caros aos Estados Unidos e o impedimento de que determinadas nações associadas ao terrorismo tivessem em mãos armas de destruição em massa (ADMs).
Presidente Obama discursa para as tropas no Forte Bliss, em 31 ago. 2012, em El Paso, Texas (Crédito: Tony Gutierrez/AP)
Considerando-se o contexto de crise econômica e financeira provocada pela especulação imobiliária em 2008, a recuperação econômica acabou tendo maior centralidade nos discursos de Obama. Sendo assim, enquanto ocorriam o contínuo combate aos talibãs, inclusive com o aumento do contingente militar estadunidense em 2010, e o treinamento das forças afegãs nas táticas antiterroristas, pela primeira vez as guerras, tanto no Afeganistão quanto no Iraque, foram apresentadas como custosas, um preço “escondido” que veio à tona em seu governo. Era necessária, segundo o presidente, uma estratégia diferente da empregada por seu predecessor. Como ele afirma em seu discurso SOTU de 2009, “Por sete anos, nós fomos uma nação em guerra. Não mais esconderemos seu preço. (…) E, com nossos amigos e aliados, nós forjaremos uma estratégia nova e abrangente para o Afeganistão e o Paquistão para derrotar a Al-Qaeda e combater o extremismo, porque eu não vou permitir que terroristas conspirem contra o povo americano de refúgios do outro lado do mundo”. Não se identificou, porém, uma grande mudança em relação à empregada por seu antecessor, com o previamente mencionado aumento da presença militar na região.
Em seus discursos, Obama culpabiliza o governo afegão, ao admitir a existência de problemas estruturais na democracia afegã, relacionados com a corrupção, deixando de considerar a possibilidade de serem consequências de se implantar uma forma de governo em um local sem considerar suas idiossincrasias culturais. Além disso, mostrou-se contrário à ideia de nation building, defendendo uma menor participação ativa estadunidense e um maior protagonismo afegão na luta contra o terrorismo. Sendo assim, com a morte de Osama bin Laden em 2011, abriu-se um momento propício para a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão e do Iraque. No entanto, mesmo com o anúncio em 2015 do fim da missão de combate no país e com a diminuição de seu contingente na região das quase 100.000 forças presentes em 2009 para algo em torno de 8.400 ao final de seu segundo mandato, as Forças Armadas estadunidenses continuaram presentes, justificadas pelas noções de “instabilidade” no Afeganistão e de “perigo contínuo” de ataques terroristas.
Donald Trump: guinada introspectiva
Com o governo de Donald Trump, observa-se uma mudança de prioridade. Em consonância com suas propostas de America First e Make America Great Again, a atenção do novo governo republicano se voltou para a política doméstica. A presença no Oriente Médio é criticada, expondo-se o custo de US$ 7 trilhões dessa empreitada, enquanto a infraestrutura interna passava por dificuldades. Nesse sentido, o presidente estabeleceu como meta para seu mandato a retirada completa de tropas do Afeganistão.
Trump anuncia sua estratégia para a Guerra no Afeganistão, em discurso no Forte Myer, na Virgínia, em 21 ago. 2017 (Crédito: Joshua Roberts/Reuters)
Para isso, divulgou em seus discursos o estabelecimento de conversas com os talibãs em 2020, sem envolver a consulta, ou a participação direta do governo afegão. Ao mesmo tempo, buscou demonstrar maior rigidez no trato com terroristas. Em 2018, revelou, em sua forma peculiar de apresentação de fatos, novas regras de combate, marcadas por menor transparência e por menor responsabilização das forças militares estadunidenses no Afeganistão. Como disse o então presidente em 2018, “Ao mesmo tempo, desde alguns meses atrás, nossos guerreiros no Afeganistão têm novas regras de combate. Junto com seus heróicos parceiros afegãos, nossos militares não são mais prejudicados por cronogramas artificiais, e nós não contamos mais aos nossos inimigos nossos planos”.
Joe Biden: promessa e custo
O presidente eleito em 2020 assume em circunstâncias conturbadas. À crise pandêmica ocasionada pelo coronavírus, juntou-se a crise econômica, além de desafios enfrentados pelas instituições democráticas do país, ilustrados, por exemplo, pela invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Nesse contexto, pode-se entender que as diversas medidas tomadas pelo governo Biden após sua posse, como a doação massiva de vacinas e a criação de um fórum democrático que ocorrerá em dezembro, são formas de reaver a credibilidade da instituição democrática liberal que simboliza os valores que os Estados Unidos buscam disseminar, à maneira de quase todos os presidentes anteriormente analisados. Como parte de suas promessas de campanha, acabar com a permanência de suas tropas em solo afegão também era essencial no cumprimento desse objetivo.
Em seu discurso antes da Sessão Conjunta do Congresso, Biden buscou demonstrar que cumpriria essa promessa, feita desde o governo Obama, de quem foi vice. As justificativas para isso foram o cumprimento dos objetivos que Biden elenca como iniciais para a ocupação: a eliminação de Osama bin Laden e a expulsão de forças da Al-Qaeda do território afegão. Tanto nesse discurso quanto no pronunciamento feito após a retirada efetiva das tropas em 31 de agosto, Biden contradiz os presidentes anteriores e a si mesmo, ao afirmar que a presença estadunidense no país nunca teve o objetivo de nation-building: “A Guerra do Afeganistão, como nos lembramos dos debates aqui, nunca devia ter tomado os contornos multigeracionais de nation building”.
Para entender o uso de posições diametralmente opostas, é preciso considerar dois fatores. Em primeiro lugar, deve-se olhar para a mudança de conjuntura. Duas décadas e diversos acontecimentos, tanto no plano doméstico quanto no internacional, separam estas declarações, como a reorientação da política externa estadunidense, que passa a priorizar a contenção do crescimento e da influência chineses. Além disso, buscou-se justificar a saída sem que essa fosse vista como uma derrota, omitindo seus aspectos de nation building para transmitir uma ideia de dever cumprido. Dessa maneira, é possível manter a coerência interna da lógica estadunidense, que vê a si mesmo como um líder mundial e o bastião inabalável de tudo que é “correto”. A maneira como se deu a retirada das tropas do Afeganistão afetou, porém, a popularidade doméstica de Biden, sendo também um golpe em sua credibilidade internacional.
Crédito: Doug Mills/The New York Times)
E uma curiosidade sobre a Sessão Conjunta no Congresso. O primeiro discurso no ano da posse do presidente pode ser categorizado como um Discurso sobre o Estado da União, mesmo que um ano não tenha se passado. Este discurso também foi feito pelos presidentes W. Bush, Obama e Trump, em 2001, 2009 e 2017, respectivamente.
Mudanças e permanências
Observam-se, portanto, certas mudanças e permanências nos discursos presidenciais. Enquanto os discursos, a partir do governo Obama, gradualmente trataram da possibilidade de retirada das tropas, a pauta do combate ao terrorismo não diminuiu em relevância, mesmo no governo mais introspectivo de Donald Trump. Não apenas isso: todos os discursos analisados trataram os Estados Unidos sempre tendo o Excepcionalismo Estadunidense como base. Desde George W. Bush, que elencou a Guerra Global ao Terror e a disseminação de valores democráticos como parte do “dever” estadunidense, até Biden, que situou a saída do Afeganistão como uma amostra da “liderança” dos EUA, o país é entendido como separado dos demais, uma espécie de primeiro dentre iguais, cujos valores seriam universais, desejáveis e corretos para toda humanidade. A posse desses princípios levaria esse país à posição de seu disseminador e guardião. Se contrapor aos valores estadunidenses seria, portanto, contrapor-se ao interesse da humanidade.
Apesar dos discursos recentes de Biden sobre a mudança de direção na política externa, a saída de tropas estadunidenses do Afeganistão está longe de indicar o fim da relevância da região. Como será o governo talibã, que tipo de relação irá estabelecer com a comunidade internacional, assim como com grupos considerados terroristas por Washington, o desfecho da crise de refugiados gerada pela atropelada saída estadunidense do país, entre outras questões, ainda devem ser temas dos próximos discursos presidenciais. Sugere-se, portanto, acompanhar como a situação geral evoluirá e, por conseguinte, como o país será tratado nos próximos SOTU.
* Eduardo Mangueira é pesquisador colaborador júnior do OPEU e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ).
** Recebido em 20 set. 2021 e publicado com revisão e supervisão da editora do Opeu e professora colaboradora do IRID/UFRJ, Tatiana Teixeira, e do editor associado do Opeu, Rafael Seabra. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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