Tensão nas relações EUA-Taiwan-China: semicondutores podem dissuadir chineses?
Crédito: Mari Fouz
Por Robson Coelho Cardoch Valdez*
Assim como no governo de Donald Trump, a administração Joe Biden percebe a China como um desafio aos interesses dos Estados Unidos. Evidências disso podem ser encontradas, por exemplo, em diferentes declarações do presidente Biden e de alguns de seus principais secretários e outros funcionários do alto escalão, como Antony Blinken (Estado), Lloyd Austin (Defesa), Janet Yellen (Tesouro), Katherine Kai (USTR, na sigla em inglês) e Jake Sullivan (Conselho de Segurança Nacional). Esta lista não é exaustiva.
A abordagem do atual governo norte-americano em relação à China vem-se desenhando e consolidando já desde seu início, quando Blinken, o indicado para o Departamento de Estado, posicionou-se de forma dura sobre o tema durante a sabatina no Comitê de Relações Exteriores do Senado. Na ocasião, declarou que a China é um país a ser vencido: “Podemos vencer a China e lembrar ao mundo que um governo do povo, para o povo, pode ajudar seu povo”. Adicionalmente, em linha com a abordagem da administração anterior em relação à China, Blinken deixou claro que se trata do “desafio mais importante de qualquer Estado-nação aos Estados Unidos em termos dos nossos interesses: os interesses do povo americano”.
Em sessão no Senado para a mesma finalidade, o indicado por Biden para a Defesa, o general reformado Lloyd Austin, classificou a China como “a ameaça mais importante no futuro”. Além disso, referiu-se ao país asiático como um “hegemon regional”, que busca se tornar a “potência proeminente no mundo em um futuro não muito distante”.
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Por fim, ao analisar o papel dos Estados Unidos no mundo, no início deste ano, o presidente Biden prometeu que seu país enfrentará os desafios que a China impõe aos interesses norte-americanos. Ao mesmo tempo, porém, em que busca confrontar os chineses no campo da economia, da propriedade intelectual, da governança global e dos Direitos Humanos, o presidente americano parece estar disposto a cooperar, de forma pragmática, em áreas de interesse dos Estados Unidos.
Assim, muito provavelmente, as relações China-EUA sob Biden serão pautadas por uma abordagem multilateral liderada pelos norte-americanos, buscando o engajamento das Nações Unidas e de aliados europeus e asiáticos naquilo que for de interesse de todos. Trata-se de tarefa difícil — mesmo para os Estados Unidos. A onipresença chinesa na Ásia é um obstáculo à consolidação de alianças pró-americanas na região. Quanto aos europeus, o conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, já reconheceu que se trata de um desafio, porque europeus e americanos abordam a China de diferentes perspectivas.
Nesse sentido, em uma demonstração de abertura, o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, ofereceu na sexta-feira (22/10) o compromisso “resoluto” dos Estados Unidos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o amplo apoio a Taiwan e à União Europeia. Movimento semelhante fez a vice-presidente Kamala Harris em visita ao Sudeste Asiático, em meio à retirada das tropas americanas do Afeganistão, com o objetivo de fortalecer as alianças dos EUA com seus parceiros da região.
Vantagens da ambiguidade estratégica
O primeiro posicionamento do governo Biden em apoio a Taiwan veio no início de 2021 com a nota do Departamento de Estado. Nela, reafirma-se que o compromisso dos EUA com os taiwaneses é “sólido como uma rocha” e se reforça o fornecimento de assistência militar necessário para que Taiwan possa fazer frente às ameaças de Pequim. A declaração surgiu após um ano de operações da Força Aérea chinesa sobre Taiwan. Em 2020, foram 380 incursões desse tipo e, desde o início de outubro deste ano, o governo chinês iniciou uma série de sobrevoos militares sobre a ilha, marcando uma escalada nas relações EUA-Taiwan-China.
Em recente audiência no Comitê de Relações Exteriores do Senado para a nomeação de Nicholas Burns como o novo embaixador dos Estados Unidos para a China, em 21 de outubro, a questão taiwanesa foi um dos pontos centrais de sua arguição. Burns salientou que a China é, hoje, o “competidor mais perigoso” dos Estados Unidos; classificou o tratamento dado pela China aos muçulmanos uigures na região de Xinjiang como “genocídio”; e afirmou que Pequim violou a promessa de manter sua capacidade nuclear de dissuasão em níveis mínimos.
Quanto às relações China-Taiwan, Burns avaliou que os EUA não podem confiar nos chineses, levando-se em consideração as promessas não cumpridas por Pequim em relação a Hong Kong. Nesse contexto, Burns acredita que os Estados Unidos devem manter seu compromisso de fortalecer as capacidades militares de Taiwan no sentido de diminuir sua “assimetria bélica” em relação à China.
No dia 22, em evento promovido pela rede CNN, o presidente Biden afirmou que os EUA defenderiam Taiwan no caso de um ataque chinês. Horas mais tarde, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, emitiu a seguinte nota à imprensa: “Exortamos os EUA a cumprirem seriamente o princípio de uma única China e ao que foi estipulado nos três comunicados conjuntos China-EUA, a serem prudentes em suas palavras e ações sobre a questão de Taiwan e a evitarem enviar sinais errados às forças separatistas que apoiam a independência de Taiwan”. Wenbin se referia aos termos acordados, no que se refere às relações China-EUA-Taiwan, em três comunicados conjuntos assinados em 1972, 1979 e 1982 pelo governo norte-americano e a RPC, assim como às “seis garantias” da política americana para Taiwan que passam a entrelaçar os interesses estratégicos dessa tríade.
Momentos de tensão como os dos últimos dias remetem-nos aos parâmetros estabelecidos pelo governo dos Estados Unidos para lidar com a questão taiwanesa sob a Taiwan Relations Act (“Lei sobre as Relações com Taiwan”, ou TRA). A TRA estabelece que qualquer abordagem não pacífica em relação a Taiwan será entendida como uma ameaça à paz na região, causando grande preocupação em Washington. Adicionalmente, acrescenta o texto da lei, os EUA “fornecerão a Taiwan armas de caráter defensivo e manterão a capacidade dos Estados Unidos de resistir a qualquer recurso à força, ou a outras formas de coerção que colocariam em risco a segurança, ou o sistema social, ou econômico, do povo de Taiwan”.
Captura de tela de transmissão ao vivo pela C-SPAN da votação na Câmara de Representantes do Congresso americano, em 7 de maio de 2019, sobre as relações EUA-Taiwan (Fonte: Taiwan News)
Ainda que a TRA não determine explicitamente que os Estados Unidos defendam Taiwan no caso de um ataque chinês, o documento afirma que o país deve ter capacidade de fazê-lo por meio de uma “ambiguidade estratégica” em relação a seu papel no caso de conflito entre China e Taiwan. Dessa forma, a ambiguidade estratégica é também uma variável importante nas relações entre Washington e Pequim.
Tendo em vista as manobras militares no Mar do Sul da China e as declarações recentes dos governos de Taiwan, China e EUA, faz-se necessário questionar se os Estados Unidos estariam, de fato, abandonando sua ambiguidade estratégica para administrar a questão taiwanesa. Ao que parece, a resposta é não. Ou seja: a despeito das declarações mais incisivas de Biden, os EUA continuam a seguir literalmente o que determina a TRA e, em paralelo, buscam robustecer uma presença militar anti-China por meio de coalizões de geometria variável com aliados da região.
Celebrado por Taiwan e criticado pela China, o pacto AUKUS (Austrália, Reino Unido e Estados Unidos) eleva o dinamismo e as tensões da segurança da região do Indo-Pacífico. Nesse sentido, é importante ressaltar que o AUKUS suplanta a relevância da ANZUS (Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos) que não permite seu envolvimento no Mar do Sul da China. Adicionalmente, o AUKUS prevê a possibilidade de inclusão de futuros submarinos nucleares australianos à capacidade naval instalada de Estados Unidos e Japão na frota de patrulhamento “defensivo” da região. Com isso, outra aliança se fortalece: o QUAD (EUA, Índia, Austrália e Japão).
Cadeia global de semicondutores como arma de ‘dissuasão’ contra China
No momento, a ambiguidade estratégica parece ser uma boa opção para China, Taiwan e Estados Unidos.
Para além dos custos econômicos e políticos de uma eventual deflagração de conflito envolvendo esses atores e as repercussões sobre todo sistema internacional, existe uma questão de ordem prática extremamente sensível para a estratégia de inserção internacional chinesa: a indústria de semicondutores. Estes componentes altamente especializados fornecem a funcionalidade essencial para dispositivos eletrônicos para processarem, armazenarem e transmitirem dados. A maioria dos semicondutores de hoje são circuitos integrados, ou chips.
De acordo com um relatório recente divulgado pela Casa Branca, a dependência da economia global em relação às firmas taiwanesas de semicondutores é de 92%. Nesse setor, tanto os EUA quanto a China são os maiores mercados consumidores deste produto. Cada um é responsável por 25% da demanda global. Outro dado importante é que 75% da capacidade manufatureira de semicondutores se encontra na China e na Ásia Oriental. Dessa forma, um conflito de proporções imprevisíveis poderia comprometer o acesso global a fornecedores, e/ou a consumidores. O Plano Quinquenal 2021-2025 da China estabeleceu a meta de diminuir a dependência externa na área de semicondutores para se tornar líder global nesse setor.
China quer autossuficiência em semicondutores (Fonte: Shutterstock)
Assim, o desejo de anexar definitivamente Taiwan à soberania territorial chinesa pode esbarrar no obstáculo representado pela indústria global de circuitos integrados. Trata-se de um setor extremamente sensível à demanda e oferta de mão de obra especializada, além de trabalhar com níveis estreitos de tolerância de pureza de matérias-primas e precisão subatômica para muitos de seus processos de produção. Essas condições são, por diversas motivos, difíceis de preservar, em caso de deflagração de conflito e de eventual apropriação de fábricas taiwanesas por parte dos chineses.
Como se vê, apesar dos avanços no setor de semicondutores na China, o país ainda é extremamente dependente de Taiwan. Essa questão impõe a Pequim o desafio de administrar o status quo da relação EUA-Taiwan-China, ao mesmo tempo em que desenvolve sua indústria de semicondutores e busca impedir a eleição do sucessor da atual presidente Tsai Ing-Wen (Partido Democrático Progressista, DPP) que não poderá concorrer a um terceiro mandato em 2024. Dessa forma, seria do interesse de Pequim o retorno da interlocução menos conflitiva do Kuomintang (KMT) para administrar as relações entre Taiwan e China, em contraposição à postura mais centrada em Taiwan do DPP.
* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB), doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019). Contato: robsonvaldez@hotmail.com.
** Recebido em 25 out. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Primeira revisão: Rafael Seabra. Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
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