Internacional

20 anos depois

O então presidente George W. Bush cumprimenta tropas americanas na base aérea de Bagram, no Afeganistão, em 15 dez. 2008 (Crédito: sargento Samuel Morse/Força Aérea dos EUA)

Por Luís Fernando Vitagliano*

O mesmo Afeganistão e o novo EUA no 11 de setembro

Em poucos dias, no próximo 11 de setembro, vai fazer 20 anos que os Estados Unidos sofreu o maior ataque terrorista da sua história. Considerada a mais grave falha na segurança estadunidense desde Pearl Harbor, 1942 (que custou ao Japão duas bombas atômicas), é preciso contextualizar que o “11 de setembro” de 2001 foi mais do que um trauma social aos EUA, foi uma demonstração inadmissível de vulnerabilidade no país que investiu um terço do seu orçamento dos últimos 50 anos em defesa.

Toda a estratégia estadunidense de defesa gira em torno do princípio de que seu território é inviolável. O país que nunca foi invadido e que, com a exceção da base naval do Pacífico, não tem nenhum histórico de dano provocado pelo inimigo em seu espaço físico e em sua população civil – mesmo estando praticamente em todas as guerras dos últimos 100 anos – tinha a proeza de ter um sistema de segurança consolidado; com o sistema de Inteligência invejável e efetivo na busca por informações preventivas, como em Cuba, em 1962.

Quebrado o paradigma dessa estratégia de contenção, a falha de “11 de Setembro” fez o país rever todos os seus protocolos de segurança e mudar consideravelmente a forma como trata sua defesa, incluindo em seus manuais novas formas de guerra e novas ameaças não estatais.

Provocado por um pequeno grupo, de um país irrisório no norte da Ásia, a Al-Qaeda escondida pelo Talibã no governo do Afeganistão violou o mais sofisticado sistema de defesa mundial e precipitou não apenas a mudança em relação aos protocolos de segurança dos Estados Unidos, mas também contribuiu para o fim de uma era do capitalismo.

Supor que os resultados de uma Guerra contra o Afeganistão consistiam no discurso ocidentalizado de democracia, direitos humanos e modernidade é um erro. Devemos supor aqui que os EUA, quando vão ao Afeganistão, não estão olhando somente para o inimigo, mas para si mesmos e suas vulnerabilidades. Obviamente, no momento em que se reagiu a Al Qaeda e ao Talibã, não se supunha que algumas estruturas internas seriam tão afetadas; como a própria etapa do capitalismo industrial na sua fase financeira conhecida pelo neoliberalismo.

Quando as Torres Gêmeas foram derrubadas, começou a cair junto a hegemonia do sistema financeiro que sustentava a sociedade delirante dos yuppies de Nova York. Vinte anos depois, quando o Talibã retorna o governo do Afeganistão, podemos dizer que essa fase de transição está bastante avançada e sem ponto de retorno.

A hijacked plane is seen as it hits the second tower of the World Trade Center on Sept. 11, 2001. (Masatomo Kuriya/Corbis via Getty Images)Avião atinge segunda torre do WTC, em Nova York, em 11 set. 2001 (Crédito: Masatomo Kuriya/Corbis via Getty Images)

Para aqueles que supõem que os EUA perderam a guerra contra o Afeganistão e o Talibã é importante ponderar que o objetivo nunca foi vencer ou subjugar o país, mas corrigir falhas de segurança nacional que permitiram o ataque; além de impor certa crueldade aos inimigos que é típica dos impérios. Se entendermos que o propósito foi esse, a presença ou ausência de soldados norte-americanos é tão é irrisória quanto dizer “venceu”, ou “perdeu”. O fato relevante é que, hoje, o Afeganistão sob o Talibã não se constitua uma ameaça terrorista aos Estados Unidos, e o caminho que se trilhou para que isso pudesse acontecer é tão importante quanto esse resultado.

A sofisticação do sistema de defesa dos Estados Unidos passou pelo investimento pesado em tecnologia e mudanças no padrão de sua espionagem. Saem as pessoas e entram as máquinas. Muda-se com isso o padrão. Lembremos que, em 2001, o telefone da moda era o Blackberrye, seu teclado acoplado a uma tela maior, e permitia acesso à Internet. Em 2006 apenas, surge o buscador do Google – um aperitivo para conhecer o que as pessoas querem e procuram. O smartphone surge apenas em 2010, com a Apple. E os sofisticados sistemas de espionagem e de monitoramento da NSA [Agência de Segurança Nacional] se concentram no sequestro de dados dessas empresas que foram revelados por Snowden são parte do esforço descrito aqui como a mudança de protocolo de segurança e defesa dos EUA.

O investimento em tecnologia, a participação de empresas privadas, a sofisticação de coleta e análise de dados. Considerar grupos políticos, por menores que sejam (e não governos nacionais), em ameaça a segurança não é trivial e contou com o setor púbico e privado, ao subverter o fluxo de capital da economia.

Nos 20 anos em que o Talibã foi alijado do poder, a sociedade internacional conheceu um novo sistema de comunicação e processamento de dados que trouxe, revolução após revolução, mudanças significativas no nosso modo de vida. Também permitiu a governos e empresas do setor de tecnologia dos EUA um conhecimento refinado nunca antes imaginado a respeito de cada um de nós enquanto cidadão, como consumidor: nossos hábitos, nossos gostos, nossa rotina, os locais que frequentamos, as experiências e planos que criamos. Tudo fica registrado, ou deixa rastro, para ser perseguido nos campos virtuais.

O sistema criado pela NSA permitiu mapear quem são e onde estão as ameaças. Não só. Também aos negócios. Depois do “11 de Setembro”, as pessoas deram lugar à Inteligência Artificial, e os soldados hoje são menos responsáveis que os drones pelo sistema de vigilância. Essa alteração do protocolo militar sofisticou empresas, gerou recursos para novos negócios, abriu todo um campo de licitações, e muitas pesquisas surgiram. Houve um esforço nacional que transferiu parte significativa da Inteligência e dos recursos para o mundo digital.

O segundo elemento que favoreceu a subversão da economia dos EUA para impor derrotas ao neoliberalismo foi a própria crise de 2008. Se olharmos para o ranking das maiores empresas no início do século XX vamos encontrar empresas de petróleo e finanças. Se olharmos para o mesmo ranking hoje, vamos encontrar em menor quantidade as empresas do capital financeiro, dando espaço e a liderança a empresas de tecnologia (algumas com menos de 20 anos de existência). O que é a velha Ford, ícone do século XX, diante da Microsoft?

O 11 de Setembro, pelo lado do investimento em sistemas digitais de processamento de dados de monitoramento, e a Crise de 2008, expondo Bancos pelos prejuízos causados pela bolha imobiliária, precipitaram a entrada dos EUA na corrida digital. E, sem esses dois eventos, seriam pegos absolutamente desprevenidos pelo padrão da economia chinesa.

Como elemento exógeno ao processo, a recente liderança comercial da China, seus investimentos em tecnologia e a ampliação dos investimentos diretos do país despertou a atenção para o fato de que os EUA pudessem perder a liderança econômica mundial. Outro elemento impensável no início do século XXI, mas que tem tomado as páginas sensacionalistas dos jornais com as disputas do 5G.

Esses três elementos aparentemente dispersos e sem nexos causais formam a tempestade de eventos que levaram os EUA (e, a reboque, o mundo ocidental) para reconfiguração econômica e, de alguma forma, manter-se na disputa internacional pela hegemonia. Pouca gente tem percebido que a correlação das forças políticas nos EUA mudou, e as mudanças econômicas aceleraram o país no sentido de novos padrões.

Veja que, embora Obama tenha gasto 3 trilhões de dólares para tirar o sistema financeiro dos EUA da bancarrota, ele venceu Hillary (a representante de Wall Street no Partido Democrata) e reestruturou as Forças Armadas de modo a modernizar sua tecnologia. Obama usava as mídias digitais, criou um sistema de captação de recursos nas redes sociais, sabia como usar os mais modernos recursos de tecnologia. A NSA ganhou poder no seu governo. Poder e recursos. Obama assistiu, da Casa Branca, à operação que assassinou Osama Bin Laden no Paquistão em 2011. Achar Bin Laden exigiu um complexo sistema de espionagem com uso dos mais modernos modelos de banco de dados. Nesses últimos vinte anos os EUA evitaram tantos outros atentados e sofisticaram seu sistema para prevenir-se contra ataques de células ligadas a jihad internacional que o protocolo de segurança venceu. Não é necessário estar no Afeganistão para estar no Afeganistão. Não é mais necessário estar em nenhum lugar do mundo para espionar.

Terrorabwehr: Obamas ehemaliger Berater: „Drohnen sind notwendig“ - Politik  - TagesspiegelA Guerra de Obama: manifestantes queimam bandeira dos EUA em protesto contra ataques de drones em Multan, no Paquistão, em 14 mar. 2012 (Crédito: Shahid Saeed Mirza/AFP via Getty Images)

Graças às mudanças de protocolos, as mudanças políticas também vieram: Trump também não representava o sistema financeiro, vinha do setor produtivo e defendia que, através de empregos precarizados, se enfrentaria a China. Agora, mais que Biden, Kamala Harris representa e usa as empresas de tecnologia. Deixaram a Casa Branca os representantes do setor financeiro da Costa Leste para assumirem os ligados ao Vale do Silício da Costa Oeste.

Portanto, ao contrário do que se tem abordado em geral, os EUA já conquistaram o que queriam com sua incursão ao Afeganistão. Mapearam o terreno, recuperaram o domínio da situação, criaram novos protocolos, enfraqueceram seus inimigos e as potenciais ameaças e afastaram qualquer possibilidade de uma nova violação do seu sistema de defesa interno. Além disso, a antecipada mudança da correlação de forças na Casa Branca permite que os esforços de enfrentamento tecnológico ganhem a arena principal.

O Talibã, os grupos fundamentalistas do Estado Islâmico e a situação no Oriente Médio representam um problema menor para os EUA neste momento. A região está menos interessante. Obama, com seu programa de óleo de xisto, encarregou-se de reduzir a dependência energética. Agora, é hora de fechar a torneira dos gastos para outras prioridades. Além disso, os EUA ficarão muito mais confortavelmente na sua posição natural no norte da Ásia: como sabotadores podem financiar grupos rivais para que nada aconteça, para que a interligação, o corredor comercial que quer a China não ocorra e as disputas internas se arrastem por anos a fio, com gastos e esforços em vão pelo lado dos Chineses e Russos. É hora de chutar a escada.

Pode ser que, como se tem previsto, em 15 ou 20 anos os EUA estarão muito atrás dos chineses. Isso não significa necessariamente nem boa nem má notícia pra nós, brasileiros. Nessa nova forma de disputa entre as principais potências do mundo, a região mais fragilizada estrategicamente e mais débil é a América Latina, que tem lidado mal com os interesses de todos os lados. Ainda piora nossa situação quando lemos mal a conjuntura: a saída do Exército dos EUA e a retomada de Cabul pelo Talibã depois de 20 anos não significa o presságio que se diz. Não é uma tragédia, ou sinal dos tempos.

O que queriam os EUA quando foram há 20 anos não era uma vitória arrasadora da civilização ocidental sobre a barbárie. Eram apenas vingança e testes de defesa. Sabia-se de antemão que era improvável encontrar a pacificação no Afeganistão. Mas era uma guerra que sensibilizava a opinião pública e se tornou uma boa estratégia para mudar procedimentos e acelerar mudanças no Deep State.

 

* Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.

** Publicado originalmente no blog a terra é redonda, em 5 set. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais