Em Washington, Biden e Zelensky tentam aparar arestas entre Estados Unidos e Ucrânia
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, é recebido por Biden na Casa Branca, em Washington, D.C., em 1º set. 2021 (Crédito: Presidente Biden/Twitter)
Por Gustavo Oliveira*
No final de agosto e início de setembro, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, realizou uma aguardada visita aos Estados Unidos. Ao longo da sua estada, ocorrida poucos dias após as comemorações do 30º aniversário da independência da Ucrânia, Zelensky foi recebido pelo presidente Joe Biden na Casa Branca, em 1º de setembro. Para além da importância intrínseca de seu nível presidencial, a viagem de Zelensky também assumiu grande relevância para as relações bilaterais e para o contexto internacional, em virtude das circunstâncias políticas que a antecederam. Apesar dos laços próximos construídos entre Ucrânia e Estados Unidos ao longo dos últimos sete anos, as relações entre os dois países vinham passando por um estremecimento nos últimos meses.
Diversos assuntos contribuíram para azedar as relações entre os Estados Unidos e a Ucrânia. O principal deles foi o polêmico gasoduto Nord Stream 2 (NS2), que liga a Rússia à Alemanha. Os Estados Unidos têm uma postura tradicionalmente crítica a esse projeto, considerado em Washington como um canal para o aumento da dependência energética europeia em relação à Rússia (além de representar uma concorrência para o setor de energia dos próprios Estados Unidos). Já do ponto de vista ucraniano, o transporte direto do gás russo para a Alemanha via NS2 pode trazer prejuízos econômicos, uma vez que a Ucrânia se beneficia financeiramente do pagamento pelo trânsito de gás russo para outros países europeus, a partir de seu território. Ademais, Zelensky argumenta que a diminuição da importância da Ucrânia para o trânsito de gás russo tornaria seu país mais vulnerável a ações agressivas por parte de Moscou. Nas palavras do presidente ucraniano, o NS2 constitui uma “perigosa arma geopolítica do Kremlin”.
Energia, segurança e diplomacia: desencontros entre Washington e Kiev
Os Estados Unidos vêm adotando sanções econômicas relacionadas ao NS2. Diante da insistência da Alemanha em dar seguimento ao projeto e em nome das boas relações com um crucial aliado europeu, o governo Biden acabou desistindo dos esforços para bloquear a conclusão do gasoduto. Esse posicionamento foi sacramentado em julho passado, após o encontro entre Biden e a chanceler alemã, Angela Merkel, em Washington, D.C. Os governos dos Estados Unidos e da Alemanha publicaram uma declaração conjunta que, apesar de prometer diversos tipos de compensação à Ucrânia e retaliar Moscou, caso a Rússia utilize a “energia como uma arma”, não negou a continuidade do NS2.
Desse modo, a declaração Biden-Merkel foi vista por muitos na Ucrânia, como se diz no jargão político local, como uma verdadeira zrada – ou “traição”, em tradução livre. O governo ucraniano logo divulgou uma nota conjunta com a Polônia, outro país que se considera prejudicado pelo NS2, na qual anunciou a intenção de contínua oposição ao NS2.
Kyiv Post, famoso semanário em língua inglesa sobre a Ucrânia, chamou de ‘traição’ acordo entre Alemanha e EUA relacionado ao NS2 (Crédito: Kyiv Post/Twitter)
Já nos Estados Unidos, a recepção do acordo e da política de Biden para o NS2 não ficou devendo em termos de negatividade. As críticas vêm sendo capitaneadas pela oposição republicana no Congresso, com destaque para a atuação de Ted Cruz (R-TX), senador pelo Texas ligado às indústrias de gás e petróleo estadunidenses. Congressistas republicanos demandaram novas sanções ao NS2 e chegaram a ameaçar obstruir nomeações da administração democrata para os departamentos do Tesouro e de Estado, em virtude da postura do governo Biden na questão do gasoduto.
O acesso da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tem sido outro motivo de desencontros. Zelensky enfatizou publicamente a necessidade de a Ucrânia receber um “Plano de Ação para a Adesão” (Membership Action Plan, MAP), que pavimentaria o caminho para a entrada do país na aliança militar liderada pelos Estados Unidos. As demandas de Kiev têm, no entanto, encontrado negativas em Washington, apesar de Biden ter chegado a afirmar, em junho, que a situação de conflito territorial com a Rússia não seria um impedimento para a entrada da Ucrânia (a ausência de disputas territoriais é, tradicionalmente, considerada um requisito para a admissão de novos membros na OTAN). O presidente dos Estados Unidos jogou mais um balde de água fria no governo ucraniano, porém, ao afirmar que o acesso dependeria de outros critérios, como o sucesso no combate à corrupção. Este tema tem sido alvo de frequentes cobranças do governo Biden, assim como as reformas nos setores judiciário e de segurança da Ucrânia.
Por fim, cabe mencionar a percepção de desprezo diplomático no tratamento dispensado pela administração Biden ao governo ucraniano. Houve relatos, por exemplo, de que a administração democrata teria urgido o governo ucraniano a não fazer críticas públicas ao acordo Biden-Merkel sobre o NS2. Ademais, o período agendado para a estadia da delegação ucraniana coincidiu com a época de recesso parlamentar nos Estados Unidos, decisão largamente vista como uma manobra para dificultar contatos do governo ucraniano com congressistas críticos da política de Biden para o gasoduto. Conforme noticiado na imprensa norte-americana, a Casa Branca já havia negado o pedido de Zelensky para um encontro com Biden antes da cúpula russo-estadunidense realizada em junho, na Suíça. Do mesmo modo que no caso do NS2, a recusa estimulou interpretações de que a Ucrânia seria um mero objeto de barganhas geopolíticas entre Washington e as outras grandes potências.
Estada de Zelensky nos EUA e seus resultados
Diante dessas controvérsias, a viagem de Zelensky constituiu uma oportunidade para Estados Unidos e Ucrânia apararem as arestas em suas relações. Acenos nesse sentido vinham, inclusive, sendo feitos pelos dois lados nas semanas que antecederam a visita da delegação ucraniana. Em 27 de agosto, por exemplo, Biden autorizou mais um pacote de auxílio militar à Ucrânia, o qual incluiu armamentos norte-americanos. Dias antes, o governo Zelensky, em um ato simbolicamente direcionado a Biden, anunciou sanções ao deputado ucraniano Andrii Derkach. No contexto da última eleição presidencial norte-americana, Derkach havia ganhado notoriedade nos dois países por se aliar ao círculo político de Donald Trump e promover acusações de que Biden e oficiais estadunidenses tiveram envolvimento impróprio na Ucrânia nos últimos anos.
Gleb Garanich/Reuters)
Nessa mesma direção, a estadia de Zelenky foi marcada pelas protocolares juras norte-americanas de apoio às reformas políticas e às aspirações euro-atlânticas da Ucrânia, bem como à integridade do país diante das disputas com a Rússia. Na prática, porém, não houve alterações significativas nas questões mais nevrálgicas que haviam causado controvérsia nos últimos meses. Nesse sentido, prevaleceram os termos preferidos pelos Estados Unidos.
O documento que deveria simbolizar o clímax da viagem de Zelensky foi um exemplo ilustrativo disso. A declaração conjunta sobre a parceria estratégica entre Estados Unidos e Ucrânia afirma a oposição de ambos os lados ao NS2, mas não estipula explicitamente, por exemplo, sanções voltadas para um bloqueio efetivo do gasoduto. A declaração reitera, em essência, a abordagem do acordo Biden-Merkel no sentido de buscar amortecer os impactos negativos do NS2 para a Ucrânia. Em outra consolação para Kiev no campo energético, o Departamento de Energia de Estados Unidos e o Ministério correspondente ucraniano também assinaram uma declaração de intenções. Entre outras questões, o texto estipulava a necessidade de se realizar esforços pela segurança energética da Ucrânia. Adicionalmente, um memorando de entendimento estipulou a participação de uma empresa norte-americana de energia nuclear na instalação de reatores na Ucrânia.
Segundo Zelensky, o tema da OTAN também foi bastante discutido com Biden. Apesar do apoio norte-americano à futura entrada da Ucrânia na aliança, Zelensky saiu de Washington sem encaminhamentos sobre o MAP, ou mesmo sem cronogramas concretos de acesso à OTAN. Em vez disso, foram assinados diversos acordos na área de segurança e defesa, contemplando a cooperação em campos como a cibersegurança, reformas do setor de defesa ucraniano, conforme padrões da OTAN, projetos de modernização militar e a realização de treinamentos das Forças Armadas. Embora possam ter sua importância, os acordos essencialmente consolidam a (já extensa) cooperação bilateral na área militar nos últimos anos, um dos principais canais de envolvimento dos Estados Unidos na Ucrânia.
Ministro ucraniano da Defesa, Andrii Taran (à esq.), Zelensky (centro) e o secretário americano da Defesa, Lloyd Austin III, no Pentágono, em 31 ago. 2021 (Crédito: Presidência da Ucrânia)
Os contatos entre os dois governos não trouxeram, portanto, grandes mudanças para as relações bilaterais, o que também foi ilustrado pelo declarado compromisso ucraniano com privatizações e reformas (políticas, econômicas e nos setores judiciário, de energia, defesa e segurança) apoiadas pelos Estados Unidos. Ainda assim, os acontecimentos recentes podem ser capitalizados por ambos os lados em seus respectivos cenários domésticos. Para Biden, as novas promessas de apoio, em especial no campo militar, dão munição para rebater as críticas, especialmente por parte da oposição republicana, de que a administração democrata teria abandonado a Ucrânia frente à Rússia.
Já para Zelensky, essas mesmas promessas vão ao encontro de sua estratégia de legitimação interna, crescentemente baseada na imagem de um firme defensor da integridade e da soberania da Ucrânia em contraposição a Moscou. Nesse sentido, as manifestações de apoio norte-americanas complementam medidas recentes de combate a setores considerados pró-russos na Ucrânia, as quais também têm implicações para o debate público no país sobre as relações com os Estados Unidos.
Em agosto, o governo ucraniano decretou um bloqueio ao popular portal oposicionista Strana.ua, acusado de “sistemática propaganda antiucraniana”. Foi mais uma das controversas medidas no campo midiático que, por seu viés autoritário, vêm sendo criticadas por instituições internacionais que monitoram a liberdade de imprensa. Na imprensa local, o Strana.ua tem sido o principal crítico da influência das potências ocidentais – particularmente dos Estados Unidos – na Ucrânia. Em maio, as autoridades ucranianas já haviam decretado a prisão domiciliar do deputado de oposição Viktor Medvechuk, principal aliado de Vladimir Putin no país. Outro forte crítico da influência norte-americana na Ucrânia, Medvedchuk, também alvo de sanções dos EUA, aguarda julgamento por acusações de traição nacional, ao cooperar com o governo russo.
Labirinto geopolítico da Ucrânia favorece os EUA
A capacidade demonstrada pela administração Biden de fazer prevalecerem seus termos diante dos interesses da Ucrânia pode ser explicada, evidentemente, pela assimetria de poder em favor dos Estados Unidos. Essa condição é intensificada pelas próprias circunstâncias geopolíticas em torno da Ucrânia: diante das disputas russo-ucranianas, os Estados Unidos, com seu enorme poderio diplomático, militar e tendências de rivalidade com a Rússia, permanecem uma opção de aliança sem paralelos para Kiev.
A Ucrânia se encontra, portanto, em uma espécie de labirinto geopolítico que a empurra para a órbita dos Estados Unidos, dificultando possibilidades de orientação externa alternativas e tornando o país propenso a atitudes de deferência a Washington. Deve-se ressaltar, contudo, que esse também é, em grande medida, um labirinto autoimposto. Desde 2014, fortaleceu-se, dentro da elite política ucraniana, a ideologia da orientação externa pró-ocidental, bem como o projeto de construção de uma identidade nacional largamente baseada no afastamento em relação à Rússia.
Diante desses fatores, os Estados Unidos contam com ampla latitude para pautarem as relações com Kiev conforme seus interesses. Nesse sentido, o governo Biden tem dado sinais de que sua política para a Ucrânia está em larga medida subordinada a dois interesses maiores para os Estados Unidos: administrar a rivalidade com a Rússia – evitando, por exemplo, provocações como o acelerado ingresso da Ucrânia na OTAN – e assegurar o vigor da aliança com a Alemanha, crucial parceira transatlântica, como tem demonstrado a política de Biden para o NS2 até o momento. Dessa maneira, o governo democrata sinaliza estar buscando a estabilidade da frente europeia para se concentrar naquilo que os Estados Unidos têm visto cada vez mais como o maior desafio em sua grande estratégia: a contenção da China.
* Gustavo Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP). Bolsista CAPES/BRASIL. Em 26 de agosto, foi um dos entrevistados do episódio sobre a crise do Afeganistão do programa Diálogos INEU, apresentado pela pesquisadora Neusa Maria Bojikian (INCT-INEU). Contato: gustavo.ot.menezes@unesp.br.
** Recebido em 4 set. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do Opeu, ou do INCT-INEU.
Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
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