WHINSEC: Educar para desestabilizar?
Instrutor visitante orienta alunos do WHINSEC e da Escola Escola de Instrução e Treinamento Técnico para Pequenas Embarcações Navais, depois de exercício de treinamento em campo (Crédito: RJ Stratchko/Marinha americana)
Panorama EUA_OPEU_WHINSEC Educar para desestabilizar v11 n7 Ago 2021
Por Camila Feix Vidal e Luciana Wietchikoski*
“If you want to assist your neighbours, why not assist through military?”
John LeMoyne, Comandante do WHINSEC (Smihula, 2003)
Em 7 de julho de 2021, o presidente do Haiti, Jovenel Moise, foi assassinado em sua casa em Porto Príncipe. Ainda que estejamos longe de entender a trama complexa que envolve diferentes grupos de civis, militares e de países, já sabemos que os assassinos acusados são colombianos que foram treinados na maior escola de treinamento militar estadunidense para a América Latina: o Instituto de Cooperação em Segurança do Hemisfério Ocidental (em inglês, WHINSEC). O porta-voz do Departamento da Defesa dos Estados Unidos, John Kirby, confirmou que, do total dos 18 colombianos presos pelo assassinato, ao menos sete eram antigos militares do Exército colombiano que receberam treinamento “fornecido e financiado pelos EUA” e que alguns deles concluíram cursos no WHINSEC.
Suspeitos do assassinato do presidente haitiano, Jovenel Moise, são apresentados à imprensa, junto com armas e equipamentos que teriam sido usados no ataque, Direção Geral de Polícia, em Porto Príncipe, em 8 jul. 2021 (Crédito: Joseph Odelyn/AP)
Não foi a primeira vez que esse instituto esteve relacionado a arquitetos de golpe de Estado. Na Bolívia, o comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, foi peça fundamental no golpe que depôs o então presidente Evo Morales. O general foi enviado duas vezes pelo presidente Carlos Mesa (derrotado por Morales na eleição seguinte) para cursar o WHINSEC em 2003 e 2004 e serviu de adido militar na embaixada boliviana em Washington. Além de Kaliman, outros cinco militares que atuaram junto com o general para a deposição de Morales estiveram nessa mesma instituição.
No caso do assassinato do presidente haitiano, era de se esperar que, sendo ex-militares colombianos, esses indivíduos representassem um elo com Washington, dado que a Colômbia é o país na América Latina que mais recebe recursos financeiros e treinamento militar por parte dos EUA. Ainda assim, o caso dos antigos militares colombianos não parece ser inédito. Coincidência, ou não, o instituto que sucede à Escola das Américas, parece suceder também ao padrão de atuação dessa escola. O fato de o WHINSEC estar presente nas análises dos militares nacionais que perpetuaram os mais recentes golpes na América Latina nos leva a questionar se esse instituto poderá vir a ser a “escola de assassinos” do século XXI.
EUA, Colômbia e WHINSEC: o assassinato do presidente haitiano
Nenhum outro país da América Latina recebeu dos EUA tanto financiamento e treinamento de seus militares quanto a Colômbia. De 2000, quando o Plano Colômbia foi lançado com o objetivo de erradicação do cultivo e do tráfico de narcóticos, até 2018, os EUA treinaram mais de 107 mil indivíduos das Forças Armadas e da segurança colombiana. Nenhum outro país latino-americano se aproxima desse número.
Os então presidentes dos EUA, Bill Clinton, e da Colômbia, Andres Pastrana, assinam acordo para aliança contra tráfico de drogas, Casa Branca, em Washington, D.C., em 28 out. 1998 (Crédito: Stephen Jaffe/AFP via Getty Images)
A Colômbia é, assim, um caso emblemático de atuação estadunidense na região, da extensiva militarização que essa relação produziu no país andino e das consequências em termos de violação de direitos humanos e assassinatos contra civis que essa “parceria” acarreta.
Após 20 anos de extensivo treinamento e financiamento militar, a Colômbia tem Forças Armadas treinadas, relativamente baratas e em excesso. Não por acaso, antigos militares colombianos abandonaram as Forças Armadas e atuam como mercenários para empresas de segurança privada, ou para outros países, como é o caso de Iêmen, Afeganistão, Iraque e Israel. A exportação da “segurança” por parte de antigos militares colombianos é consequência do papel dos EUA e da extensiva militarização que caracterizou (e justificou) o Plano Colômbia. Entretanto, se o intuito era o estabelecimento de ambiente pacífico, com base em forças de defesa e de segurança “bem treinadas”, os resultados estão longe de se concretizarem.
De acordo com relatório produzido pela Fellowship of Reconciliation (FOR) em 2014, os EUA treinaram, armaram e equiparam as Forças Armadas colombianas a um custo de quase US$ 7 bilhões entre 2000 e 2014. Se o número de assassinatos de civis formalmente contabilizados, de fato, diminuiu no país, o número de “falsos positivos”, ou de “assassinatos extrajudiciais” (mortes de civis, mas que são caracterizados como guerrilheiros mortos em combate), aumentou na mesma proporção. A partir do estudo de quase 6 mil execuções realizadas na Colômbia, o relatório aponta uma correlação positiva entre unidades e oficiais que receberam assistência e treinamento estadunidense e a ocorrência de assassinatos extrajudiciais:
Uma análise estatística de 1.821 dessas execuções, onde as unidades responsáveis foram diretamente identificadas, mostrou que as brigadas do Exército que receberam um moderado nível de assistência estadunidense, em comparação com um nível baixo, foram dez vezes mais associadas a execuções por brigadas nos dois anos depois da assistência (tradução livre).
Boa parte desse treinamento militar foi realizado no WHINSEC, considerado requisito para ascensão na carreira militar na Colômbia e para onde são enviados os “melhores” da instituição. Para Enrique Padrós (2007),
O treinamento ministrado pelos especialistas dos EUA tornou-se uma oportunidade de ascensão na carreira e de melhoria salarial para os quadros escolhidos. Os oficiais que passavam por tais cursos conseguiam promoções mais rápidas, tinham mais oportunidades de serem chamados para tarefas especiais ou atividades de assessoramento e podiam vir a assumir protagonismos futuros que constituíam expectativas concretas de vantagens pessoais (altos postos de comando, cargos ministeriais, direção de empresas públicas, representação em missões no exterior, etc.). Este mecanismo, indiretamente, consolidava a influência da superpotência sobre a orientação da política de segurança interna dos governos locais.
De fato, parte dos acusados do assassinato do presidente haitiano não apenas frequentou o WHINSEC, como havia servido em unidades de operações especiais nas Forças Armadas colombianas, consideradas de elite. Para o Comandante do Instituto, Robert Alvaro, “Todos os países que chegam aqui querem aprender com o melhor Exército do mundo. […] Não há outro no mundo que se compare a nossa experiência e somos também o Exército mais treinado que existe. Então, para eles [latino-americanos], é muito importante estar aqui”.
Comandante do WHINSEC, coronel do Exército dos EUA Robert Alvaro (Fonte: Diálogo Revista Militar Digital)
O estudo conduzido pela FOR buscou evidenciar o papel do WHINSEC nas Forças Armadas colombianas em relação aos assassinatos falso positivos. Para isso, analisaram dois grupos: um grupo de 25 militares colombianos que frequentaram a instituição entre 2001 e 2003 e um grupo aleatório de militares que não frequentaram. No primeiro, dos 25 colombianos que frequentaram o WHINSEC entre 2001 e 2003, 12 deles (48%) foram processados por crimes graves, ou comandaram unidades que cometeram múltiplos assassinatos extrajudiciais na Colômbia. Já o segundo grupo apresenta um número menor: 4 militares (16%), dos 25 analisados, foram processados por assassinatos extrajudiciais, ou por comandarem unidades que cometeram esses crimes.
De acordo com o relatório, “ainda que a análise não evidencie que a ajuda dos EUA especificamente causou, ou instigou, execuções, ela coloca em xeque a ideia de que a ajuda estadunidense aumentou o desempenho dos direitos humanos”. Aqui, o treinamento dado pelo “melhor Exército do mundo” parece carecer de resultados positivos.
-
WHINSEC e Escola das Américas: nomenclaturas diferentes para atuações similares
O Instituto de Cooperação em Segurança do Hemisfério Ocidental é uma instituição militar educacional criada em 2001 para substituir a Escola das Américas. Ao que tudo indica, esses centros educacionais não apenas compartilham o mesmo endereço e os mesmos profissionais, como, aparentemente, compartilham um mesmo padrão de treinamento e de atuação na América Latina.
A Escola das Américas (SOA, em inglês) foi fundada em 1946, no Canal do Panamá, como forma de manutenção hegemônica estadunidense na América Latina no combate ao comunismo em face da ameaça soviética dentro de um contexto próprio da Guerra Fria. Apesar de não ser a única instituição de treinamento e de educação militar estadunidense para a América Latina, ela foi a principal. Em 1963, com o sucesso da Revolução Cubana, a Escola passa por uma reestruturação que implica estender a percepção da ameaça: da externa, identificada com a União Soviética, para a ameaça interna, identificada com movimentos revolucionários nacionais. Em 1984, por conta da devolução do Canal para os panamenhos, a SOA finalmente se estabelece em Fort Benning, na Geórgia, local hoje ocupado pelo WHINSEC.
‘Chega de mortes!’: Padre Roy Bourgeois (centro) e outros marcham no protesto annual da SOA Watch, nos portões de Fort Benning, em 22 nov. 15 (Crédito: Mike Haskey/Ledger-Enquirer)
Entre 1946 e 2000, ano em que foi fechada, a Escola das Américas treinou mais de 60 mil militares latino-americanos. A relação de proximidade entre notórios militares golpistas e violadores de direitos humanos e a SOA (como é o caso de Roberto D’Aubuisson, em El Salvador; Manuel Noriega, no Panamá; Jorge Videla, na Argentina; Leopoldo Galtieri e Hugo Banzer, na Bolívia; Augusto Pinochet, no Chile; entre outros tantos) fez com que a instituição fosse chamada de “Escola de Assassinos”. Em 1996, após pressão da sociedade civil e de membros do Congresso estadunidense, a Escola divulgou os manuais utilizados durante a Guerra Fria. Neles, foi possível identificar práticas de tortura e técnicas violentas de interrogatório. Para Michael Parenti,
A Escola das Américas é um dos muitos instrumentos usados pelos EUA para impor o status quo aos outros países pela força e pela violência. […] Eles dizem que fazem isso para a democracia, para lutar contra o comunismo, para frear o terrorismo, para assegurar as vidas estadunidenses, ou para defender interesses estadunidenses. Quando dizem interesse estadunidense estão mais perto da verdade. Mas interesses estadunidenses de quem? Não o meu interesse, ou o do estadunidense que paga impostos. É o interesse de investidores de grandes corporações. O objetivo é bastante racional, persistente e consistente. O objetivo é tornar o mundo seguro para aquele 1%, ou 2%, do topo que é dono de boa parte do mundo.
As críticas contra a Escola se avolumaram na década de 1990 e vieram tanto do meio político quanto de grupos organizados na sociedade civil. O congressista democrata Joseph Kennedy II (D-MA) foi um dos políticos mais atuantes no fechamento da Escola. O padre Roy Bourgeois, antigo oficial da Marinha dos Estados Unidos que serviu no Vietnã e trabalhou na Bolívia de Hugo Banzer, também foi notório na defesa do encerramento das atividades da SOA. Em 1990, ele funda a School of America Watch (SOAW) que promove ações para a liberação de documentos confidenciais e ações contrárias à manutenção da Escola. A SOAW continua ativa, agora tendo como foco o WHINSEC. Na América Latina, a organização brasileira Tortura Nunca Mais foi responsável pela coleta de assinaturas de 142 grupos de direitos humanos que pediram o fechamento da Escola. Para o ex-presidente do Panamá Jorge Illueca, país sede da SOA por quase 20 anos, a Escola é a maior força para desestabilização na região.
Em dezembro de 2000, a Escola das Américas foi, finalmente, fechada. Menos de um mês depois, porém, em janeiro de 2001, o WHINSEC é inaugurado na mesma localização da Escola e com praticamente os mesmos professores e os mesmos cursos. Para além da mudança de nomenclatura, a Escola das Américas na versão contemporânea do WHINSEC apresenta curso obrigatório em Direitos Humanos (8 horas) e ações de operações de paz. Para o major e antigo professor da SOA Joseph Blair,
O novo WHINSEC ainda ensina as mesmas idênticas disciplinas do Exército que a SOA ensinou ano passado, e dez anos atrás, em Fort Bening. Nada realmente mudou. Eles criaram muitos cursos com nomes que parecem que o Instituto existe para ensinar democracia e direitos humanos, entretanto, a maioria desses cursos é oferecida, mas nunca lecionada.
Com o objetivo de ser “o melhor instituto de treinamento educacional das Américas para segurança e defesa”, o WHINSEC responde ao Departamento da Defesa e aos Comando Sul e Comando Norte. É uma das três organizações do Exército estadunidense a outorgar diplomas de Mestrado e uma das inúmeras a reproduzir (e, no caso, ensinar) a Doutrina de Segurança Nacional dos EUA. Para o comandante do WHINSEC, Robert Alvaro, “temos um bom programa de educação que leva nossos instrutores de nações parceiras a treinarem na doutrina dos EUA – eles aprendem e passam, então, por um processo educacional onde treinam para serem instrutores no nível dos demais do Exército dos EUA, para que possam ser competitivos. E já vimos os resultados durante três anos consecutivos”.
Maioria masculina: alunos do WHINSEC visitam o IADC, em 23 abr. 2019 (Fonte: IADC)
Com um corpo docente e discente bastante masculino (cerca de 90% homens), os cursos se orientam a partir de: desenvolvimento de liderança, administração de recursos, planejamento para desastres naturais, contra narcóticos e manutenção de paz. Uma ênfase recai no combate ao narcotráfico e às narcoguerrilhas, reproduzindo as mesmas ameaças e discursos dos comandantes do WHINSEC e conforme Plano Estratégico de Defesa dos EUA.
Para além dos militares, o instituto recebe policiais e agentes de segurança pública que atualmente representam cerca de 25% de todos os alunos do WHINSEC. Não é de se surpreender, levando-se em conta o entendimento de que o inimigo está em solo doméstico. Para o comandante do WHINSEC,
[…] isso não significa que perderemos nossa identidade como instituição militar. A maioria das ameaças nas Américas está sob a responsabilidade dos órgãos de segurança pública e da polícia. […] Para deixar claro, trabalhamos com segurança e defesa porque temos autoridade para treinar policiais e militares de todas as instituições bem como civis que trabalham nos ministérios da Segurança e da Defesa em toda essa região.
Os estudantes que passam pelo instituto advêm de praticamente todos os países da América Latina e Canadá: 36 países ao todo. Há, entretanto, o predomínio de indivíduos oriundos dos países caribenhos. Os instrutores são estadunidenses militares e civis, além de militares e policiais das nações “parceiras”. Corroborando para a endogenia que caracteriza esse tipo de escola, todos os instrutores são especialistas nos cursos em que ministram e devem ter concluído algum treinamento básico de instrutor, geralmente na própria instituição, antes de entrar na plataforma de ensino onde são obrigados a continuar seu treinamento enquanto ali estiverem designados. O recrutamento desses alunos é realizado por meio das embaixadas estadunidenses e suas agências. Após seleção, o Departamento de Estado faz a revisão final e certifica os estudantes.
Quadro: Características WHINSEC
Escola | Western Hemisphere Institute for Security Cooperation (WHINSEC)
|
Fundação | 2001 |
Instituição a quem é subordinada | Departamento da Defesa |
Sede | Geórgia |
Idioma oficial | Espanhol |
Total alunos formados | 25.683 (2018) |
Caracterização dos alunos | Militares;
Policiais civis; Civis (Ministérios da Defesa e Polícia Civil) |
Origem dos alunos | 36 países da AL e CAN |
Recrutamento | Embaixadas e suas agências no país de origem, além de revisão adicional no Departamento de Estado |
Nº de cursos oferecidos | 16 |
Os cursos | Englobam conteúdo de treinamento para combate de ilícitos e de desastres e promoção de direitos humanos |
Média dos cursos | De 47 semanas (para oficiais e generais do Exército) a 4 semanas (Direitos Humanos) |
Quem elabora os cursos | Agências do governo dos EUA e Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos EUA Apoiam os planos de cooperação de segurança dos Comandos Norte e Sul |
Quem são os instrutores | Militares e civis estadunidenses e militares e policiais das nações parceiras |
Fonte: elaboração própria com base em WHINSEC.
-
A manutenção hegemônica terceirizada
A existência e a atuação do WHINSEC não é um caso isolado, sendo parte do instrumental de política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Assim como instituições de “ajuda humanitária”, como é o caso do National Endowment for Democracy (NED), do Center for International Private Enterprise (CIPE) e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês); o WHINSEC (e sua predecessora, a SOA) foi criado com dois objetivos: manter o status quo na AL (manter, portanto, as sociedades latino-americanas subjugadas por uma elite econômica, assim como a desigualdade caraterística da região) e fortalecer interesses econômicos dos Estados Unidos no subcontinente. Não é à toa que, durante a Guerra Fria, grupos de indivíduos que buscavam romper a lógica desigual e que se opunham à manutenção do status quo, eram considerados comunistas e, portanto, inimigos nacionais.
‘Ajuda humanitária’ (Fonte: Resumen Latinoamericano)
Com o fim da Guerra Fria e com a substituição do comunismo pela ameaça terrorista, os grupos que hoje se insurgem são considerados narcoterroristas e, novamente, inimigos do Estado. Para William Leogrande, programas de contrainsurgência são agora apresentados como programas de contranarcóticos, como é o caso do Plano Colômbia.
Uma estrutura de dominação precisa se apoiar em uma espécie de “saber técnico”, por meio do qual o centro hegemônico, que detém os recursos financeiros, produz ideias, teorias e conceitos, importados e consumidos pela periferia, em uma reprodução de saberes que emula os mecanismos de dominação. O uso de educação técnica e de treinamento para forças de defesa e de segurança dos países latino-americanos se insere nessa lógica. O WHINSEC, assim como fora antes a Escola das Américas, é apresentado como força garantidora da estabilização na região, baseado em treinamento militar que representa a doutrina de segurança estadunidense.
Essa espécie de neocolonização, ou “colonização pedagógica”, garante a subordinação de estados periféricos e classes subalternas à potência hegemônica. Daí a importância de centros de difusão de conhecimento e de treinamento que vão organizar a difusão de uma determinada visão de mundo e de estratégia de ação a ser, então, reproduzida nos outros países por nacionais cooptados.
Nesse sentido, é importante enfatizar o óbvio: os EUA atuam como potência imperial. Ao contrário do império europeu no século XIX que exercia controle direto nas colônias, os Estados Unidos operam de Estados-satélites que são, formalmente, soberanos, mas que reproduzem interesses econômicos e políticos da classe dominante estadunidense. Para Michael Parenti,
A política dos EUA é brilhante. É a política imperial de maior sucesso em qualquer país da história do mundo. O império britânico não é nada comparado ao que os Estados Unidos têm conseguido fazer. Em todo mundo, os EUA estão em toda parte, intervindo consistentemente ao lado dos poderes corporativos, dos interesses da classe econômica dominante e consistentemente contra aqueles que querem questionar o interesse no lucro.
Para Leslie Gill, “[…] o império estadunidense é menos sobre promoção da democracia e dos direitos humanos do que sobre a repressão e a humilhação de pessoas, cujos recursos nosso governo tem cobiçado. E as Forças Armadas eu diria que são o instrumento principal nesse processo”. O treinamento militar em centros educacionais, como foi o caso da SOA e como é o caso do WHINSEC hoje, revela-se, de fato, peça fundamental para o sucesso desse tipo de imperialismo informal, já que facilita a tutela dos EUA e sua intervenção na América Latina.
A “pentagonização” da América Latina se concretiza com o estabelecimento de redes de forças de segurança e de defesa latino-americanas que reproduzem em seus países de origem a doutrina de segurança estadunidense, o treinamento lá recebido e o apoio financeiro e técnico da potência imperial que mantém hegemonia na região. Nesse sentido, a aplicação da política externa estadunidense passa a ser terceirizada para os países “parceiros” que atuam como partícipes em sua manutenção hegemônica.
O resultado para os EUA não poderia ser melhor. Com um custo médio de treinamento de um latino-americano muito inferior em relação a um estadunidense, a manutenção hegemônica é mais barata e nem por isso menos consistente. As forças armadas e de segurança que passam pelo treinamento no WHINSEC não apenas tendem a reproduzir interesses próprios da política externa estadunidense em seus países de origem, como ainda recebem postos mais gratificantes e honrarias, em uma verdadeira celebração da própria subjugação. No Brasil, o Ministério da Defesa comemorou, em 2018, a escolha de um brasileiro como “educador do ano” no WHINSEC. Recentemente, foi comemorada a conclusão do curso Joint Operations Course (JOC) com menção honrosa no WHINSEC. Na página institucional da DefesaNet, lia-se: “As principais atividades realizadas no JOC são análises de casos reais, de acordo com a doutrina norte-americana”.
Para além da reprodução da doutrina de segurança estadunidense por latino-americanos treinados para esse fim, a classe dominante estadunidense ainda se beneficia em seu “quintal”, ao lucrar com esse tipo de terceirização da política externa. Para um dos fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), general Robert Wood, a assistência militar é programa de política externa dos EUA,
[…] com cuja verba são feitas compras para a indústria norte-americana, para as forças dos países estrangeiros que, contando com vontade e material humano, carecem de meios de defesa. É um programa que traz para o nosso país entre 10 e 15 mil estudantes militares estrangeiros anualmente, expondo-os não somente ao conhecimento militar norte-americano, como também ao modo de vida norte-americano. É um braço da política externa dos EUA. Defende, predominantemente, nosso interesse nacional.
Para quem acredita que, com o fim da Guerra Fria, os EUA passaram a desenvolver uma política externa menos intervencionista na região da América Latina, instituições como o WHINSEC se encarregam de evidenciar o contrário. Assim como os colombianos acusados de assassinar o presidente do Haiti foram treinados e, posteriormente, terceirizados, os EUA vêm ampliando sua atuação hegemônica na região e reproduzindo os interesses econômicos de sua classe dominante a partir de instituições educacionais. Este é o caso do WHINSEC, que terceiriza para os latino-americanos a implementação dessa mesma política externa em seus países de origem. Que melhor ferramenta de dominação que a ideia de que o dominado é livre?
* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Faz parte do INCT-INEU, IMDH e GEPPIC. Contato: camilafeixvidal@gmail.com. Luciana Wietchikoski é pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Faz parte do GEPPIC. Contato: wietch.luciana@yahoo.com.br.
** Recebido em 2 ago. 2021. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Flipboard, Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.