G20 Clima: mais um capítulo na trajetória dos EUA até a Conferência de Glasgow
ONG Save Mount Diablo e estudantes fazem ato aos pés do monte homônimo em apoio às greves climáticas, ou Semana Global do Futuro (Crédito: Sean D. Johnson)
Por Pedro Vasques*
Como anteriormente mencionado, os primeiros dias do mandato presidencial de Joe Biden foram marcados por uma significativa ênfase em questões de natureza ambiental. Tais ações e propostas iniciais não apenas reiteravam os compromissos assumidos em campanha, explicitando uma evidente ruptura em relação ao governo Donald Trump, como também chegaram a aumentar as expectativas dos mais otimistas. Nesse contexto, Biden e John Kerry, o enviado especial da Casa Branca para assuntos envolvendo questões climáticas, realizaram no dia 22 de abril, o Dia da Terra, um ambicioso evento que contou com a participação de inúmeros líderes mundiais – incluindo aquelas nações responsáveis por quase a totalidade das emissões de carbono. O evento foi caracterizado como uma espécie de primeiro encontro preparatório para a Conferência do Clima da ONU a ser realizada em Glasgow, no Reino Unido, em novembro de 2021. Apesar de suas ambições, não rendeu grandes novos compromissos.
Na Cúpula do Clima de Biden, verificou-se a manutenção de comportamentos rotineiros entre os participantes nas negociações climáticas. Em linhas gerais, pode-se identificar uma polarização que opõe grandes economias, responsáveis pela maior parte das emissões, e países periféricos. Mais afetados pelos efeitos das mudanças climáticas, estes últimos dispõem de menos recursos para lidar com seus impactos. Em tal cenário, fica evidente que os efeitos negativos sofridos por inúmeros países pobres orbitam as disputas entre grandes potências, bem como suas estratégias para lidar com os diversos temas. Tal situação coloca potenciais dissidentes, como a atual posição brasileira, em uma desvantagem ainda maior para captar apoios no plano internacional.
Uma meta aquém das expectativas
Observando especificamente o posicionamento adotado pelos Estados Unidos no referido evento, é possível destacar a nova meta climática anunciada por Biden, que quase dobra aquela apresentada por Barack Obama, em 2015. Isto é, uma redução de pelo menos 50% das emissões registradas em relação a 2005 até o ano de 2030. Interessante observar que, a despeito da boa receptividade à iniciativa do presidente democrata no plano internacional, naquele momento, tal proposta viria a servir para balizar as altas expectativas alimentadas no curso da campanha eleitoral. Como demonstrado pelo Climate Action Tracker, a nova meta seria insuficiente para atingir o limite de variação de temperatura em 1,5ºC explicitado no Acordo de Paris – o que demandaria dos Estados Unidos, para que fosse atingido, uma redução de 57%-63% em relação a 2005. Ou seja, apesar de a postura adotada por Biden significar uma ruptura em relação a seu antecessor, no que se refere à comunidade internacional, o novo compromisso dos Estados Unidos ficou abaixo daquilo que os demais atores esperavam.
De todo modo, em linhas gerais, o evento foi capaz de produzir novidades junto aos participantes, como no caso de Reino Unido, União Europeia, Canadá e Japão, que apresentaram novas e mais robustas metas. Outro conjunto, contudo, limitou-se a reiterar os compromissos apresentados no passado, notadamente, no âmbito do Acordo de Paris. Esta foi a posição adotada por Índia, China, Rússia, Austrália e Turquia – para nos restringirmos àqueles integrantes do G20. Por fim, um terceiro grupo de países anunciou propostas que implicam, na prática, a flexibilização das metas anteriores, na contramão do que era esperado para o evento, como se verificou, por exemplo, com México e Brasil.
A ambiguidade dos EUA
Após um esfriamento da cobertura pública sobre o debate climático envolvendo os grandes países emissores, e três meses após a Cúpula do Clima de Biden, o G20 realizou nos dias 22 e 23 de julho, em Nápoles, na Itália, um encontro específico para tratar de clima, meio ambiente e energia. Mais uma etapa preparatória para Glasgow, o evento ocorreu em meio à temporada de grandes incêndios nos Estados Unidos e a intensas chuvas e enchentes na Europa e na Ásia. Importante ressaltar que, dois dias antes da reunião do G20, John Kerry fez um discurso de cerca de uma hora sobre o assunto nos jardins botânicos reais em Kew, Londres. Em sua fala, o enviado especial da Casa Branca relacionou a pandemia da covid-19 às mudanças climáticas, indicando a necessidade de uma ação urgente para a sobrevivência dos seres humanos.
Há uma reiterada tentativa de aproximar a crise do clima de uma espécie de esforço coletivo experimentado para reverter as guerras mundiais – o conflito bélico e a dimensão econômica da crise são eixos centrais em sua argumentação. Nesse contexto, Kerry fez uma defesa da ordem internacional do Pós-Guerra, por considera-lá a chave para enfrentar a tarefa de redução das emissões de carbono por parte dos diversos países. Em adição, seu discurso deixou claros os limites evidentes do Acordo de Paris e insistiu na necessidade de se seguir as orientações do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) sobre a urgência de limitarmos o aumento de temperatura a 1,5ºC.
Rajendra Pachauri, presidente do IPCC, no encontro de Copenhage, em 2014 (Crédito: IPCC)
A proposta de adesão intransigente a tal meta é acompanhada de um discurso apocalíptico e da explícita negação do alarmismo logo em seguida. Se, por um lado, a detalhada descrição da catástrofe é uma marca do discurso, essa se dá, por outro, acompanhada de repetidas menções à crença na ciência, em suas previsões e na necessidade de se orientar as ações com base em números fornecidos por especialistas. Assim, para atingir as metas do IPCC, seria necessário reduzir 45% das emissões globais até 2030, a fim de que, até 2050, seja possível cumprir a promessa de zerar as emissões líquidas.
Kerry sustentou ainda que, faltando 100 dias para Glasgow e passados seis meses de início do governo Biden – e, nesse sentido, da volta do país ao Acordo de Paris –, os Estados Unidos retornariam às negociações climáticas com “humildade”, mas também com “ambição”. Para sustentar tal afirmação, reforçou os compromissos apresentados por Washington ao longo dos primeiros meses da administração Biden. Curioso notar que, após a avaliação inicial do Climate Action Tracker, explicitando que tais medidas seriam insuficientes e ante as novas declarações de Kerry e as significativas diferenças em relação às propostas de Trump, o consórcio de instituições científicas sem fins lucrativos se propôs a revisar sua avaliação sobre a política do presidente democrata para verificar com mais cautela seus impactos sobre o montante total de emissões dos EUA.
Kerry deixa claro, no entanto, que vem envidando esforços junto a vários países para conseguir que, até Glasgow, seja possível firmar um acordo mais ambicioso e que inclua as principais economias do planeta. Para tanto, menciona os avanços já conquistados junto ao Canadá, Japão, Reino Unido, União Europeia, bem como conversas estabelecidas com a Rússia e parcerias para investimentos em energias renováveis na Índia. De qualquer forma, a ênfase na necessidade de diálogo e de integração com a China se sobressai no discurso. E isso é explicitado tanto pela lembrança de que o país, com 28% de participação global, é o líder em emissões, quanto pelo alerta de que as metas chinesas, apesar de terem sido alcançadas, são insuficientes para alcançar o limite de 1,5ºC proposto pelo IPCC. Nesse contexto, Kerry indica que, para além dos encontros multilaterais, intensa comunicação e inúmeras reuniões bilaterais entre Estados Unidos e China estão sendo conduzidas, explicitando evidente esforço voltado à viabilização de novas pactuações.
Divergências expostas na reunião do G20
A fala de Kerry parecia antever que o encontro do G20 seria somente mais um na intensa, porém curta, jornada até novembro. Apesar do esforço do ministro da Transição Ecológica da Itália, Roberto Cingolani, as convergências entre os participantes esbarraram em dois pontos cruciais: a eliminação da energia a carvão e a adesão ao limite de 1,5ºC de variação na temperatura do planeta. É preciso lembrar que, no Acordo de Paris, o limite fixado era de 2ºC e, idealmente, 1,5ºC até o final do século. No evento em Nápoles, apenas parte dos países se mostrou interessada em se comprometer com a nova meta, ainda que todos tenham reiterado sua concordância em cumprir o estabelecido em Paris.
O enviado especial dos EUA para o Clima, John Kerry, e o ministro italiano da Transição Ecológica, Roberto Cingolani, no Palazzo Reale, para a reunião do G20 sobre Clima e Energia, em Nápoles, em 23 jul. 2021 (Crédito: AFP-JIJI)
Cingolani declarou à imprensa que as negociações foram particularmente difíceis com China, Índia e Rússia, destacando que os dois primeiros se recusaram a aderir a ambos os pontos acima destacados. A dificuldade de conquistar a adesão dos referidos países às novas metas nos últimos encontros públicos, em especial, no tocante à China, ameaça avanços significativos em Glasgow. Ainda assim, John Kerry mantém uma postura pública otimista, lastreada pelo sucesso de sua liderança nas negociações com o governo chinês, em 2013-14, durante o governo Obama.
De todo modo, mantendo uma postura de não negligenciar os pequenos avanços, o anfitrião italiano minimizou as mencionadas divergências e ressaltou o comunicado aprovado pelas lideranças do G20 como produto da reunião sobre meio ambiente, clima e energia. O texto tratou de três grandes áreas. Uma, ligada à biodiversidade, envolvendo a proteção do “capital natural”, a restauração dos ecossistemas a partir de soluções baseadas na natureza, a defesa e a restauração do solo, a proteção dos recursos hídricos, inclusive com a prevenção e redução de descarte de plásticos no mar. Outra, conectada ao uso eficiente de recursos e à economia circular, com foco no setor têxtil, em cidades circulares, educação e treinamento, bem como reconhecendo, pela primeira vez, os resultados de estudos científicos que relacionam biodiversidade e mudança do clima. E, por fim, uma área vinculada às finanças sustentáveis, concentrada na necessidade de se financiar projetos de proteção e de restauração dos ecossistemas como uma contribuição do G20 para a configuração futura do sistema financeiro global.
O desfecho pouco animador do encontro na Itália não significou o fim das negociações. Nos dias 25 e 26 de julho, um novo evento no Reino Unido reuniu representantes de 51 países com o objetivo realizar uma nova rodada de debates, e outras inúmeras conversas preparatórias ocorrerão até a Conferência das Partes, em Glasgow. Assim como suas antecessoras, as próximas reuniões a serem realizadas até novembro tendem a continuar oferecendo muitas incertezas e consensos limitados. Isso não quer dizer que a COP-26 esteja fadada ao fracasso, ou que um acordo mais ambicioso seja impossível. Afinal, tal como no passado, o cronograma de negociações entre Estados Unidos e China envolvendo questões climáticas não costuma respeitar a agenda da Conferência das Partes da ONU.
* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Cenntro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
** Recebido em 26 jul. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.