Em busca da sintonia perdida: EUA e Alemanha no pós-Trump
Em Berlim, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, e o ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maas, conversam sobre diplomacia e relações exteriores entre uma cerveja e outra (Crédito: Andrew Harnik, pool)
Por Solange Reis*
Em viagem à Europa no final de junho, a segunda em sete dias, o secretário de Estado Antony Blinken declarou que a Alemanha é a maior parceira e amiga dos Estados Unidos. A frase pode soar como uma cortesia diplomática corriqueira —ainda que passível de causar inveja a outros melhores amigos como Israel e Reino Unido—, mas sublinha intenções políticas bem definidas.
Com a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), a Alemanha se tornou o principal aliado dos Estados Unidos no bloco comunitário. O problema para a equipe do presidente Joe Biden é que o governo anterior deixou um rastro de deterioração na relação bilateral. Com medidas tarifárias, ataques verbais e ameaças de rompimento no pacto de defesa mútua, o ex-presidente Donald Trump abriu fissuras problemáticas em uma parceria construída desde 1945.
Apesar de ter sido ele a romper um padrão, o republicano não foi o único responsável pelo estrago. Novas revelações de que agências de Inteligência americanas espionaram lideranças alemãs nos anos de Barack Obama aumentaram a desconfiança em Berlim. Soma-se a isso o desgaste pelas repetidas investidas dos Estados Unidos contra o gasoduto Nord Stream 2, do qual o governo alemão não abre mão.
Como previsibilidade e confiança são vitais para as relações transatlânticas, a ofensiva diplomática de Blinken pretende mais do que dourar a pílula. Trata-se de remediar um elo essencial da estratégia internacional para recuperar a legitimidade dos Estados Unidos como potência hegemônica. A Alemanha tem influência não apenas na UE, mas junto a países cujo relacionamento com os Estados Unidos costumam ir de mal a pior. É o caso de Rússia, Turquia e, cada vez mais, China.
A recepção ao secretário de Estado e às suas adulações foram boas, mas o governo alemão se mostrou menos afetuoso. Heiko Maas, ministro das Relações Exteriores, disse que agora “é mais divertido” (do que com o governo Trump). Já a chanceler Angela Merkel valorizou o retorno dos Estados Unidos ao multilateralismo, mas chamou atenção para a necessidade de manter os canais abertos e o trabalho conjunto para resolver desafios geopolíticos.
Os dois países têm semelhanças econômicas, culturais, políticas e religiosas, assim como uma perspectiva ocidental do mundo, mas a importância da China para a Alemanha pautará, tanto de forma positiva quanto negativa, a relação bilateral daqui por diante.
Convergências
A viagem de Blinken também incluiu França, Itália e Vaticano. Da agenda em território alemão, constavam discussões sobre a situação na Líbia, e o combate ao antissemitismo e à negação do Holocausto nos dois lados do Atlântico. Por questões familiares, bem como políticas, o tema é relevante para o secretário de Estado.
A Alemanha sediou a segunda rodada de discussões para a paz na Líbia, com o objetivo de negociar a estabilidade para as eleições de dezembro no país africano. Maas alertou para a urgência da saída de forças estrangeiras da Líbia para que a paz se concretize e a imigração irregular para a Europa cesse. Como a questão imigratória é usada pela extrema direita alemã para fomentar o radicalismo doméstico, o governo alemão tem pressa nessa solução.
O problema líbio é outro que não se pode atribuir exclusivamente a Trump, já que foram as ações do governo Obama, em 2011, que contribuíram para a guerra civil e o atual vácuo de poder. O desafio agora é fazer com que os Estados Unidos, que se ausentaram da situação nos últimos quatros anos, envolvam-se positivamente para convencer outros países a retirarem soldados do território líbio.
Outros pontos convergentes entre Berlim e Washington giram em torno de agenda climática, democracia e direitos humanos. Em relação ao gasoduto Nord Stream, apesar de ter sido o ponto mais sensível por muito tempo, Biden soube transformar um passivo em ativo. Com a obra praticamente concluída, o presidente não tinha muita alternativa. E o governo americano atual sabe o quanto o gasoduto é vital para a transição energética verde da Alemanha. Mais do que um plano, a chamada Energiewende é uma exigência legal que tem prazos e metas.
Ao suspender qualquer sanção relacionada à obra, o democrata reconquistou a simpatia alemã. Mas a flexão americana requer uma contrapartida da Alemanha sob a forma de aliança contra a China. Uma demanda difícil de atender plenamente para qualquer país, particularmente para a Alemanha. A China já se tornou seu segundo parceiro comercial, ligeiramente atrás dos Estados Unidos. Investimentos bilaterais também cresceram muito e, após sete anos de negociações, a China e a União Europeia concluíram um acordo de investimentos que contou com forte apoio alemão. A ratificação do acordo está atualmente paralisada no Parlamento Europeu, que a vincula à melhora em direitos humanos na China.
De qualquer forma, a Alemanha terá que fazer alguns gestos de cooperação com os Estados Unidos. Para isso, parece ter escolhido uma área delicada, mas que desagrada menos à sua classe empresarial. Neste ano, deverá enviar uma pequena fragata à região do Indo-Pacífico, onde Estados Unidos e China travam uma disputa velada pelo controle. O gesto é simbólico, mas significa um primeiro passo no cumprimento das Diretrizes Políticas para o Indo-Pacífico. Lançado pelo governo alemão em setembro do ano passado, o documento ressalta a importância do envolvimento alemão com os temas econômicos e de segurança regionais. Entre as diversas iniciativas previstas, está a cooperação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para desenvolvimento de parcerias com os países da região.
Apoiar os Estados Unidos nessa questão ajuda a manter os americanos favoráveis à OTAN. Trump foi o primeiro a falar abertamente na obsolescência da aliança, mas seus antecessores já pressionavam os europeus a contribuírem com mais verbas e recursos materiais e humanos. Todos os membros da aliança se comprometeram, de forma não vinculante, a gastar até 2% do PIB com defesa militar. Poucos, inclusive a Alemanha, cumprem o prometido. Em 2021, o governo alemão alocou um recorde de 53 bilhões de euros para gastos militares, valor ainda aquém do combinado.
Embora Biden tenha reafirmado o compromisso com a OTAN, fato que tem apoio do Legislativo em Washington, há pontas a aparar. Ou, no caso da Alemanha, pratos a equilibrar. O antigo desejo dos Estados Unidos, de expandir a atuação da aliança para incluir os países da área de influência geopolítica russa, como Ucrânia e Geórgia, nunca teve o aval alemão. E dificilmente terá, enquanto a Rússia também for uma amiga prezada pela Alemanha.
Divergências
Uma das principais diferenças envolve o futuro do Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA, na sigla em inglês), que regula o programa nuclear iraniano sob supervisão de países estrangeiros. Assinado por Obama e rompido unilateralmente por Trump, o acordo multilateral passa agora por novas discussões para a reincorporação dos Estados Unidos e a volta à conformidade por parte do Irã. Após a reaplicação de sanções indevidas pela Casa Branca, o governo iraniano retomou algumas atividades nucleares vetadas pelo acordo.
O governo alemão defendeu enfaticamente a manutenção do JCPOA, e sua atuação para criar o INSTEX, sistema alternativo de pagamentos, foi fundamental na preservação do comércio entre Irã e a União Europeia. Com a saída de Trump, a Alemanha passou a adotar um tom mais crítico em relação ao Irã. Mesmo assim, continua oposta à manutenção das sanções, tanto as financeiras quanto às que afetam diretamente o comércio de petróleo. Ainda mais em tempos de aumento no preço do barril. Outra divergência é quanto à insistência dos Estados Unidos em incluir nas discussões para retomada do acordo, com novas cláusulas, alguns limites à estratégia militar iraniana no Oriente Médio.
Existem divergências comerciais entre Estados Unidos e Alemanha, sobretudo, em relação ao superávit alemão na balança comercial. Mas, por ora, essas diferenças ficam para depois. Para Biden, existem dois pontos interligados em política externa econômica. O primeiro é desenvolver uma estratégia de comércio internacional que resulte em empregos em casa. É a chamada política externa para a classe média. O segundo é juntar forças externas para combater o que considera práticas injustas de comércio pela China, como subsídios, e as vantagens de empresas chinesas em algumas áreas.
A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente chinês, Xi Jinping (Crédito: EPA-EFE/Michael Kappeler/Pool)
Como a soma de comércio e investimentos transatlânticos equivale a 40% do volume global, qualquer abalo nesse circuito impacta o faturamento das empresas e os empregos em cada lado. A União Europeia, para a qual a Alemanha desempenha um papel central em termos de política econômica e financeira, é fundamental para os objetivos de Biden. Para obter mais alinhamento da UE e da Alemanha, em seu plano de desacoplamento da China, Biden tenta diminuir as tensões comerciais transatlânticas.
Em junho, os dois lados concordaram em suspender por cinco anos as tarifas retaliatórias que envolvem os fabricantes de avião, Airbus e Boeing. A disputa comercial entre eles já dura 17 anos. As tarifas sobre aço e alumínio, que foram herdadas do período Trump, continuam vigentes, embora a UE tenha suspendido a rodada prevista para junho. Essa é uma questão que afeta diretamente a Alemanha, cuja indústria siderúrgica é uma das maiores do mundo.
Os aliados transatlânticos ainda precisam resolver outras questões, como os impostos que os europeus pretendem aplicar sobre as empresas gigantes do mercado de tecnologia e comunicação digital. A maioria delas é americana, como Apple, Amazon, Microsoft, Facebook. Um passo que ajuda nesse sentido foi o recente estabelecimento de uma tributação mínima global de 15% para as multinacionais.
Despedida de Merkel
Merkel confirmou sua visita oficial aos Estados Unidos, em 10 de julho, no que deverá ser a última ida ao país como líder alemã. A chanceler governou a Alemanha por 16 anos e, antes disso, foi titular de ministérios e integrante do governo Helmut Kohl. Antes de sair da cena política, em setembro próximo, Merkel tem a missão de melhorar as relações com a Casa Branca. O candidato mais provável a suceder-lhe, Armin Laschet, é um pragmático que defende a melhora das relações ocidentais com Rússia e China.
Existe uma percepção por parte da população alemã, assim como de muitos políticos, de que os Estados Unidos não são mais confiáveis. Uma pesquisa recente indicou que, ao contrário dos americanos, a maioria dos alemães considera a relação bilateral ruim. A eleição de Biden foi bem-vinda, mas não apagou os temores legados por Trump. É sobretudo a fissura na democracia, mais bem exemplificada pela invasão do Capitólio por seguidores radicais do republicano, dias antes da posse do democrata, que impede o retorno ao padrão anterior. Muita gente na Alemanha está convencida de que os Estados Unidos já não são mais uma nação excepcional.
Biden anunciou que, com a sua eleição, os Estados Unidos retornaram à cena internacional. De volta, sim, mas para um futuro sem Merkel e com uma Alemanha cada vez mais atraída pelos ganhos advindos do Oriente.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.
** Recebido em 5 de julho de 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
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