O excepcionalismo norte-americano
Bandeira dos EUA em frente a uma casa em Fremont, Califórnia (Crédito: Justin Sullivan/Getty Images)
Comentários críticos sobre a nova ideologia do Partido Democrata dos EUA
Por Tadeu Valadares*
Heather Cox Richardson é uma historiadora que mantém uma newsletter muito interessante, com análises cotidianas do que, a seu ver, marca em termos políticos, ideológicos e econômicos os EUA e sua interação com o “resto do mundo”. A meu ver, em meio à crise em que estão submergidos os americanos, a historiadora se situa, em termos de afinidades eletivas, num alinhamento claro, muitas vezes explícito, com a visão de mundo dos integrantes do “centro” do Partido Democrata, ela e eles inteiramente convencidos do poder quase divino dos mitos fundadores dos EUA, que imaginariamente mapeiam o “excepcionalismo americano” ameaçado.
Suas Letters from an American podem ser lidas como textos de combate, inteligentemente elaborados, em que o recurso reiterado aos mitos fundadores na prática serve a dois propósitos. Por um lado, para criticar a visão de mundo do Partido Republicano, a monstruosidade que se afirmou desde o encerramento, ainda no século 19, dos efeitos libertários decorrentes da vitória do Norte na Guerra de Secessão. Ácida ironia da história, o partido de Lincoln se transmutou em organização política extremista, na qual predominam os escravocratas contemporâneos.
Por outro lado, na permanente crítica aos republicanos, Richardson desenha dinâmica histórica que beira o idílico, uma visão idealizada da trajetória dos EUA como farol da liberdade revolucionária conquistada para benefício dos americanos e da humanidade, quase uma teodiceia. O estado nascido da obra-prima dos Pais Fundadores seria, ao ver da historiadora, reafirmado geração após geração contra suas falsificações todas, particularmente encarnadas no século XIX pelo Sul escravista e, hoje, pelos republicanos traidores de Lincoln.
Esses são os que se opõem ao livre desenvolvimento da forma de sociedade revolucionária proposta pelos Pais Fundadores da república – que ela haja sido escravista em nada desmerece a obra dos autores da Declaração de Independência… –; esses são os que dividem a população em segmentos hierarquizados de classe, grupos étnicos e de tantos outros setores minoritários. Esses são os que se opõem ao feminismo libertador.
Diante desse risco de degenerada regressão institucional, Heather Cox Richardson invoca o valor maior, o cimento que tudo une, “e pluribus unum”, a união sagrada dos diferentes, desiguais e opostos. Alguns deles incorporados ao jogo político de uma democracia à Tocqueville, alguns outros progressivamente alcançando o direito ao “voto universal”, enquanto que outros, até a década de 1960 do século passado, vivendo a negação desse mesmo direito, hoje claramente em perigo dadas as manobras republicanas que buscam cercear ao máximo o comparecimento às urnas dos setores populares.
A leitura crítica das Letters from an American como sintomas da grande crise que os EUA vivem hoje permite iluminar um deslocamento do eixo da “Nova Jerusalém”. Ainda que involuntariamente, as cartas apontam para outro período longo de crise geral dos EUA, vigente desde ao menos a “revolução reaganiana”. Em outros termos, a história dos desastres que foram vistos como progresso infinito da república imperial cobra sua amarga fatura. Estado, sociedade, populações e, em alguns casos, até mesmo territórios, cada um de determinada forma, cada um formando parte do processo maior, todos eles submetidos mais e mais aos conflitos que, em última instância, são de classe.
Todos operando no imediato, todos ameaçando fusões explosivas, todos inscritos no dia a dia tenso de uma sociedade cada vez mais antagônica. A grande ameaça para os grandes interesses estabelecidos surge das cada vez mais frequentes mini-explosões, sintomas de algo maior a se gestar, sinais da dilaceração insuperável do corpo místico da república imperial. Tragédia in fieri no plano interno, ao que tudo indica irremediável.
No plano externo, sei que estou simplificando ao máximo, perfila-se outra ameaça galopante, que ganha força em meio às agruras desencadeadas pela crise planetária do neoliberalismo: o surgir de um hegemon potencial, nem tão novo assim… A volta por cima do Império do Meio, após toda a poeira sacudida desde a criação da república liderada por Sun Yat Sen até a conclusão do ciclo revolucionário com o enterro do maoísmo e a conformação da atual esfinge chinesa, processo inarredável, a apontar para outra dimensão de uma persistente decadência americana.
A configuração dessa dinâmica complexa, interno-externa, manifesta-se tendencialmente catastrófica. Não é fenômeno recente, sabemos todos, apesar do alarido que tudo debita a Trump. O que na essência é polarização interna – refletida na superfície fenomênica pela tentativa de superar, via entendimentos pelo alto, o dualismo que opõe um “nós mítico”, o democrata, a um eles mistificado, o republicano –, constitui a centralidade do momento atual do ciclo que é ruína, e que já se estende por ao menos 50 anos da história contemporânea dos EUA. Na dimensão externa, frustrados os sonhos do fim da história, sobrou o pesadelo da realidade sem fim. A ascensão chinesa mais recente, iniciada por Deng Xiaoping, ela também remonta aos anos 70 do século passado.
O progresso aparente que é tempestade real se perfila desde no mínimo o último terço do século passado. Nesse tempo que já se conta em décadas, o movimento regressivo, crítico de um idealizado New Deal, tem em Reagan e demais presidentes republicanos, incluído Trump como sua expressão até agora máxima, os grandes destaques. Mas como toda moeda apresenta duas faces e uma dialética particular, cabe não esquecer nessa derrota o papel estratégico desempenhado por Clinton com sua desastrada elaboração da “estratégia sulista”, nem o de Obama com suas ambiguidades internas e com o uso sistemático e impiedoso da força militar no Oriente Médio, mais sua “reviravolta asiática”, essencialmente um cerco à China. Atores coadjuvantes na tragédia, os democratas? Não. Atores igualmente principais. Nessa peça só há estrelas, nenhuma exceção à regra estelar dos que exercem o poder do Estado imperial como o mais frio dos monstros frios.
Diante desse quadro cuja profundidade estrutural deve ser obviamente negada, Biden tenta ressuscitar a versão partidariamente democrata do mito que tanto democratas quanto republicanos, dele cada lado se apropriando com intenções opostas, defendem com paixão. A sigla de momento escolhida pelo governo democrata para mobilizar a opinião pública “esclarecida” e para aliar no legislativo os democratas e os independentes é a de ‘reality show brasileiro’, BBB. Build Back Better.
No plano externo, ao menos de momento, a estratégia do “estamos de volta” se reduz a acelerado reaquecimento das águas da Guerra Fria, esforço de diplomacia à beira do abismo que dificilmente terá o condão de relançar a confiança dos atlantistas na aliança fragilizada por Trump. Espetáculo de curto prazo, esse proclamado estar de volta? Não se sabe. A prudência sugere aguardarmos para ver se desse esforço de reelaboração de um velho-novo (novo?) discurso voltado para a OTAN, algo dotado de efetivo poder de convencimento, sobreviverá. Vale dizer, a questão é sobreviver não apenas como retórica mobilizadora enquanto 2025 não chega. Melhor então aguardar, sem pressa agoureira nem celebração ingênua, na crença de que a razão é sóbria, pelos resultados das eleições intermediárias do ano que vem.
‘America is back’, diz Biden (Crédito: Reuters/SBS)
Até agora, o “estamos de volta” se limita a discurso bipolar (honnit soit qui mal y pense), exercício que, apesar de sua debilidade no plano retórico e de suas incongruências no plano prático, decerto desencadeará novas tensões no relacionamento dos EUA e da OTAN com a Rússia e a China. Suas consequências, ainda nebulosas em termos de realtà effettuale, se estenderão no tempo-espaço, tanto no espaço europeu quanto no asiático, quanto no tempo geracional que articula o de curta, o de média e o de longa duração.
Dada a vontade manifesta do destino manifesto, a húbris de recuperar poder hegemônico que baseia o discurso “bideniano” em matéria de política externa, e levado em conta esse exercício de retórica que chega a ser perigosamente beligerante, algo decorre de imediato: o fortalecimento de tendências perigosas, uma vez que a visão de Biden confirma as preocupações geoestratégicas e geoeconômicas da China e da Rússia no referente à instabilidade aumentada no seu círculo imediato de projeção geopolítica e em outras esferas que vão muito mais além.
Arriscado lançar-se numa cruzada de recriação do mundo quando o planeta continua imerso em crise que já dura bem mais do que vinte anos, advertiria E. H. Carr. Em especial se a pedra de toque para voltar atrás a mola gasta do relógio da história – fazer melhor o que já foi feito pelos pais simbólicos, Roosevelt muito especialmente – é vista com binóculos cujas lentes estão embaçadas pela paupérrima poeira da bipolaridade democracia x autoritarismo.
Diante da dinâmica político-ideológica interna dos EUA, inscrita em polarização a ser cada vez mais acentuada nos próximos anos, e desafiado pelas tensões, conflitos, guerras localizadas, disputas pontuais e concorrências permanentes que estruturam a face conflitiva do sistema internacional, tudo gerado em grande parte pelo esgotamento planetário do neoliberalismo, Biden aposta no que aparenta ser algo para lá de improvável: a capacidade de um certo neokeynesianismo BBB lastrear a prescrição global saneadora, ou seja, a capacidade de os EUA obterem a diluição quase completa, via “nova política econômica”, da crise que vem de 2007/2008, crise que se mantém e resulta turbinada, desde quase dois anos atrás, pela pandemia.
Caso sonho e realidade improvavelmente convirjam, caso a proposta geopolítica e geoeconômica de Biden vingue espetacularmente, ficará então em princípio assegurado o fortalecimento das democracias ontologicamente contrapostas aos autoritarismos todos, processo do qual redundaria, inter allia, a renovação do prazo de vigência do modo de produção capitalista à maneira do século 21, estrutura profunda criticamente debilitada pela ostensiva dominação do capital improdutivo e pelo saqueio dos recursos naturais.
Os do “establishment” que têm no Partido Democrata seu fiel representante no congresso pensam estar saindo, com Biden, o BBB e o “estamos de volta à liderança do mundo democrático”, de ambos os labirintos, o interno e o global, prisões às quais os EUA haveriam sido conduzidos por Trump, o ponto fora da linha. Não conseguem perceber que em cada um deles os aguardam minotauros diferentes. No interno, um processo sem volta que multiplica conflitos de intensidade baixa com outros de intensidade crescente, conflitos que diversificam suas formas aparentes, conflitos que hoje transpassam todas as arenas, da política à social, da cultural à ideológica, da étnica à de gênero, de etc. a etc.
A resultante do que está sendo condimentado nesse caldeirão algo shakespeariano poderá ser eleitoralmente contabilizada apenas no final de 2022, quando a frágil posição do partido democrata no congresso e nos âmbitos dos legislativos e executivos estaduais poderá vir a ser, inclusive, corroída. Na esfera do judiciário, a conta é claramente desfavorável a Biden.
Se olhamos para a esfera externa, nem tão externa assim, as antinomias todas geradas pela globalização encalacrada e pelas ações da OTAN e/ou dos EUA como gendarmes mundiais seguirão vigentes. Mutuamente destinadas a se reforçar, nisso multiplicando efeitos bumerangues para os EUA que buscam afastar, na medida de suas forças atuais, as ameaças à hegemonia em declínio. Não esquecer: no transcurso desse processo que começou bem antes e que seguirá vigente até muito depois de Biden haver deixado o poder executivo, o dia a dia das relações internacionais será marcado pelo mais importante desafio externo ao poder imperial-republicano desde a dissolução da URSS.
Se pensamos no registro do longo prazo, o embate a um só tempo negado e afirmado, a dança entre os polos que disputam a hegemonia, aquele processo, surdo ou escancarado, que às vezes evolui discretamente no fundo do palco, mas que em geral chega ao primeiro plano da cena nos acompanhará, e aos EUA: a ascensão de Pequim. Resistível? Irresistível?
Tempos ainda mais interessantes viveremos até 2025…
* Tadeu Valadares é embaixador aposentado.
** Artigo de Opinião publicado originalmente no site A terra é redonda, em 25 jun. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.