China e Rússia

China, ingerência russa e terrorismo: elementos da política externa nos 100 dias de Biden

Crédito da imagem: AP

Série Excepcionalismo Americano: discursos, símbolos e narrativas de uma nação

Por João Bernardo Quintanilha Chagas*

Em seu discurso de 28 de abril de 2021, em Sessão Conjunta do Congresso dos Estados Unidos, Joe Biden se propôs a delimitar o que ele já conquistou nesse curto espaço de tempo e a apresentar os planos para o restante de seu mandato. Muito se fala sobre os planos trilionários de auxílio às famílias, à educação, de infraestrutura, ou emprego, mas houve poucas análises sobre os interesses e as consequências dessas ações, no plano doméstico, para o posicionamento da política externa do governo Biden.

Ao longo de sua fala, Biden citou o nome de diversos países, porém mencionou apenas três figuras: Xi Jinping, Vladimir Putin e Osama Bin Laden. Esses nomes representam os temas mais importantes da política externa dos EUA atualmente: a contenção da China, a interferência russa na política estadunidense e o terrorismo internacional – temas centrais no discurso de Joe Biden, se tomarmos a política externa como recorte.

Este não foi um State of the Union, mas um discurso de 100 dias de governo, tradição que começou na gestão de Franklin Delano Roosevelt, não obrigatória, nem regulamentada pela Constituição. Essa prática foi adotada por Roosevelt para informar a sociedade estadunidense sobre os avanços de seu New Deal, um grande plano lançado para recuperar o país após a Crise de 1929. Com Biden, teremos dois elementos que ecoarão pelo resto do discurso: o reforço da gravidade da pandemia da covid-19 e um retorno a períodos importantes da história dos Estados Unidos. Assim, reproduzindo outro aspecto da longa tradição de pronunciamentos presidenciais, Biden permeia seu discurso com referências do passado para justificar seus planos de governo, remontando aos períodos da Guerra Civil Americana, da Grande Depressão e da Marcha para o Oeste.

Depois de comparações entre o governo atual e a administração de Donald Trump, ele reconhece a presença de duas mulheres em posições de poder na política americana – a presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi (D-CA), e a presidente do Senado, a vice-presidente Kamala Harris, ambas democratas –, com a simples, mas potente frase: “it’s about time” (“já era hora”).

Sunday Homily: The Hypocrisy of Reagan's “City on a Hill” – About Things That Matter

Crédito: Anthony Hawkins

Logo na sequência, falou sobre o estado do país quando tomou posse, descrevendo o quadro como “A pior crise econômica desde a Grande Depressão, e o pior ataque à nossa democracia desde a Guerra Civil”. Também comentou os esforços de seu governo, em pouco mais de três meses, direcionados para a contenção da pandemia do novo coronavírus, principalmente por meio da vacinação. Ainda neste primeiro momento, Biden aponta as mudanças, adotadas por seu governo na condução da política americana, para o retorno da América a seu posto de líder mundial nos acordos multilaterais e nas organizações internacionais. Mas, principalmente, o governo de Joe Biden quer marcar o retorno dos EUA ao posto de “The City upon a Hill”.

De que forma Biden propõe essa volta ao panorama internacional? Regressando ao Acordo de Paris, propondo sediar uma nova cúpula do Clima com as grandes potências mundiais e, em relação à pandemia, participar, ainda que tardiamente, da Diplomacia da Vacina. O presidente propõe que o país se torne um “Arsenal de vacinas para os outros países”, assim como foi o “Arsenal pela Democracia” durante a Segunda Guerra Mundial. Busca, dessa forma, diminuir a projeção de poder chinesa e russa sobre os demais países por meio da doação e da comercialização de doses da vacina. A quebra de patentes chegou a ser apoiada pelo presidente, dias depois do discurso, algo que não foi tão bem recebido por todos os países europeus, que atualmente contam com a maior concentração de patentes do mundo.

Disputa de narrativas

Após comentar sobre a pandemia, Biden se concentra no principal assunto, sob o meu ponto de vista, do discurso: política externa. O presidente coloca: “Nós estamos em competição com a China e outros países para vencer o século XXI. Estamos em um grande ponto de inflexão na História. Temos que fazer mais do que reconstruir, temos que reconstruir melhor”. É interessante o uso do verbo “vencer/ganhar” (“to win”, no original) nesse contexto. O que nos traz a pergunta: vencer no quê? Os Estados Unidos competem com a China em diversos aspectos: territorial, econômica e militarmente, entre outros. Mas a disputa mais importante que os EUA têm de vencer é, assim como Biden coloca, a da guerra de narrativas.

Além de ser uma ameaça econômica aos EUA, a China se coloca como uma nova perspectiva de país, uma nova narrativa de nação para aglutinar países ao seu redor. Algo que os EUA fizeram para construir sua identidade nacional e que foi posteriormente usado para difundir seus ideais ao redor do mundo. Toda construção nacional americana de um povo eleito, peregrinando em busca de uma terra, onde pudessem viver segundo seus ideais democráticos de liberdade e igualdade, faz parte dessa narrativa da nação, muito bem descrita no livro de Mary Anne Junqueira Estado Nacional e Narrativa da Nação (1776-1900).

A esse “excepcionalismo americano”, foram adicionados os ideais econômicos, como o capitalismo liberal, o livre-mercado e o livre-comércio. Um bom exemplo dessa narrativa americana foi a parte final do discurso, em que Biden pontua: “Em outra época, quando a nossa democracia foi testada, Franklin Delano Roosevelt nos relembrou que, na América, nós fazemos a nossa parte. Todos fazemos a nossa parte. Isso é tudo o que eu peço. Que nós façamos a nossa parte, todos nós. Se fizermos isso, conseguiremos enfrentar o desafio central da nossa época, provando que a democracia é forte e resiliente. Autocratas não vencerão o futuro. Nós venceremos. A América vencerá. O futuro pertence à América”.

A China exemplifica um novo modelo político-econômico no panorama mundial. Com um regime totalitário e economia fortemente regulada, ela propõe algo oposto ao American Way of Life. Essa proposta nova de nação vem-se mostrando extremamente estável e próspera há vários anos, enquanto as democracias ocidentais têm sofrido diversas crises políticas e seus sintomas, como a invasão do Capitólio e o Brexit, e econômicas. Esse novo modelo, que durante a pandemia foi extremamente eficaz, superou todas as expectativas sobre indicadores econômicos e humanos em 2020. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que o número de cidadãos americanos infectados e o de mortos pelo vírus cresciam assustadoramente, e os indicadores econômicos estadunidenses despencavam.

Flag flub could have been avoided, if Mao had been given his way at country's birth | South China Morning Post

Crédito da imagem: Reuters

É essa disputa pela narrativa que baseará os planos trilionários do governo Biden de desenvolvimento da economia e da sociedade americanas. Biden propõe esses planos em resposta à forte disputa geopolítica com a China, que vem, há vários anos, investindo em educação para seus cidadãos e enviando seus melhores alunos para universidades europeias e americanas. A fala mais emblemática sobre esse tema foi uma referência do presidente a uma frase da primeira-dama, Jill Biden, em que ela diz: “Joe, qualquer país que nos supere na educação será um grande competidor dos EUA”.

Para além do potencial impacto destes planos no âmbito doméstico, essa agenda mostra um esforço do presidente de recalibrar e manter a hegemonia americana, fortemente abalada depois do governo Trump. O principal objetivo desses planos é mostrar para o mundo que, assim como a China, os Estados Unidos ainda conseguem desenvolver novas tecnologias, novas fontes energéticas e, ponto de relevo, novos avanços na área da medicina. Biden quer mostrar que, da mesma forma que a China teve a primazia na criação de uma vacina contra a covid-19, os EUA têm capacidade tecnológica para resolver outra grande doença, o câncer. Por isso, é importante salientar a importância geopolítica e de política externa destes planos, para além de seu significado e impacto interno.

No decorrer do discurso, o presidente continua a pontuar sobre a política externa dos EUA em relação à China, reiterando que irá defender os interesses americanos com uma maior aproximação com os países indo-asiáticos. Esse estreitamento de laços com esses países será para, assim como ele coloca em seu discurso, prevenir o conflito, não para gerá-lo. Biden explicitamente se posicionou contra violações de direitos humanos e contra “práticas ilícitas” no comércio internacional, afirmou que não vai tolerar tais violações e que vai garantir que todos os países sigam as mesmas regras de comércio, pois “um presidente americano tem de representar a essência daquilo que nosso país defende”.

Rússia e terrorismo na pauta

Logo após essa temática, Biden se debruça sobre outros tópicos relevantes na política internacional, como a relação Rússia/EUA e terrorismo. O presidente americano voltou a falar das relações com a Rússia, depois do breve pronunciamento de 15 de abril. Nesse pronunciamento, ele havia abordado a interferência russa nas eleições estadunidenses e que, devido à confirmação do ato por parte da comunidade de Inteligência, tomou medidas “à altura’”, com a expulsão de diversos oficiais e diplomatas russos do solo nacional e um novo pacote de sanções direcionadas à Federação Russa. Pouco tempo depois, o presidente Vladimir Putin expulsou oficiais estadunidenses. Em seu discurso anual na Duma (Parlamento russo), em 21 de abril, Putin falou que gostaria de manter um bom relacionamento com potências o cidentais, porém, se confundirem o posicionamento russo com “desinteresse”, ou com “falta de poder”, e agirem para “quebrar laços ou pontes”, a resposta russa será “assimétrica e severa”. Em seu discurso dos 100 dias, Biden respondeu que não deseja um conflito com a Rússia, nem que as tensões escalem, mas afirma: “As ações russas terão consequências”.

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100 dias de governo foram marcados por tensões entre Biden e Putin (à dir.)

Antes de entrar no assunto terrorismo e abordar a retirada das tropas do Afeganistão, Biden falou brevemente sobre os projetos nucleares da Coreia do Norte e do Irã, ameaças à segurança dos EUA, e avisou: “Nós trabalharemos junto aos nossos aliados para lidar com as ameaças postas por ambos os países por meio da diplomacia, assim como forte dissuasão”.

A pergunta que fica é: essa política de contenção da China e da Rússia, por parte do governo Biden, vai funcionar? Bom, segundo Matthew Kroening e Emma Ashford, as sanções são uma resposta insuficiente para resolver a interferência russa nos Estados Unidos. Matthew ressalta que os EUA precisam de uma resposta mais incisiva sobre o assunto. Já o ex-secretário de Estado Henry Kissinger apoia uma política de reaproximação com a China, após o desgaste nas relações bilaterais causado pelas políticas do governo Trump. Essa retomada nas relações seria para diminuir o risco de um conflito direto entre as potências. A dúvida é: de quem os Estados Unidos devem se aproximar? Enfim, as tensões e as tentativas de contenção americana das outras duas potências ainda estarão no palco do panorama internacional por bastante tempo. É cedo para dizer quem vencerá o século XXI.

O terrorismo volta à pauta da política externa americana, devido ao ressurgimento das tensões envolvendo a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão. No governo Trump, houve um acordo com os talibãs, segundo o qual os soldados americanos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) seriam retirados, completamente, do solo afegão até 1º de maio de 2021. Em troca, os talibãs encerrariam os conflitos e aceitariam o governo provisório do Afeganistão. No discurso ao Congresso, Biden se comprometeu com a retirada das tropas, que já começaram a ser evacuadas. Este processo terá fim, segundo Biden, em um novo prazo: até a simbólica data de 11 de setembro de 2021. A mudança fez os talibãs aumentarem a pressão para a retirada das tropas, com um possível retorno do conflito, e as tensões no Afeganistão se renovam.

International Politics: Enduring Concepts and Contemporary Issues (9th Edition) | Wonder BookNo discurso, Biden justifica a retirada das tropas pela situação do terrorismo internacional, que sofreu uma “metástase”, não se concentrando em um único país, ou região. O Afeganistão não é o centro do terrorismo internacional. Diversos países, afirma ele, são foco de grupos terroristas que ameaçam a segurança dos EUA, como Síria, Iêmen e Somália. Desse modo, Biden parece estar seguindo, de certa forma, as diretrizes deixadas por Robert J. Art em seu livro A Grand Strategy for America. Nele, o autor recomenda a utilização do poderio bélico americano de forma moderada, devido aos custos crescentes que sua utilização tem no plano internacional. Art preconiza, ainda, a importância do ativismo estadunidense na política internacional, como forma de se manter em um local de privilégio global.

Entretanto, o trecho do discurso mais interessante dentro dessa temática, assim me parece, é o seguinte: “E não vamos ignorar o que nossos agentes da Inteligência determinaram que é a ameaça terrorista mais letal para nossa pátria hoje: Supremacia Branca é terrorismo”. Desde seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 2021, Joe Biden coloca o racismo e a supremacia branca como os grandes problemas da política interna. Nesse discurso, ele disserta sobre o problema do racismo estrutural dentro do Judiciário estadunidense, mencionando que, hoje, para cada homem branco encarcerado, existem seis negros na mesma situação. Ainda iremos acompanhar como o posicionamento de Biden contra supremacistas brancos pode alterar a política externa americana.

 

* João Bernardo Quintanilha Chagas é pesquisador voluntário do Opeu e graduando do curso de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: joaobernardoqchagas@gmail.com.

** Recebido em 16 jun. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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