As relações econômicas entre Brasil e EUA e o estrago de Ernesto Araújo
O então secretário de Estado, Mike Pompeo (à dir.), e o agora ex-ministro brasileiro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, após entrevista coletiva no Departamento de Estado, em Washington, D.C., em 13 set. 2019 (Crédito: AP/Pablo Martinez Monsivais)
O abalo no posicionamento internacional estratégico tradicionalmente mantido pelo Brasil se somou a resultados econômicos que custaram mais do que supostamente valiam
O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo voltou a ser notícia em 18 de maio, ao comparecer à Comissão Parlamentar de inquérito (CPI) da Pandemia, no Senado Federal. Suas insólitas e evasivas respostas às perguntas dos parlamentares incluíram desmentidos até mesmo de posts de sua autoria em rede sociais.
Além de negar ter promovido ataques à China, o ex-chanceler do presidente Jair Bolsonaro teve a desfaçatez de afirmar aos senadores que
(Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores, em depoimento à CPI da Covid, no Senado Federal, em 18 de maio de 2021)
Não é preciso ser especialista em Relações Internacionais para compreender quão ridícula é essa afirmação. No entanto, para os estudiosos na área, o estrago gerado pela passagem de Araújo pelo Itamaraty tem consequências muito mais amplas na relação do Brasil com os Estados Unidos. Faremos a seguir um breve inventário dessa página lamentável da política externa brasileira.
Mudanças de governo nos EUA
Sempre que um novo presidente assume o poder nos Estados Unidos, seu gabinete publica as prioridades nas relações internacionais. Por mais que governos republicanos e democratas apresentem perfis diferentes de abordagem e diferenças em representações mentais e fundamentos, estruturas e eixos da política, quando se trata do ex-presidente Donald Trump, tende-se a classificá-lo como inigualável.
Desde a campanha eleitoral até as últimas horas na Presidência, sua retórica e ações reverberaram extraordinariamente. Ancorado no slogan “América Primeiro” e no perfil de empresário astuto, quis reverter acordos anteriores ao seu mandato. No marco de uma “tradição Jacksoniana”, o déficit comercial do país seria um problema e resultante de negociações mal feitas. Os outros países, inclusive os tradicionais parceiros, teriam tirado proveito da dinâmica interdependência econômica, obrigando os EUA a operarem sob regras de “comércio injusto”.
O então presidente endossou uma série de batalhas econômico-comerciais, sinalizando disposição para desmanchar a ordem internacional do pós-Segunda Guerra.
A boa ajuda aos EUA
O governo Bolsonaro, com uma orientação de política externa tracionada por ideologia, deixou-se conduzir por um seguimento acrítico do governo Trump. Colocado em janeiro de 2019 à frente do Itamaraty, Ernesto Araújo, desviando-se radicalmente das posições defendidas em nome do Brasil no contexto internacional, submeteu a agenda brasileira das relações internacionais à diplomacia bolsonarista, particularmente orientada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, devoto de Trump.
Refletindo tal orientação, Ernesto Araújo endossou a postura do governo Trump, que não só negou as mudanças climáticas, como também administrou mal os efeitos da pandemia e fez tremer os mercados com suas batalhas econômico-comerciais.
O então ministro agiu a favor dos interesses dos EUA, negando apoio ao licenciamento compulsório de vacinas contra a covid-19 – proposta apresentada pela Índia, em 2020, na Organização Mundial do Comércio (OMC). Indispôs-se com a China, país de extrema importância para os interesses econômicos brasileiros, alimentando uma sinofobia tosca.
Ao julgar que seus antecessores teriam desperdiçado oportunidades de adensar as relações bilaterais econômicas e a influência política do Brasil na América Latina, o governo Bolsonaro, com Ernesto Araújo, que dizia que era preciso abandonar “o pensamento antiamericanista que dominava o Itamaraty”, evidenciou seu próprio fracasso.
O abalo no posicionamento internacional estratégico tradicionalmente mantido pelo Brasil se somou a resultados econômicos que custaram mais do que supostamente valiam. Além de outros acordos na área de defesa e espacial, sobre os quais muito já se falou, dois outros merecem destaque: acordo de facilitação de comércio e adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Todavia, entre os direitos e obrigações estabelecidos, basicamente aqueles defendidos pelos EUA no Diálogo Comercial (fórum bilateral estabelecido em 2006), não há qualquer redução de barreiras tarifárias, nem mesmo aquelas vigentes desde junho de 2018 sobre o aço e o alumínio do Brasil.
Facilitação de Comércio
Em outubro de 2020, os governos Trump e Bolsonaro anunciaram a assinatura de novos acordos comerciais, e muito se especulou sobre as respectivas abrangências.
Amparadas pela Seção 232 (Lei Comercial 1962), o governo Trump impôs restrições quantitativas às exportações de aço brasileiro, que se tornaram ainda mais estritas em 2020.
O acordo de 2020 não foi além dos originais propósitos do Diálogo Comercial, concentrados na agilização da logística das operações comerciais entre os dois países, definindo fluxos de operações alfandegárias, padrões, processos e procedimentos e buscando a chamada coerência regulatória. Como os EUA possuem superávit comercial com o Brasil, algo incomum em suas parcerias, qualquer melhora nos sistemas operacionais de comércio e de investimento contempla seus próprios interesses.
OCDE
Para o então chanceler brasileiro, o ingresso do Brasil na OCDE seria de interesse dos respectivos membros da instituição. Significaria que “estamos nos consolidando dentro de um determinado modelo econômico, de economia aberta, economia de mercado”. O Brasil reforçaria o bloco econômico, “referência dentro desse modelo de economia aberta e democracia liberal”. Entretanto, Araújo parece ter perdido isso de vista ao negociar a proposta com os EUA.
O presidente Trump prometeu apoiar a entrada do Brasil na OCDE. Contudo, o governo brasileiro deveria antes renunciar ao tratamento especial e diferencial nas negociações da OMC. O direito, garantido a nações em desenvolvimento, abrange, entre outros benefícios, a possibilidade de negociar termos e condições comerciais com países de mesmo nível sem ter que estendê-los aos desenvolvidos.
A falta de senso de proporção do governo Bolsonaro e de Ernesto Araújo como chanceler é notória. Certamente sabiam que, além do pagamento antecipado, o Brasil seria submetido a termos e condições de acessão junto à OCDE.
No processo que leva pelo menos três anos, o Brasil precisará se ajustar a padrões exigidos institucionalmente e, em vários casos, exigidos por determinados membros e seus grupos de interesses.
Adesão a protocolos
O governo brasileiro já havia requisitado, em 2017, a adesão aos dois principais protocolos da OCDE: Liberalização dos Movimentos de Capital e Liberalização das Operações Correntes Invisíveis. Os direitos e obrigações vinculados a tais protocolos abrangem operações relativas a Investimento Estrangeiro Direto (IED), direito de estabelecer uma empresa no Brasil sem presença local, bem como liberalização do comércio transfronteiriço de serviços.
Com tais adesões, o governo brasileiro assumiu o compromisso de liberalizar o comércio de serviços, antecipando-se às negociações hoje suspensas na OMC e nas quais o Brasil costumava usar as demandas sobre tal setor como moeda de troca.
Em março de 2019, a OCDE indicou que o Brasil ainda não estava pronto. No Relatório do Comitê Ampliado de Investimentos da OCDE, dentre outras áreas nas quais o Brasil precisaria melhorar, destacam-se restrições horizontais e setoriais sobre IED. Os setores mais restritivos seriam: mídia; segurança privada; transporte aéreo; mineração; serviços de telecomunicações; e transporte marítimo.
Um ano depois, a OCDE tomou uma decisão sem precedentes, estabelecendo um grupo permanente de monitoramento sobre o combate à corrupção no Brasil. Isso representou uma escalada nas advertências emitidas pela organização desde 2019 e um sinal de que o Brasil andou algumas casas para trás até ser aceito no grupo.
Diante da ‘Onda Azul’
Além do Poder Executivo, as duas casas do Poder Legislativo também acabaram sob controle dos democratas, configurando a “Onda Azul”, com os resultados das eleições de 2020. Em tal contexto, o comportamento grosseiro do presidente Bolsonaro, ecoando alegações infundadas de Trump sobre fraude eleitoral nos EUA, sua dificuldade em adotar o pragmatismo e os posicionamentos do então chanceler, que continuou a reboque de seu chefe e das preferências da ala ideológica, fizeram piorar o clima do relacionamento bilateral.
A pressão de congressistas democratas, desde 2020, e de organizações da sociedade civil nos EUA, em fevereiro de 2021, contrários a acordos entre os dois países, colocou o governo Bolsonaro rapidamente diante da temida onda e fez o então chanceler pedir arrego. Nas últimas semanas no cargo, em evento da Americas Society e do Conselho das Américas, think tanks a favor da liberalização comercial hemisférica, o então chanceler, apoiado por Nestor Forster, embaixador do Brasil para os EUA, demonstrou repetidamente disposição em se aproximar do governo Biden.
Em uma espécie de súplica por reconsideração dos democratas, o ministro destacou que desde 2019 vinha falando em aliança “não só em parceria, ou relacionamento, porque é o que sentimos que queríamos e ainda queremos….Queríamos e ainda queremos… acordos comerciais completos”.
Lembra-se do alinhamento automático com os EUA na questão das vacinas contra a Covid-19, posicionando-se contra a proposta apresentada pela Índia, em 2020, na OMC? Em abril deste ano, Biden foi mais longe, propondo suspensão temporária das patentes, o que deixou o Brasil ainda mais isolado e desmoralizado.
Sobre o apoio “totalmente decisivo” dos EUA para a adesão do Brasil à OCDE, o que esperava que acontecesse, afirmou que seria algo bom para os EUA, pois “uma forma de ancorar o Brasil nesse clima, nesse modelo de democracia liberal e economia de mercado que queremos… temos que seguir avançando até que possamos consolidar esse novo modelo no Brasil, porque sentimos que pertencemos… aos EUA e a outras democracias no modelo que a OCDE defende”.
Relativo à questão ambiental, presente no topo da agenda do governo Biden com investimentos maciços previstos em novas matrizes energéticas e que, por outro lado, faz parte das teorias conspiratórias que ancoram a política externa do governo Bolsonaro, o então chanceler recuou, dizendo: “Estamos absolutamente juntos no clima… podemos trabalhar como parceiros-chave para não apenas uma COP-26 bem-sucedida, mas a implementação total dos instrumentos e acordos climáticos. E não há diferença filosófica nisso…”.
Espera-se mais pressão
Ernesto Araújo não convenceu, não resistiu às diferentes pressões e caiu. Porém, a orientação de política externa do governo Bolsonaro não mudou, tampouco sua credibilidade. O novo chanceler vem de uma área ligada ao núcleo ideológico. Diante disso, pergunta-se: como devem se configurar as relações econômicas Brasil-EUA?
A saber, mas espera-se mais pressão vinda dos democratas, como já se viu na Cúpula de Líderes sobre o Clima (20 a 23 de abril), que marcou o retorno dos EUA ao debate ambiental.
Dias antes, um grupo de senadores dos EUA, condicionou qualquer ajuda e aproximação do governo Biden ao Brasil. Os senadores alertaram que o fracasso em desacelerar o desmatamento também afetará a disposição deles em emprestar apoio à candidatura do Brasil à OCDE. Biden precisaria ver sucesso antes de preencher um cheque e/ou fazer qualquer concessão econômico-comercial ao Brasil.
* Neusa Maria P. Bojikian é pesquisadora e assessora de coordenação geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (Editora Unesp, 2009).
** Artigo de Opinião publicado originalmente no Jornal da Unesp, em 19 de maio 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.