Excepcionalismo americano pós-11/9: um novo inimigo para cimentar o consenso nacional
Bandeira americana fincada na base do World Trade Center destruído, Nova York, 11 set. 2001 (Crédito: Peter Morgan/Reuters)
Série Excepcionalismo Americano: discursos, símbolos e narrativas de uma nação
Por Ingrid Cagy Marra*
Realizado em 11 de setembro de 2001, o discurso do presidente George W. Bush divulgado pelo escritório da Secretaria de Imprensa abriu um novo momento para a história dos Estados Unidos no século XXI. Pouco mais de 12 horas após o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, seu discurso recupera e expõe alguns dos traços que os próprios estadunidenses acreditam serem distintivos de sua fundação civilizacional e, por sua singularidade, valores a serem exportados para o restante do planeta.
Logo no início, o presidente entende que o World Trade Center (WTC) e o Pentágono são representações da identidade estadunidense: os ataques não foram somente aos prédios, mas aos “cidadãos, ao way of life e à própria liberdade”, que estavam sob ataque de atos cruéis de terror. Mas o país não colapsaria por isso. Por serem a primeira república do planeta, por se considerarem a primeira democracia e os possuidores da primeira Constituição da história, o histórico excepcional não permitiria que atos de terror de bárbaros pudessem atingir o que W. Bush chamou de “fundação da América”.
Uma das imagens icônicas do 11/9: o presidente George W. Bush discursa em meio aos destroços do WTC, em NY, 14 set. 2001 (Crédito: Win McNamee/Reuters)
Um aspecto importante a ser considerado no discurso de W. Bush é o apelo a Deus e ao espírito protestante estadunidense. Os chamados Pais Peregrinos eram calvinistas ascetas que buscavam a separação da igreja anglicana inglesa e que, por predestinação, deveriam criar um novo mundo e exercer livremente sua fé no território em que hoje se encontram os Estados Unidos. Os grupos, separatistas e puritanos, são vistos como os responsáveis pelo rompimento com a monarquia inglesa, para criar a primeira república da história e fazer com que o projeto de sociedade estadunidense se transformasse no ideal para a humanidade, ou a City Upon a Hill.
Mitos fundacionais para galvanizar o credo americano
A construção historiográfica dos mitos fundacionais da nação estadunidense, cuja reprodução se dá tanto por discursos presidenciais, filmes, músicas, jornais, sistemas educacionais, entre outros, é de longa duração. O sentimento de unidade, de superioridade moral, bélica, econômica e política, a concepção de legado dos Founding Fathers e do nascimento da modernidade são alguns dos principais aspectos a serem analisados em quaisquer discursos do país, e também no de George W. Bush no cenário pós-11 de Setembro. Como nos mostra a professora do Departamento de História da USP Mary Anne Junqueira em seu livro Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (EDUSP, 2018), os Founding Fathers foram essenciais para a construção e para a consolidação do projeto estadunidense, além da coesão nacional.
Segundo o então presidente republicano, no imaginário estadunidense, os Estados Unidos haviam sido atacados por serem “o mais brilhante farol para liberdade e a oportunidade no mundo”. Este trecho, que em muito se assemelha ao discurso do democrata John F. Kennedy conhecido como “City Upon a Hill Speech”, de 1961, demarca o ideal dos Estados Unidos como um ponto de luz, progresso e modernidade em um mundo de escuridão e atraso. Esse ideal expressa a centralidade da concepção de que os americanos se entendem como ápice e estágio último do progresso e da modernidade, cuja inevitabilidade se dá por sua excepcionalidade natural.
Seu grande destino, naturalmente, será então a missão de levar valores universalistas e servir de modelo para o restante do planeta, além de, a partir de 2001, reforçar sua posição de responsabilidade pela paz e pela segurança internacionais. Ao serem incorporados pela sociedade civil, estes valores contribuem para garantir a integridade do tecido social estadunidense e o senso de identidade. Como consequência, tudo o que não se assemelha ao projeto de civilização americano é interiorizado como inferior e, por isso, deverá ser corrigido. Seus mitos fundacionais criam regras de conduta, a construção cultural de memórias coletivas, seus ideais e suas rejeições, conforme descrito por Junqueira em sua pesquisa.
Nesta passagem do mesmo discurso,
“A busca está em andamento por quem está por trás desses atos do mal. Direcionei todos os recursos de nossa Inteligência e comunidades de aplicação da lei para encontrar os responsáveis e trazê-los à Justiça. Nós não faremos distinção entre os terroristas que cometeram esses atos e os que os protegerem”
é possível perceber, historicamente, uma intensificação desta narrativa, a qual se observaria também na execução da política externa do país, a partir dos ataques de 2001. A partir daquele momento, todos que não fossem inimigos daqueles apontados como responsáveis pelos atentados seriam vistos e tratados como inimigos da América. Os Estados Unidos, que já haviam realizado intervenções de maneira sistemática em todo planeta, utilizam-se da narrativa da Guerra Global ao Terror (GWOT, na sigla em inglês) para a criação de um novo inimigo após a queda da União Soviética, em 1991.
Logo no início de outubro de 2001, as Forças Armadas dos Estados Unidos invadem o Afeganistão, como resposta aos ataques do 11 de Setembro, e pouco (ou nada) mudou desde então. Soldados têm sido enviados para todas as partes do mundo como vetores da paz, da democracia e da modernidade. Um mundo em que os Estados Unidos não possuem mais um único rival claro e de base territorial definida, mas várias ameaças fragmentadas ao modelo de civilização ocidental que não deverá ser questionado.
Uma nação especial que não se dobra
No discurso de W. Bush, também é possível perceber que há um tom de tentativa de volta à normalidade, como no trecho “o funcionamento do governo seguirá sem interrupções” e “nossas instituições financeiras se mantêm fortes, e a economia americana estará aberta para negócios também”. A necessidade de afirmar a volta à normalidade é um símbolo de que os ataques terroristas não serão vitoriosos em abalar o funcionamento normal de uma sociedade e economia de fundações firmes e de que os Estados Unidos não se dobrarão. “Esses atos quebram o aço, mas não podem destruir a determinação de aço da América”, diz W. Bush.
Os elementos usados reiteradamente na construção da narrativa da nação estadunidense, que começa desde os Founding Fathers e segue inabalada até o século XXI, são essenciais para entender os discursos presidenciais do país, assim como seu uso e a que propósito se destinam, ao longo do tempo. O uso de símbolos que invocam os mitos fundadores, a coesão do tecido social, a unidade territorial, a fé no protestantismo e na missão de levar as luzes da modernidade para além de suas fronteiras políticas: tudo isso faz parte da construção do hegemon gramsciano, em suas dimensões política, econômica e cultural. Essa narrativa, quando confrontada pelo novo inimigo da nação, o bárbaro terrorista, fortifica-se como justificativa para o ataque externo, como método de defesa de sua população, de seus interesses e de seus valores naturalmente superiores, já que excepcionais. E, justamente por sua excepcionalidade, os Estados Unidos deverão ter como missão levar esses valores para a população de todo mundo, assim como buscaram fazer George W. Bush, com as guerras no Iraque e no Afeganistão, e os presidentes seguintes, fosse mantendo o status quo dos teatros de guerra já em curso, fosse com novas frentes de ação.
* Ingrid Cagy Marra é graduanda do curso de Relações Internacionais da UFRJ (IRID-UFRJ) e integrante do Laboratório Orti Oricellari de Economia Política Internacional, onde pesquisa moeda enquanto instrumento de pressão política em países não-alinhados à hegemonia estadunidense, hierarquia monetária internacional e criptomoedas. Participa, desde 2020, do Grupo de Estudos em Neurociências da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Seu último trabalho foi o Informe Relações Rússia-EUA sofrem escalada no governo Biden, publicado em 2021 no Observatório Político dos Estados Unidos. Contato: Linkedin.
** Recebido em 1º maio 2021 e publicado sob a supervisão da editora do OPEU e professora colaboradora do IRID-UFRJ, Tatiana Teixeira. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.