Mudanças de Rumos na Terra do Tio Sam
Franklin Delano Roosevelt, Joe Biden e Ronald Reagan (Crédito da montagem: Financial Times)
Por Rafael Ioris*
Após décadas pontificando ao redor do mundo sobre a necessidade de um Estado mínimo, os Estados Unidos podem vir a se tornar o túmulo do neoliberalismo. De fato, se o presidente Joe Biden conseguir aprovar seu novo pacote de investimentos nas áreas de infraestrutura e saúde, que conjuntamente poderiam chegar a um total impressionante de cerca de US$ 4 trilhões, o país poderia experimentar a maior redefinição da noção do papel do Estado na economia desde, pelo menos, os anos 1960, ou até mesmo desde o chamado New Deal nos anos 1930.
Após aprovar um pacote de recuperação da crise da covid-19 de quase US$ 2 trilhões, Biden anunciou na semana passada seu novo plano de investir, ao longo dos próximos dez anos, cerca de 2 novos trilhões em diferentes setores que poderiam ser definidos como de infraestrutura, incluindo, além de estradas e portos, a renovação de escolas, cabeamento de Internet em casas e fazendas, além da promoção de veículos elétricos e maior acesso à energia solar em residências. Como principal forma de custeio de tais medidas, a proposta pretende retornar o percentual de taxação corporativa, reduzida no governo Trump, de 21% para 28%, e impedir a evasão fiscal de empresas offshore.
É ainda incerto se (e mesmo como) o governo Biden será capaz de aprovar tais ambiciosas ideias. Dado que tais mudanças impactariam claramente a estrutura fiscal que, nos últimos 40 anos, vinha progressivamente favorecendo o mundo empresarial, resistências já começaram a ser enunciadas tanto pelas lideranças da oposição Republicana, como mesmo por senadores moderados do partido Democrata, como Joe Manchin do estado da Virgínia Ocidental. De todo modo, a proposta de Biden, assim com a intenção da secretária do Tesouro norte-americano, Janet Yellen, de buscar uma tributação básica única entre países desenvolvidos, como forma de evitar o processo de evasão fiscal concentrador de rendas das últimas décadas, sinalizam claramente uma mudança de direção na lógica neoliberal definidora de política públicas ao redor do mundo desde, pelo menos, os anos 1980.
É certo que, mesmo quando o governo norte-americano, assim com instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional, promoviam a agenda do chamado Consenso de Washington ao longo das últimas décadas do século XX, tratava-se de algo, em grande parte, para consumo externo. Afinal, a abertura de mercado e a redução de gastos públicos, exigida pelos acordos de renegociação das dívidas dos países latino-americanos, por exemplo, claramente não eram medidas que a Casa Branca buscava implementar no ambiente doméstico, pelo menos não com o mesmo vigor que exigia dos países em desenvolvimento.
Ainda assim, embora incoerente em sua proposta de redução do papel do Estado, que no setor militar foi, de fato, consistentemente ampliado, desde os anos Reagan, no início da década de 1980, a agenda neoliberal — especialmente no que se refere à busca fundamentalista de redução de impostos das corporações e dos ganhos de capital, assim como à redução dos investimentos públicos, especialmente em itens ligados à redução da desigualdade — tornou-se um dogma da administração pública nos EUA, seja durante governos Republicanos, como Reagan e Bush, como também em governos Democratas, em especial nos anos dourados da globalização neoliberal de Bill Clinton.
Frutos de tal processo, os EUA apresentam hoje, e desde pelo menos os últimos dez anos, seus piores níveis de concentração de renda dos últimos 100 anos, com níveis associados de polarização política e descrença nas instituições de governo comparáveis aos anos da Guerra Civil da década de 1860. Tais dinâmicas, especialmente no que diz respeito aos seus elementos políticos, são certamente mais agudas entre apoiadores do Partido Republicano, de sobremaneira setores ligados ao ex-presidente Donald Trump. Este último, de fato e em grande parte, elegeu-se com base na frustração crescente de setores econômicos negativamente impactados pela desindustrialização manufatureira causada pelas políticas de livre-mercado promovidas ao longo dos últimos 30 anos.
Tanto Tump quanto Barack Obama buscaram, ou pelo menos prometiam, uma reversão de rumos, em relação à responsabilidade social das estruturas do governo — com a criação da legislação de saúde conhecida como Obamacare, no caso do último; assim como no que se refere à proteção de setores econômicos internos, com as novas medidas protecionistas implementadas pelo primeiro. Mas é com Biden que há, de fato, a possibilidade de uma efetiva eliminação do mantra neoliberal da lógica governmental norte-americana.
O atual presidente se elegeu mesmo, em grande medida, com base na promessa de que buscaria repactuar a noção da responsabilidade social do Estado. E agora, nos seus primeiros 100 dias de governo, Biden dá forte indícios de que está buscando implementar tal guinada de rumos. A depender do que vai acontecer com suas propostas no Congresso do país, assim como com sua capacidade de manter a narrativa do valor de tal mudança, estaríamos presenciando a mais importante e radical alteração de curso da concepção de Estado dos últimos 50 anos nos EUA, certamente com repercussão ao redor do mundo. Este seria o caso especialmente, prevê-se, em países como o Brasil, onde novamente a agenda neoliberal extrema dos últimos cinco anos se provou não apenas ineficaz na promoção do crescimento econômico, como também destrutiva em seu impacto social.
* Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver e pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU).
** Publicado originalmente no blog Gestão, Política & Sociedade, do Estadão, em 6 abr. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.