Desenvolvimento, democracia e política externa: uma destruição em curso
Reprodução (Fonte: IG)
Artigo de Opinião, por Rafael Ioris*
Ernesto Araújo pediu demissão hoje (29) do Ministério das Relações Exteriores, depois de ter sofrido pressão insuportável de senadores de diversos partidos e após ter conduzido a diplomacia brasileira em seu período mais vergonhoso e ineficaz. Alçado ao posto por influência dos ideológicos na direita extrema no poder, Araújo via Trump como um cruzado defensor-mor da civilização ocidental e buscou, portanto, alinhar o Brasil ao trumpismo e a uma imaginada cruzada internacional anticomunista. O fruto dessa diplomacia fundamentalista foi manchar de forma profunda o legado de uma das tradições diplomáticas mais consistentes e pragmáticas do mundo, até recentemente merecedora de respeito em escala global.
Resultado de um longo caminho de continuidades definidas pelo pragmatismo e princípios universalistas (autodeterminação, resolução pacífica de conflitos, defesa do multilateralismo institucional e, mais recentemente, da própria democracia), a política externa do Brasil merecia admiração nas múltiplas esferas de manutenção da lógica internacional vigente. Triste perceber que hoje esse legado tão invejável esteja sendo rapidamente destruído por uma administração ideológica, fundamentalista e subserviente na chamada Casa de Rio Branco.
A construção de uma diplomacia em um país na periferia mas ainda assim levada em grande conta nos centros de poder mundial teve a ver, em grande parte, com a constância e firmeza de propósito em construir uma política externa que pudesse servir, de fato, aos interesses de uma nação em formação. Se ao longo das primeiras décadas do século XIX trata-se da consolidação da fronteiras e busca da respeitabilidade no cenário internacional, em grande parte pela cópia das formas de ser das cortes européias; no início do século XX, com Rio Branco, portador de título de nobreza mas consolidador do território de um país em reconfiguração nos moldes republicanos, nossa diplomacia assumiu, de vez, seus contornos mais marcantes.
Sem se antipatizar com os tradicionais parceiros europeus, o Barão conseguiu reorientar nosso foco ao longo da defesa, soberana e pragmática, dos nossos principais interesses econômicos – embora se tratasse, em grande medida, também da defesa de uma estrutura política e mesmo visão de mundo oligárquica. De todo modo, com a reorientação Americana da nossa política externa, sem ceder na defesa de nossos interesses subcontinentais, surgia, em definitivo, o caráter de uma diplomacia para o desenvolvimento. E, ainda que tenha assumido manifestações variadas ao longo do tempo, mantivemos nosso universalismo e a ausência, quase constante, de alinhamentos automáticos com quaisquer outros países, especialmente potências estrangeiras.
De fato, se não tendo avançado no processo de democratização política, pelo menos na sua primeira manifestação no controle do país, Vargas aprofundou o pragmatismo da nossas relações exteriores – processo este que se consolida ao longo dos anos 1950, com JK, que, embora tenha priorizado relações com a grande potência econômica do mundo, os EUA, o fez de um ponto de vista altivo e em busca de apoio para sua ambiciosa agenda de desenvolvimento econômico. Da mesma forma, o caráter universalista da diplomacia brasileira se aprofunda com Quadros e Goulart, ao buscarem, mesmo que em meio a uma forte crise econômica e crescente crise política, diversificar ainda mais nossas parcerias econômicas e relacionamentos diplomáticos ao redor do mundo.
Mesmo os distintos governos da nossa ditadura empresarial-militar, após os primeiros anos de alinhamento (quase) automático aos EUA, vieram a se dar conta, apesar do contexto polarizado da Guerra Fria, que não cabia aos interesses de um país em desenvolvimento manter qualquer alinhamento de caráter subordinado. E assim, apesar da forte retórica anticomunista que sempre manteve, todas as chancelarias do regime militar mantiveram relações diplomáticas com os países da chamada Cortina de Ferro – demontração clara do pragmatismo e mesmo do dito ecumenismo da nossa diplomacia.
Posteriormente, ao longo do (demasiado) lento e controlado processo de redemocratização que vivemos nos anos 1970 e 1980, vimos a manutenção dos elementos centrais da nossa tradição diplomática que agora assumia um papel também na defesa e na promoção dos valores democráticos, tanto em nosso ambiente doméstico, como também no nosso contexto regional e atuação em agências de representação globais. O Itamaraty teve, de fato, um papel-chave na construção de uma zona regional isenta de armas nucleares no período pós-ditadura, liderou o processo de construção do pouco valorizado, mas fundamental, espaço de paz e intergração econômica criado pelo Mercosul e, já nos anos 1990, ajudou a encaminhar, em conjunto com as influentes diplomacias presidenciais das eras FHC e Lula, a reconfiguração do Brasil como principal força econômica e mesmo de representação da América do Sul. Os sucessos iniciados por FHC foram mesmo aprofundados com Lula, que ampliou ainda mais a presença do Brasil não apenas no ambiente regional, mas, agora, especialmente por meio do BRICS, G-20, IBSA, etc., no mundo.
Interessantemente, retomando, de fato, o legado de Rio Branco, esse processo foi guiado pela defesa dos interesses econômicos, soberania nacional e dos valores democráticos, ampliando o diáologo com mais e novos interlocutores, sem que, ao mesmo tempo, houvesse desgaste junto a parceiros tradicionais. Quem não se lembra da boa relação de Lula com W. Bush e da ocasião em que Obama chamou Lula de “o cara”? Entendia-se bem que era possível defender e promover os interesses sem alinhamento exclusivo e inspirações ideológicas na diplomacia.
Nada mais distante da realidade atual. De fato, iniciada sob o pretexto da falaciosa narrativa de que o país, ao ter aumentado sua presença e respeitabilidade ao redor do mundo, teria-se guiado por motivações de caráter político, reorientou-se nossa diplomacia, agora, sim, ao longo de um viés ideológico e subordinado, não aos interesses nacionais, mas sim aos interesses de duas dinastias no poder: de um lado, da família Trump; do outro, da família Bolsonaro. Nessa diplomacia patrimonial subserviente, começamos rapidamente a erodir o capital simbólico de um trabalho de mais de um século, assim como a minar a própria capacidade de proteger nossa população em um contexto de pandemia global, já que foi mais importante agradar ao grande líder negacionista norte-americano do que defender nossa política de quebra de patentes de vacinas.
Uma das grandes conquistas de um país periférico, nossa tradição diplomática sempre foi um instrumento de defesa dos nossos interesses. Se, em grande parte, esse processo se pautou mais por uma agenda de base econômica, nas últimas três décadas, nossa política externa assumiu a defesa da democracia (ao longo dos tradicionais princípios de não-intervenção, entre outros) como pilar de sua atuação. Infelizmente, hoje a atuação diplomática do Brasil é vista com preocupação, espanto e mesmo vergonha ao redor do mundo.
Nos alinhamos ao grande líder da extrema direita mundial (até mesmo após ele ter sido derrotado nas urnas), votamos sistematicamente contra a defesa dos direitos humanos e das minorias nos foros mundiais e nos orgulhamos de ser pária no mundo, ao defendermos um governo autoritário, negacionista e, mesmo, com atitudes genocidas. Imagina-se que a reconstrução da nossa democracia levará tempo. Imagina-se que esse também seja, tragicamente, o caso com nossa diplomacia. Com a saída do cruzado do Itamaraty, espera-se que esse processo seja iniciado, mas vai depender de que o novo nome para conduzir a casa e, claro, seus superiores no Planalto, percebam o desastre que fizeram.
* Rafael R. Ioris é professor de História e Política da Universidade de Denver e pesquisador do INCT-INEU.
** Publicado originalmente no blog A Cara da Democracia, do UOL, em 29 mar. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.