Detenções de jornalistas nos EUA aumentam mais de 1.400% em 2020
VOZ DE PRISÃO: O jornalista da CNN Omar Jimenez é detido durante transmissão ao vivo dos protestos em Minneapolis, Minnesota, pelo homicídio de George Floyd, em 29 de maio de 2020 (Crédito: CNN via ReutersTV)
Por Isabelle C. Somma de Castro*
Em 31 de maio do ano passado, Andrea Sahouri, do jornal Des Moines Register, cobria um dos vários protestos que se espalhavam nos EUA contra o bárbaro assassinato de George Floyd por um policial branco em Minneapolis. Apesar de se identificar para as forças policiais que tentavam reprimir os manifestantes na capital de Iowa, a repórter foi atacada com spray de pimenta, algemada e presa.
Essa é somente uma das várias histórias de intimidações à liberdade de imprensa nos Estados Unidos em 2020, período em que o país registrou um aumento de mais de 1.400% no número de detenções de jornalistas em relação a 2019. Foram 130 prisões de trabalhadores de imprensa enquanto exerciam sua atividade, em comparação com nove no ano anterior. Desse total, 14 profissionais ainda estão sendo processados. Os dados foram coletados pelo U.S. Press Freedom Tracker, um repositório que documenta ataques à liberdade de imprensa no país desde 2017.
Os locais mais perigosos para os trabalhadores de imprensa dos EUA no ano passado foram exatamente as manifestações que se espalharam pelo país após o assassinato de Floyd. O abuso das forças de segurança foi tamanho que chegou a ser exibido ao vivo pela CNN, em 29 de maio. O repórter Omar Jimenez, que fazia a cobertura de um dos vários protestos que incendiaram Minneapolis, a cidade onde ocorreu o assassinato de Floyd, narrou sua própria prisão enquanto o cinegrafista exibia a ação. O profissional ainda gravou a detenção do restante da equipe e, quando recebeu voz de prisão, colocou a câmera no chão para mostrar os policiais algemando-o e levando-o para a detenção.
Inimigo do povo
Os ataques contra jornalistas, mesmo por parte de policiais, não foram de se estranhar. Durante seus quatro anos de governo, Donald Trump repetiu a máxima de que a imprensa seria o “verdadeiro inimigo do povo”. O ex-apresentador de reality show parecia incentivar e dar carta branca para o assédio. O então presidente atacou jornalistas das mais diversas formas: zombou de um que tinha necessidades especiais, suspendeu a credencial de um experiente correspondente que trabalhava na Casa Branca, usou as redes sociais para insultar repórteres, editores e até o dono de The Washington Post, Jeff Bezos – mas essa disputa, é preciso admitir, tem várias motivações.
CENSURA: Trump ataca com o então correspondente da CNN Jim Acosta (de costas), durante entrevista coletiva no Salão Leste da Casa Branca, em 7 nov. 2018 (Crédito: Kevin Lamarque/Reuters)
O maior golpe de Trump contra a imprensa não foi contra os profissionais, mas contra a instituição. Segundo o Committee to Protect Journalists (CPJ), o presidente minou a credibilidade dos meios de comunicação tradicionais durante a pandemia ao minimizar a covid-19 e acusar os veículos de estarem mentindo sobre a importância das medidas de prevenção da doença, como o distanciamento social e o uso de máscaras. A campanha negacionista colaborou para o registro de um alto número de casos e mortes no país, especialmente nos bastiões trumpistas.
A ação de Trump contra o trabalho da imprensa é anterior à pandemia. Prova disso é que a desconfiança na imprensa vem apresentando uma forte clivagem partidária nos últimos anos. Em 2019, esse fato se mostrou evidente em uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center. Quando perguntados sobre se concordam que os jornalistas devem agir como vigilantes (whatchdogs) dos membros eleitos do governo, 61% dos entrevistados que se identificam como republicanos e independentes mais inclinados a votar no partido concordaram. Entre os democratas e independentes mais associados a eles, o número é maior, 83%.
O fosso entre ambos os lados é ainda mais claro quando os entrevistados são questionados se os jornalistas estão desempenhando bem seu papel. Entre os pró-republicanos, somente 16% aprovam o trabalho dos profissionais de imprensa. Em contraste, a aprovação aumenta para 43% entre os pró-democratas. De qualquer forma, deixando de lado as diferenças partidárias, também é possível observar que a insatisfação com a imprensa é generalizada. Juntando todos os entrevistados, a aprovação é de somente 30%.
Os ataques de Obama
Apesar de parecer que o apreço pelo trabalho da imprensa é maior entre democratas, o governo de Barack Obama não foi dos mais cordiais com a categoria. Durante sua administração, o Departamento de Justiça promoveu uma guerra às fontes que vazavam informações secretas a jornalistas – apesar de o democrata ter prometido em campanha para presidente que protegeria os whistleblowers. Somente Chelsea Manning foi perdoada nos últimos dias do governo Obama.
O discurso mudou em junho de 2012, quando o então presidente chegou a dizer que teria “tolerância zero” com vazamentos. Nessa época, investigações e outros procedimentos jurídicos sigilosos foram realizados contra Julian Assange, que recebeu as informações de Manning e as divulgou no site WikiLeaks em 2010. Assange foi indiciado por 17 crimes em 2019, já sob Trump.
O governo Obama também queria impedir a publicação de informações sobre o uso intensivo de drones na eliminação indiscriminada de pessoas no Oriente Médio e as tentativas de destruir os reatores nucleares iranianos por meios bastante questionáveis. O então procurador-geral Eric Holder chegou a designar dois funcionários de sua pasta para investigar as fontes das denúncias. Holder se baseou no mau afamado Espionage Act, lei criada durante a Primeira Guerra Mundial com o objetivo claro de atingir espiões ao criminalizar a retenção e a divulgação de informações secretas para inimigos externos.
Do modo que está sendo interpretada, segundo ativistas, transformou-se em uma arma para perseguir críticos de intervenções militares, whistleblowers e jornalistas. Não se faz mais distinção entre a ação de espiões que trabalham para outros países e pessoas que pretendem denunciar malfeitos e ilegalidades de programas do governo. Essa interpretação sui generis foi inaugurada em 1971, durante a administração de Richard Nixon. Na ocasião, um informante foi indiciado com base no Espionage Act, por dar informações confidenciais a um jornalista de The New York Times, no caso que ficou conhecido como Pentagon Papers. A interpretação violaria a Primeira Emenda da Constituição, que garante liberdade de expressão (a todos) e de imprensa.
No período entre 1917 e 2009, apenas uma pessoa foi condenada sob a lei do tempo da Primeira Guerra por vazar informações secretas para um veículo de imprensa. Somente no governo Obama, o Departamento de Justiça (DoJ) instaurou dez investigações relacionadas a vazamentos, portanto mais do que todas as outras administrações juntas. Entre as ações promovidas, as que provocaram maior indignação foram a quebra dos sigilos telefônicos da Associated Press, em 2013, assim como a dos de um repórter da Fox News, em 2009. Ambas com o objetivo de descobrir a autoria de vazamentos.
PERSEGUIÇÃO: ‘A imprensa é o inimigo’, diz o então presidente Nixon em telefonema com Henry Kissinger, em 14 dez. 1972 (Fonte: American Forum)
Perseguir as fontes foi uma forma clara de evitar novas revelações. Apesar disso, o assédio não evitou a mais célebre delas, protagonizada por Edward Snowden. As ações do DoJ também tinham como objetivo intimidar os próprios jornalistas – não foi à toa que Glenn Greenwald e Laura Poitras permaneceram longe dos EUA durante algum tempo após a divulgação das reportagens com base nos dados apresentados por Snowden. Aliás, mesmo morando em Moscou, Snowden se tornou um militante da área: é presidente da entidade Freedom of the Press Foundation.
No caso da Fox, o DoJ conseguiu obter, além dos relatórios telefônicos, informações pessoais do jornalista James Rosen por meio de monitoramento. Rosen reuniu dados secretos sobre armas nucleares da Coreia do Norte, enquanto era setorista do canal de TV no Departamento de Estado. Em uma solicitação para obter um mandato de busca, foi apontado como “coautor de crime”, apesar de não ter sido indiciado, nem acusado por qualquer delito. O verdadeiro autor do vazamento, Stephen Kim, que trabalhava na sede dessa pasta, foi descoberto. Kim acabou fazendo um acordo, no qual assumiu ter mentido ao FBI (a Polícia Federal americana) e assim recebeu uma sentença mais branda: 13 meses na prisão.
Mais sorte do que Kim teve Andrea Sahouri, a repórter que cobria o protesto em Des Moines contra o papel da violência policial na morte de George Floyd. Acusada de praticar dois pequenos delitos durante a manifestação de maio de 2020 – não dispersar e interferir no trabalho dos oficiais –, foi levada a júri popular em julgamento que durou três dias. Acabou sendo inocentada por unanimidade no último dia 11 de março. Mesmo com a derrota de Trump, porém, os jornalistas ainda não estão livres do assédio governamental. A ameaça do uso criativo do Espionage Act ainda paira livre, leve e solto na terra da liberdade.
* Isabelle C. Somma de Castro é pós-doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Visiting Scholar 2018-2019 no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, com bolsa Fapesp. Contato: isasomma@hotmail.com.
** Recebido em 15 mar. 2021. Este trabalho não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.