China e Rússia

A adesão do governo Biden à cúpula do Quad

(No alto, da esq. para dir.) Premiê indiano, Narendra Modi; presidente americano, Joe Biden; premiê australiano, Scott Morrison; e o primeiro-ministro japonês, Suga, na cúpula virtual do Quad, em 12 mar. 2021 (Crédito: ANI)

Por Williams Gonçalves*

O sistema internacional de poder se encontra totalmente dominado pela competição entre Estados Unidos e China. Isso não significa, no entanto, uma nova edição da Guerra Fria dos anos 1947-1989. Ainda que seja possível apontar uma, ou outra, semelhança entre os dois momentos da evolução do sistema internacional, as diferenças entre a disputa EUA-URSS e a disputa EUA-China são muito mais numerosas que as semelhanças. E a principal diferença entre esses dois momentos é que nenhum dos demais Estados do sistema estão obrigados a orbitar em torno da China e dos EUA em virtude de fidelidade ideológica. O fato de a China ser governada pelo Partido Comunista não tem qualquer implicação nas relações do país com todos os demais. A defesa que as autoridades governamentais chinesas fazem do livre-comércio constitui a prova mais contundente dessa inexistência de vínculo da ideologia oficial do Estado com sua política externa e com suas relações exteriores.

A principal consequência dessa característica central da atual disputa entre as duas grandes potências é a liberdade que os demais atores estatais desfrutam ao definir as alianças que mais convêm aos seus interesses nacionais. Essa liberdade dos terceiros atores de priorizar maior aproximação e cooperação com Estados Unidos, ou China, exige de cada uma dessas duas potências um esforço diplomático sempre maior, uma vez que aqueles Estados mais valorizados e cobiçados nesse jogo procuram extrair os maiores benefícios possíveis de cada uma dessas potências. Diferentemente da época da Guerra Fria, a inclinação em favor de uma, ou outra, grande potência não se faz mais à custa de revoluções, ou de guerras civis: ela se dá pela capacidade diplomática dos atores de explorarem as possibilidades que a competição estratégica proporciona.

Essa complexa questão emoldura a primeira reunião de cúpula dos líderes do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad). Denominada OTAN da Ásia, o Quad é composto por Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia. O grupo foi formado em 2004 em torno da questão prática de reverter os estragos causados pelo tsunami que varreu o Oceano Índico naquele ano. O então primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, apresentou a proposta de criar uma estrutura permanente para o grupo. Na ocasião, a ideia não prosperou além do fim de seu mandato à frente do Gabinete japonês, em 2006. O resultado desse esforço diplomático se limitou a uma reunião do grupo em 2007. Quando Shinzo Abe retornou ao posto de primeiro-ministro, em 2017, encontrou, no entanto, um ambiente muito mais favorável à implementação de sua ideia.

E o grande responsável pela mudança do ambiente político foi o presidente Donald Trump, que fez do Quad o núcleo da política externa norte-americana para a Ásia.

Muralha contra o avanço chinês

Inicialmente reunindo ministros das Relações Exteriores, o Quad, agora na gestão Biden, atinge o nível de conclave de chefes de Estado e de Governo, dando mostra não apenas da continuidade da política norte-americana para a região na passagem do republicano para o democrata, mas também da elevação de importância que o novo governo dos EUA atribui ao grupo.

Oficialmente, o objetivo do grupo é promover a cooperação entre as quatro democracias. Não há como disfarçar, porém, que o objetivo central é construir uma barreira para impedir a progressão da China. Trata-se, portanto, de uma aliança antichinesa. Mesmo que Joe Biden relute em admitir, as digitais deixadas por Donald Trump e por Mike Pompeo não permitem outra interpretação. Os tópicos considerados fundamentais para o grupo reforçam a ideia que motiva a formação do grupo: defesa de um Indo-Pacífico livre e aberto; liberdade de navegação; apoio à Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN); cooperação no combate à covid-19; contraterrorismo; segurança marítima; ajuda humanitária; mudança climática; segurança cibernética.

China's belligerence and the rise of the quad- The New Indian Express

CONTENÇÃO: EUA, Índia, Japão e Austrália unidos para frear o dragão chinês (Fonte: The Indian Express)

O êxito alcançado pela China National Space Administration (CNSA) na exploração do espaço sideral, definido pelo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, como “arena de competição de grande potência”, e o sucesso obtido no combate à covid-19 aumentaram ainda mais o poder da China, um cenário que tem disparado a preocupação dos componentes do Quad e a necessidade por eles sentida de dar maior organicidade ao grupo.

A pedra de toque desse Quadrilátero estratégico é a Índia. Estados Unidos, Austrália e Japão podem se considerar aliados tradicionais. Como parte do mundo anglo-saxão, Estados Unidos e Austrália são fruto da mesma matriz cultural. Estados Unidos e Japão se tornaram aliados desde a Segunda Guerra Mundial, quando o projeto hegemonista japonês soçobrou em Hiroshima e Nagasaki, havendo o Japão se convertido em uma importante base norte-americana em sua doutrina da contenção, após a proclamação da República Popular da China, em outubro de 1949. Austrália e Japão se acham unidos pelo mesmo compromisso que cada um mantém com os Estados Unidos. Mas a Índia é diferente.

A ambivalente relação entre Índia e China

Logo após ter conquistado sua independência do Império Britânico, a Índia buscou sustentar uma política externa independente, sem se filiar incondicionalmente a qualquer um dos dois blocos de poder. E a paz celebrada com a China, depois de sérios conflitos de fronteiras, ao estabelecer os cinco pontos da coexistência pacífica (Pan Shila) – respeito mútuo pela integridade e soberania territorial um dos outros; não agressão mútua; não interferência mútua nos assuntos internos um dos outros; igualdade e benefício mútuo; coexistência pacífica –, estabeleceu as bases para a Conferência Afro-Asiática de Bandung (1955) e para o Movimento dos Países Não-Alinhados (Belgrado, 1961).

As relações da Índia com a China são muito delicadas. Ambos os Estados são os países mais populosos do mundo e pertencem ao mesmo contexto geográfico. Ao longo do tempo, China e Índia têm alternado períodos de tensão com períodos de paz e de cooperação. A vizinhança da União Soviética, no passado, e a da Rússia, no presente, tem contribuído bastante para essa alternância de humor diplomático. O principal motivo de desencontros é a disputa pelo Tibete. O mais recente episódio desse drama foi o registro de atritos militares em torno do Lago Pangong, um lago de água salgada situado a 4.250 metros de altitude, no alto dos Himalaias, no meio do qual passa o traçado da fronteira que separa os dois países e onde também se situa o Tibete, motivo de incansável disputa.

An Indian Army soldier stands in front of a group of People's Liberation Army soldiers after participating in a joint anti-terrorism drill on Nov. 25, 2016.

Soldado indiano na frente de um grupo de soldados do Exército de Libertação Popular, depois de um exercício conjunto antiterrorismo, em 25 nov.  2016.  (Crédito: Indranil Mukherjee/AFP via Getty Images)

Índia e China também foram importantes parceiros na construção do BRICS, junto com Brasil, Rússia e África do Sul. Mas essa parceria foi-se esgarçando, quando da chegada dos nacionalistas de Narendra Modi à frente do governo do país. A partir de então, de 2014, as relações foram progressivamente se tornando mais difíceis, até alcançar o estado de azedume em que se encontram hoje. As ótimas relações da China com o Paquistão, objeto de permanente irritação dos indianos, e a crescente ocupação marítima chinesa do Oceano Índico são razões, pelas quais a Índia busca encontrar aliados que sirvam de contrapeso a esse robustecimento do poder chinês.

Os indianos têm sabido explorar com muita sagacidade essa sua posição no tabuleiro político asiático. Em 2005/2008, George W. Bush e Manmohan Singh assinaram e ratificaram o Pacto Nuclear, pelo qual indianos e norte-americanos se comprometeram a cooperar no âmbito do desenvolvimento da energia nuclear, em uma evidente conquista diplomática indiana, ao livrar a Índia das pressões pela não proliferação de armas nucleares.

Joe Biden não hesitou em seguir a picada aberta por Donald Trump ao procurar fortalecer o Quad. A chave de seu sucesso para conter a irresistível expansão da China no mar e também no espaço é convencer a Índia a manter sua linha política de questionamento dos objetivos chineses para a região. Resta saber, no entanto, o que Biden está disposto a oferecer aos indianos para fortalecer o Quad, e enfraquecer ainda mais o tão debilitado BRICS. É muito difícil prever. Sejam as forças de centro, sejam as forças à direita, o fato indiscutível é que os indianos, quando seus interesses nacionais estão em jogo, são negociadores muito competentes. Eles têm muito a ensinar.

 

* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN).

** Recebido em 13 mar. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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