Questões politicamente interessadas sobre China, América Latina e EUA
Crédito: André Chiavassa/TBR
Por Sebastião Velasco e Cruz*
1. Permitam-me começar com um truísmo. Diminutas há pouco mais de duas décadas, as relações econômicas, financeiras e políticas com a China cumprem um papel decisivo no presente da América Latina e no processo de construção de seu futuro. Válida em termos gerais, essa afirmativa se aplica de maneira variada e com peso desigual segundo o país considerado.
2. O Brasil (como o restante da América Latina) foi fortemente golpeado pela pandemia da covid-19, e seu impacto econômico não foi ainda mais destrutivo, devido ao efeito do auxílio emergencial e à forte demanda chinesa, que alimentou as exportações brasileiras. A pandemia externou também um lado inquietante da relação que o Brasil mantém com a China – mas não apenas ele (!): a extrema dependência da importação de insumos farmacêuticos para garantir a provisão de vacinas indispensáveis à superação da crise sanitária.
3. Não se trata de um caso isolado. Mesmo no auge do ciclo de crescimento interrompido pela crise global de 2008, observadores críticos chamavam a atenção para o que parecia a seus olhos ser uma tendência preocupante de desindustrialização e re-primarização da economia brasileira. Divergências entre os especialistas à parte, na primeira metade da década seguinte a intensificação da crise na Europa e a desaceleração do crescimento na China produziram dois efeitos nefastos para as economias da América Latina: o fim do boom de commodities e a ociosidade industrial, que provoca o endurecimento da concorrência internacional, particularmente brutal nos segmentos de médio-intensivo em tecnologia.
Desde então, a economia brasileira ingressou em verdadeiro inferno astral, como resultado das opções de política econômica adotadas e da evolução mesma da crise política. Nesse ínterim, a tendência à desindustrialização se acentuou fortemente. E assistimos então a um processo de realimentação, por meio do qual o dinamismo econômico maior do agronegócio se traduz em incrementos de poder político, a tal ponto que vozes autorizadas passam a defender a ideia vetusta de que o Brasil deveria explorar sabiamente suas vantagens comparativas e se dedicar à agricultura e ao extrativismo. Nesse contexto, o relacionamento com a China, com o padrão que o caracteriza hoje, torna-se eminentemente ambivalente: vital para a manutenção do ritmo de atividade econômica, mas, ao mesmo tempo, uma armadilha que nos condena, como nacionalidade, a um futuro de pobreza, desigualdade e sujeição.
4. O aumento da presença chinesa na América Latina é resultante de seu impressionante ciclo de crescimento, mas também das características estruturais de sua economia, com destaque para sua forte dependência da importação de recursos naturais e de bens primários.
5. Mas as implicações dela são fortemente condicionadas pela posição da China no sistema internacional. Ao contrário das outras duas grandes potências econômicas que a precederam – a Alemanha Ocidental e o Japão –, a China não integra a “comunidade de segurança” estruturada e dirigida pelos Estados Unidos desde os primórdios da Guerra Fria. E não só isso: embora tenha ingressado na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, sob os auspícios dos Estados Unidos, seja qual for o conceito empregado na definição de sua organização socioeconômica (socialismo, capitalismo de Estado, ou outro qualquer), a China se acomoda mal no figurino da “economia livre de mercado” que informa ordem capitalista neoliberal implantada em escala planetária depois do fim da Guerra Fria. Apesar de todo esforço em contrário de seus dirigentes (“peaceful rising strategy”), a conjugação desses três atributos confere ao crescimento explosivo da China um nítido conteúdo geopolítico.
5.1. Expressões desse fato são, de um lado, a resistência chinesa em se fiar nas “soluções de mercado” para assegurar a provisão regular e crescente de bens demandados por sua economia, e, de outro, os constantes atritos com os Estados Unidos, que há muito denunciam a China por roubo de propriedade intelectual e manipulação cambial, entre outras críticas.
5.2. Por muito tempo, esses atritos foram atenuados pela prevalência de uma abordagem integracionista na política chinesa dos Estados Unidos (engagement approach: a ideia de que a integração na ordem econômica neoliberal levaria naturalmente à mudança desejada nos padrões de organização econômica e política da China). Já no começo da década passada, a confiança nessa hipótese se enfraquecia. O Pivô asiático da secretária de Estado Hillary Clinton (2010) e, logo depois, a TPP (Trans-Pacific Partnership) são manifestações claras desse fato. Como se viu no debate político sobre a celebração do referido Tratado nos Estados Unidos, mais importante do que os magros ganhos comerciais prometidos, o que se buscava com ele era o estabelecimento de um conjunto de regras preferenciais de tipo “OMC plus”, que não deixaria à China outra escolha se não a de se adaptar para se fazer aceita no clube.
5.3. Durante o governo Trump assistimos a uma mudança assumida de enfoque – e não apenas de sua equipe. A China passa a ser definida como “competidora estratégica”, e se torna alvo de uma política de contenção e de reversão agressiva. Pari passu, a presença chinesa na América Latina – tida até então como inofensiva, ou mesmo benéfica – passa a ser percebida como uma ameaça, e assim é tratada na Estratégia de Segurança Nacional (NSS) de 2017 e em inúmeros documentos de política que se seguiram.
6. A mudança política que se opera no subcontinente na segunda metade da década passada não é estranha a esse movimento. Ela se manifestou em inúmeros países, mas o palco privilegiado do embate – onde fatores “internos” e “externos” iam sempre de mãos dadas – foi o Brasil. Com efeito, o golpe do impeachment foi um veto a muitas coisas, mas entre elas – e não em último lugar – ao projeto de integração regional patrocinado por nossa diplomacia e, de maneira mais geral, à pretensão de situar o Brasil como ator relevante no grande jogo da política mundial.
7. Colocar esse fato no centro da reflexão é preciso, porque ele atravessa, por todos os lados, o espaço das questões que nos interessam. Com efeito, considerada abstratamente, a situação de competição estratégica entre grandes potências não se nos afiguraria desfavorável. Se elas disputam entre si, nosso cacife aumenta. Sabemos que a realidade é mais complexa, porque a rivalidade entre as grandes potências pode (tende a) produzir respostas diferentes nos Estados da região – que buscávamos integrar. Mas a hipótese fica mais abalada ainda quando abandonamos o suposto tácito de que cada Estado reage em bloco aos estímulos provenientes do ambiente internacional. Quando percebemos que não é assim, e que não apenas nos inserimos no mundo, mas comportamos o mundo em nós, entendemos facilmente que, além de contribuir para a fragmentação regional, a dita rivalidade pode ter efeitos politicamente desagregadores em cada país.
8. Perguntas politicamente interessadas. Antes de passarmos à formulação delas convém indicar a direção de tal interesse. A América Latina é historicamente uma das regiões mais desiguais do mundo – e o Brasil está entre os primeiros nessa desgraçada competição. Além disso, padece de fraco desempenho econômico e vê agora reforçados os vínculos de dependência que sempre marcaram sua condição no mundo. O interesse político que informa as perguntas que fazemos sobre a relação entre a China e a América Latina nasce da confluência dessas três observações e se desagrega em três imperativos: emancipação social; autonomia nacional e prosperidade econômica. Cientes das diferenças de tempo político entre os países da região, damos como certo que a promoção de tal interesse se realizará plenamente apenas como parte de um processo compartilhado de emancipação.
9. A questão de fundo, portanto, é esta: em que medida, e de que modo, o relacionamento com a China pode afetar positiva, ou negativamente, tal processo.
10. Obviamente, não há uma única resposta a essa pergunta. O significado econômico e político da relação com a China varia de acordo com as características e circunstâncias de cada país. Mas a questão geral pode ser decomposta em perguntas mais específicas, algumas delas dissociadas das particularidades de cada país.
11. Nesse sentido, as perguntas a serem feitas estariam distribuídas em três grupos.
O primeiro deles teria por foco a China, propriamente dita, e sua inserção no mundo. Questões relativas às suas condições econômicas, sociais e políticas; sobre suas políticas de desenvolvimento e de segurança e defesa; sobre suas relações com seu entorno imediato – ênfase aqui no relacionamento com o Japão, as duas Coreias, a Índia e o Paquistão; relação China-União Europeia, e sua aliança com a Rússia. Permeando todos esses itens, a rivalidade hegemônica entre China e Estados Unidos.
O segundo teria como foco as relações entre China e América Latina. Qual o lugar da América Latina na grande estratégia chinesa? Como avaliar as iniciativas de alcance regional da China? Como a política chinesa é vista por analistas e governos da região?
O terceiro grupo estaria dirigido a diferentes países latino-americanos. Evolução e padrão atual das relações econômicas com a China; seu peso relativo, seu enquadramento institucional (p. ex., o Chile tem um tratado de livre-comércio com a China desde 2006, ao passo que o Paraguai, embora seja grande exportador de soja para a China, não mantém relações diplomáticas com ela, por reconhecer Taiwan como país independente); a qualidade do relacionamento estabelecido com a China pelos diferentes governos; e o posicionamento das forças políticas relevantes em relação à presença chinesa.
As perguntas decisivas surgem no cruzamento dos dois últimos grupos, e podem se sintetizar em duas grandes questões: em que medida a China pode contribuir para fortalecer governos e movimentos interessados na defesa e no aprofundamento da democracia na América Latina? Em que medida pode contribuir para a concretização de projetos de desenvolvimento voltados para a superação do quadro de pobreza e de desigualdade recorrente na região?
Não são esses, obviamente, os objetivos que animam os chineses. O modo como suas políticas vão-se relacionar com eles vai depender das condições vigentes em cada país e da ação, mais ou menos informada, mais ou menos inteligente, das forças políticas comprometidas com esses fins no continente.
* Sebastião Velasco e Cruz é professor Titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp e do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais, UNESP/UNICAMP/PUC-SP. Diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).
** Publicado originalmente no site da Carta Maior, em 28 fev. 2021. A presente versão sofreu pequenos ajustes na forma, como no título, passando a incluir a palavra “EUA”, sem qualquer alteração em seu conteúdo. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.