O bombardeio do dia 25
Soldado norte-americano no norte da Síria, em 13 fev. 2020 (Crédito: )
Por Williams Gonçalves*
Bastou pouco mais de um mês para o presidente Joe Biden mostrar ao mundo a nova política dos Estados Unidos para o Oriente Médio. Donald Trump buscou realizar a promessa de campanha de reverter todas as decisões que haviam sido tomadas por seu antecessor Barack Obama, por considerá-las em desacordo com os interesses nacionais do país. Em virtude do ataque realizado pelas forças militares norte-americanas contra infraestruturas usadas pelas milícias pró-iranianas situadas no nordeste da Síria, no último dia 25 de fevereiro, que resultou em 17 mortos, tem-se a indicação de que o presidente Biden procederá da mesma forma que seu antecessor, desfazendo sua política para aquela região.
O ataque contra o grupo Hachd al-Chaabi (Unidades de Mobilização Popular), uma coalizão paramilitar de milícias de maioria xiitas formadas em 2014, por ocasião da guerra civil iraquiana, acontece depois de o governo Biden anunciar que deverá se reinserir no Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, em inglês). O acordo, assinado em 2015 por Irã, China, Rússia, Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido e União Europeia, do qual Donald Trump retirou os Estados Unidos em 2018, tem por finalidade controlar o programa nuclear iraniano, de molde a impedir que esse país consiga fabricar armas nucleares e, assim, induzir o Irã a usar o programa exclusivamente com fins pacíficos.
ALVO: Mapa da região, com foco em Al-Bukamal, na Síria (Fonte)
Trump havia retirado os Estados Unidos do acordo não apenas por ele ter sido assinado por Barack Obama, o que para ele já teria sido motivo mais que suficiente, mas também por outras duas razões, por ele consideradas igualmente importantes. Uma razão foi sua aversão ao multilateralismo. Em seu entendimento, os interesses nacionais norte-americanos poderiam ser convenientemente defendidos apenas em relações bilaterais, uma vez que o multilateralismo historicamente favoreceu terceiros em detrimento dos próprios Estados Unidos. A outra razão foi sua política para com Israel. Por isso, a decisão de se retirar do acordo mereceu reconhecidos aplausos de Benjamin Netanyahu, que sempre se posicionou contrário ao pacto por considerar que não livrava Israel da ameaça nuclear iraniana.
Em substituição à política cooperativa iniciada por Obama, Trump iniciou a política denominada “pressão máxima”, que consistiu em uma escalada de sanções econômicas visando a estrangular a economia iraniana e, por esse meio, estimular a derrubada da República Islâmica.
Todos os demais signatários do acordo consideraram que a saída dos Estados Unidos o debilitava muito, pois, afinal, nenhuma outra grande potência tinha o mesmo grau de envolvimento que os Estados Unidos naquele imbróglio regional. O impacto causado pela retirada norte-americana foi de tal proporção, que encorajou forças israelenses a praticarem dois assassinatos de importantes personagens iranianos vinculados ao programa nuclear: o general Qassem Soleimani, em janeiro de 2020; e o cientista nuclear Mohsen Fakhrizadeh, em novembro do mesmo ano. O Irã, por sua vez, também não perdeu a oportunidade de acelerar seu programa, tanto em função da virtual suspensão do acordo, como para contra-arrestar as pressões exercidas pelos Estados Unidos e por Israel.
Dilemas de Biden
Em vista desse quadro político, ainda é muito cedo para compreender a política do presidente Biden para a região. Obviamente, a situação política não é mais a mesma de quando Obama terminou seu mandato. Muitas coisas aconteceram, alterando os dados do problema. Além disso, são muitos os atores relevantes a participar do processo. Apesar de os especialistas em economia do petróleo avaliarem que aquela região não tem mais a importância que desfrutou no passado como fornecedora da commodity estratégica para os Estados Unidos, há outras implicações que não podem ser desconsideradas pelos formuladores de política externa do país, como é o caso da exportação de armas e a sempre incômoda presença de russos e chineses como potências interessadas.
Além dessas razões, há ainda outra questão tão ou mais importante que essas já apontadas. Trata-se da relação com Israel. A aliança com Israel cerceia a liberdade de ação dos Estados Unidos em suas relações com os demais atores. A liberdade de movimento dos Estados Unidos vai até onde os israelenses consideram lesivo aos seus interesses nacionais. E como essa aliança encontra respaldo muito sólido internamente, que abrange os partidos Democrata e Republicano, os formuladores de política se veem em face de sérios dilemas, como aquele que Biden parece que terá de enfrentar.
DEFESA: Presidente Joe Biden, no Pentágono, em 10 fev. 2021, em Washington, D.C. (Crédito: Patrick Semansky/AP)
A diplomacia de Joe Biden para a região poderá e deverá se renovar, porém sempre se colocando de maneira ambígua, tentando conciliar posições muito diferentes e até mesmo antagônicas, como parece ser o caso da relação com a Arábia Saudita. Nesse caso específico, atuará para afastar aqueles interlocutores que causam grande desconforto, como é o caso do príncipe saudita Mohamed bin Salman, acusado de envolvimento no caso do jornalista opositor do regime Jamal Khashoggi, assassinado nas dependências do consulado saudita em Istambul. Afastará da interlocução, como já se deu no contato que Biden teve com o rei Salman bin Abdulaziz, mas não romperá com Riad, pois os sauditas fazem frente com Israel contra o xiismo e são insaciáveis compradores de armas das indústrias norte-americanas.
Levar os sauditas a entender que o príncipe Mohamed bin Salman se tornou personagem tóxica e, portanto, inconveniente no diálogo dos dois Estados, deverá ser a forma intermediária para agradar simultaneamente aos vendedores de armas e aos defensores dos direitos humanos, com os quais Biden está comprometido.
Daí que, isso posto, bombardeios como esse certamente voltarão a acontecer. O projeto hegemonista o obriga.
* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN).
** Recebido em 26 fev. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.