Administração Biden e a crise orgânica da ordem liberal
Crédito da ilustração: Nate Kitch, Politico
Por Leonardo Ramos e Filipe Mendonça*
Segundo Robert W. Cox, em seu artigo “Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory”, de 1981, o termo “ordem mundial” se refere a uma “configuração particular de poder material e ideacional” que se relaciona com alguma imagem coletiva prevalente e que inclui um conjunto de normas em “instituições que administram a ordem com uma certa aparência de universalidade”. Nesses termos, a ordem liberal internacional, majoritariamente ocidental, configura-se como um arranjo institucional que se legitima a partir de certas ideias e normas que surgiu e tem sido alimentado desde o final da Segunda Guerra Mundial. E, como afirma John Ikenberry no texto “The Illusion of Geopolitics: The Enduring Power of the Liberal Order”, publicado em 2014 na revista Foreign Affairs, os Estados Unidos, com o apoio da Europa Ocidental, dedicaram energia e esforços descomunais “para construir um amplo sistema de instituições multilaterais, alianças, acordos comerciais e parcerias políticas”.
Na mesma linha, no artigo “Let’s Talk about the Interregnum: Gramsci and the Crisis of the Liberal World Order” (2020), Milan Babic aponta que a ordem liberal internacional é expressa em cinco aspectos principais: abertura econômica, relações internacionais baseadas em regras, cooperação em temas de segurança, abertura para reformas e solidariedade centrada em um modelo desejável de democracia liberal. Expandindo a concepção coxiana acima citada, a arquitetura da ordem atual traz consequências materiais, ideológicas e normativas – sob a forma de instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o Conselho de Segurança da ONU (UNSC) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Desde a crise financeira de 2007-2008, inúmeras turbulências sucessivas atingiram os pilares desta ordem liberal internacional. A ascensão de governos de extrema-direita, com destaque para Donald Trump nos Estados Unidos, desafiou as normas internacionais pós-Segunda Guerra Mundial, a liberalização econômica e comercial, além de testar os limites da cooperação internacional no sistema financeiro internacional. Na mesma linha, as reverberações da crise da Crimeia mostraram que a cooperação internacional em segurança atingiu certos limites já em 2014, como aponta Kees van der Pijl em trabalhos de 2017 e de 2018.
PRESSÃO: A chanceler alemã, Angela Merkel, delibera com o então presidente Donald Trump no 2º dia da cúpula do G-7, em 9 jun. 2018, em Charlevoix, Canadá (Crédito: Jesco Denzel/Bundesregierung via Getty Images)
Mas não só: a posição irreversível dos Estados Unidos em relação às reformas do FMI e do Banco Mundial, bem como a imobilidade do Conselho de Segurança, deixam evidentes a ausência de abertura, por parte dos arquitetos desta ordem liberal, em qualquer discussão sobre reformas. Some-se a isso a ascensão de uma extrema-direita com vocação autocrática, juntamente com a crescente importância de países não ocidentais (como China e Rússia), e nos deparamos com as fraturas expostas desta ordem liberal, enfraquecendo o mantra que tornava a democracia liberal exemplo desejável e inquestionável de governança.
Em sua essência, entendemos que a crise da ordem liberal internacional é reflexo das limitações enfrentadas pelos EUA na reprodução de sua hegemonia globalmente – em particular por meio de instituições internacionais. Como arquiteto-chefe da ordem liberal, os Estados Unidos não foram capazes de eliminar seus principais pontos de tensão. Em vez disso, o trumpismo, em certo sentido, afastou os Estados Unidos deste tipo de ordenamento liberal. Trump foi além e cruzou algumas linhas, ao criticar as instituições multilaterais, abandonar alianças históricas, questionar acordos comerciais e não apoiar totalmente a democracia liberal, interna e externamente.
Esta oscilação representada pelo trumpismo levou o sistema a um cenário de crise de autoridade. Dito de outro modo, o trumpismo ajudou a criar um vácuo que não pôde ser capturado pela velha estrutura de ordenação e pelos antigos atores que representam essa ordem liberal internacional.
Do lado econômico, os principais motores da crise são as mudanças estruturais e os desdobramentos de longo prazo da economia global, bem como a maneira pela qual a hegemonia estadunidense se projeta sobre ela. Do lado político, dois componentes estão em jogo: em primeiro lugar, a crise se manifesta em nível estatal, na dinâmica entre os desenvolvimentos nacionais e a esfera internacional; em segundo lugar, a crise se manifesta também nas mudanças sociais internas que solapam o apoio doméstico à ordem internacional liberal. Em termos gramscianos, tal situação nos leva à ideia de crise orgânica.
Crise orgânica e os sintomas mórbidos
As crises orgânicas são rupturas que acontecem entre a estrutura e a superestrutura, determinada pelo surgimento de contradições que se manifestam quando a superestrutura não se desenvolve conforme a estrutura. Isso acaba por desafiar os próprios fundamentos sobre os quais as ordens sociais são construídas. Estas crises produzem “sintomas mórbidos” que, no curto prazo, perturbam a vida política e econômica cotidiana e, no longo prazo, destroem velhas ordens sociais e relações de poder. Em outras palavras, lembra-nos Gramsci, em Selections from the Prison Notebooks (International Publishers, 1971), uma crise orgânica apresenta características de uma crise de hegemonia.
Em uma crise orgânica, o momento econômico é crucial, pois é a base da ruptura entre estrutura e superestrutura. No entanto, seria um erro associar a crise orgânica apenas ao seu momento econômico, pois movimentos conjunturais também são essenciais. A resposta política aos desafios da crise estabelece parâmetros importantes para entender seu desdobramento e as possibilidades de resolver, ou de acomodar, algumas de suas contradições. Nesse sentido, qualquer análise de conjuntura exige a compreensão de como as forças sociais mobilizam as possibilidades políticas durante a crise. Em suma, Babic afirma que o que diferencia uma crise orgânica de uma mera turbulência conjuntural é que, enquanto a primeira apresenta uma intersecção de crises nos níveis internacional (ou transnacional) e nacional, a segunda (crise conjuntural, ou contextual) afeta apenas um desses dois níveis.
A divisão nacional-internacional constitui um aspecto fundamental da crise orgânica. Assistimos, portanto, à perda de legitimidade da ordem internacional liberal, e seus mantenedores (gatekeeper, ou Estados centrais) não oferecem uma solução. Pelo contrário, estes gatekeepers se distanciam dos elementos centrais desta ordem. Este parece ser um contexto favorável para a crescente legitimação de ações, com impacto global, tomadas por Estados não liberais. Isso já estava claro na crise financeira de 2007-2008 e se intensificou após o surgimento da pandemia da covid-19.
Enquanto este processo se desdobra, outros processos globais acontecem simultaneamente, como o movimento da China para uma posição mais central na hierarquia global. A intersecção de crises que se impõe se configura, nesta conjuntura, como uma fase distinta de instabilidade e incerteza, ou seja, uma “tempestade perfeita”.
Tempestade perfeita: hegemonia dos EUA e administração Biden
Quatro anos de Donald Trump prejudicaram a credibilidade e a liderança dos Estados Unidos em todo mundo. A política America First de Trump e o abandono das instituições multilaterais enfraqueceram a liderança estadunidense na ordem internacional liberal, bem como encorajaram os desafiadores mais poderosos dessa ordem, como a Rússia e a China. Diante disso, a analogia da tempestade perfeita parece apropriada.
TEMPESTADE PERFEITA: Trump em Jacksonville, Flórida, em set. 2020 (Crédito: Tom Brenner/Reuters)
Crédito da ilustração: Aïda Amer/Axios
Não será tarefa fácil. O poder global da China é uma realidade, e sua economia, fortemente integrada internacionalmente. Como afirma Martin Wolf, “o mercado chinês exerce uma atração magnética sobre uma série de países em todo mundo. [A] maioria dos países deseja boas relações tanto com os Estados Unidos quanto com a China. Eles não escolherão de bom grado os Estados Unidos em vez da China”.
As contradições atuais entre estrutura e superestrutura apresentam sérios limites à liderança dos Estados Unidos. Se a crise financeira de 2007-2008 pode ser vista como o ápice dos processos orgânicos que, naquela época, atingiram o epicentro do capitalismo, o governo Trump e a atual pandemia da covid-19 se combinaram em uma “tempestade perfeita”, reunindo aspectos orgânicos e conjunturais que corroem ainda mais a ordem liberal internacional e, portanto, a hegemonia estadunidense.
Se a administração Biden tiver sucesso em lidar com tais contradições por meio de engajamento ideológico, normas e instituições internacionais, bem como pela força, talvez possa contribuir para reconstruir uma ordem mundial – nem tão ocidental e nem tão liberal, mas mais pluralista com a China sendo um ator crucial.
* Leonardo Ramos é professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor visitante da Universidad Nacional de Rosario (UNR) e pesquisador associado ao Instituto de Estudos da Ásia, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Contato: lcsramos@pucminas.br. Filipe Mendonça é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e um dos fundados do podcast Chutando a Escada. Contato: twitter.com/filipeamendonca. Ambos são pesquisadores do INCT-INEU.
** Recebido em 10 fev. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.