EUA e Zelensky apertam cerco a detratores de Biden e setores pró-russos na Ucrânia
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e a encarregada de negócios dos EUA no país, Kristina Kvien, acompanham cerimônia de posse de Joe Biden no escritório presidencial em Kiev (Crédito: Embaixada dos EUA em Kiev/Facebook)
Por Gustavo Oliveira*
No último dia 11/1, a pouco mais de uma semana do início da administração presidencial de Joe Biden, o governo dos Estados Unidos anunciou a imposição de sanções a indivíduos e instituições componentes do que classificou como uma “rede de influência estrangeira ligada à Rússia” com base na Ucrânia.
As sanções estão relacionadas com as atividades do deputado ucraniano Andrii Derkach, que tinha ligações com o círculo de Donald Trump e vinha acusando Biden e oficiais norte-americanos de interferência política e de envolvimento em corrupção na Ucrânia (tema abordado em texto publicado no OPEU em junho de 2020). O próprio Derkach, classificado pelo governo dos EUA como um agente russo, já estava sob sanções norte-americanas desde setembro de 2020. Na visão dos EUA, as ações deste grupo ligado a Derkach constituíram uma indevida tentativa de interferência na eleição presidencial estadunidense de 2020 para prejudicar Biden com o uso de narrativas falsas.
Entre os nomes incluídos na nova rodada de sanções, chamou bastante atenção na Ucrânia o do deputado Oleksandr Dubinsky. Isto porque Dubinsky era um conhecido membro da bancada parlamentar do Servo do Povo (SN), que constitui a base de apoio partidária ao presidente pró-ocidental Volodymyr Zelensky. O canal de Dubinsky no YouTube, que tinha mais de 300 mil assinantes, foi deletado pela plataforma norte-americana. Zelensky, por sua vez, solicitou a saída de Dubinsky da bancada do SN, decisão tomada pelo partido em 1º/2. Na mídia ucraniana, houve especulações de que a saída de Dubinsky se deu sob influência norte-americana, havendo relatos de visitas de deputados do SN à embaixada dos EUA em Kiev para discutir o assunto.
Dubinsky é visto na Ucrânia como parte de um grupo de parlamentares que defende interesses do controverso magnata Ihor Kolomoisky. Acredita-se que o bilionário Kolomoisky tenha-se ligado a esforços por narrativas prejudiciais a Biden com vistas a se aproximar do círculo de Trump e dele obter favores, como o auxílio judicial nos EUA, onde Kolomoisky enfrenta acusações de lavagem de dinheiro.
Em dez. 2019, Oleksandr Dubinsky (à dir.) se reúne na Ucrânia com Rudy Giuliani, advogado pessoal e próximo colaborador de Trump envolvido nas tentativas de descrédito de Biden (Crédito: Dubinsky.pro Facebook)
Uma nova sinergia entre Washington e Kiev
A expulsão de Dubinsky da bancada do SN ilustrou uma aparente sinergia entre Zelensky e o novo governo norte-americano que também pôde ser observada em outros episódios recentes. No final de janeiro, por exemplo, o governo da Ucrânia impôs sanções a investidores chineses interessados no controle acionário de uma fabricante ucraniana de motores de aviões e helicópteros. Duas semanas antes do anúncio desta medida, o governo norte-americano havia incluído em sua lista de sanções uma das empresas chinesas interessadas na transação, alegando que esta companhia, com atividades na indústria militar, representa uma ameaça à segurança dos EUA.
As medidas mais chamativas do governo ucraniano, contudo, ocorreram em fevereiro. Em 2/2, o presidente decretou sanções ao empresário ucraniano Taras Kozak, deputado pelo partido Plataforma de Oposição – Pela Vida (OPZZh), e a conhecidos canais televisivos sob sua propriedade (o 112, o NewsOne e o ZIK), que tiveram bloqueadas suas capacidades de transmissão pelos próximos cinco anos.
O OPZZh faz oposição a Zelensky e é atualmente o principal partido pró-russo na Ucrânia. Pesquisas de opinião têm indicado o crescimento da popularidade do OPZZh, a ponto de o partido ter encostado no SN, ou mesmo atingido o maior percentual de intenção de votos no país. Já os canais em questão, que vinham frequentemente fazendo cobertura crítica sobre o governo, são conhecidos como “megafones” de um dos líderes do OPZZh, o também deputado e empresário Viktor Medvedchuk. Bem mais famoso que Kozak, o controverso Medvedchuk possui fortes laços políticos e pessoais com Vladimir Putin e é a principal figura do campo pró-russo na política ucraniana. Classificado pelos EUA como um proxy de Putin, Medvedchuk está sob sanções norte-americanas desde 2014 e tem-se notabilizado por criticar a interferência dos EUA na Ucrânia.
Putin recebe Viktor Medvedchuk na residência presidencial de Novo-Ogariovo, nos arredores de Moscou, em out. 2020 (Crédito: Presidente da Rússia/Kremlin.ru)
Ao justificar sua decisão, Zelensky mencionou o combate à “propaganda financiada pelo país agressor”. Trata-se de uma referência à Rússia, com quem a Ucrânia tem disputas territoriais e políticas. O governo ucraniano ainda não publicou detalhes, mas Zelensky deu a entender que os atingidos pelas sanções conduziam negócios em territórios fora do controle do Estado ucraniano.
A versão principal que circulou na mídia ucraniana, em diversas variantes, foi a de que os canais, aos quais comumente se atribui a difusão de “narrativas favoráveis à Rússia”, seriam parcialmente financiados com recursos de uma empresa ligada a Kozak e Medvedchuk envolvida no comércio de carvão proveniente de áreas controladas por separatistas apoiados pela Rússia. Conforme esta versão, autoridades ucranianas suspeitam de que tal rede econômica, ilegal pela legislação do país, estaria contribuindo, via pagamento de tributos, para as atividades da secessionista e pró-russa República Popular de Luhansk, que controla parte do território da província de Luhansk, localizada no leste da Ucrânia.
O bloqueio aos “canais de Medvedchuk” (que, por ora, continuam transmitindo pelo YouTube) causou grande agitação na Ucrânia. Enquanto parte da sociedade, em especial setores pró-russos, considerou a medida ilegal e a viu como um ataque à democracia e à liberdade de expressão, outra fração, frequentemente de inclinações pró-ocidentais, aplaudiu as sanções com base em argumentos como os expostos por Zelensky. Pesquisas de opinião indicaram significativas divisões sobre o tema na sociedade ucraniana, havendo alta rejeição ao bloqueio dos canais no leste e no sul do país, principais redutos políticos do OPZZh.
O governo dos EUA também tomou posição nesta polêmica. Falando em combate à “influência maligna da Rússia”, a embaixada norte-americana em Kiev endossou a medida de Zelensky. Coincidência ou não, o decreto do presidente foi publicado justamente após o primeiro contato telefônico entre os chefes das diplomacias ucraniana e estadunidense, realizado também no dia 2/2. Conforme Serhii Leshchenko, um famoso jornalista ucraniano, o contato era condicionado pelos EUA à expulsão de Dubinsky da bancada do SN.
Mensagem da embaixada dos EUA em Kiev em apoio às sanções do governo ucraniano aos ‘canais de Medvedchuk’ (Crédito: Embaixada dos EUA em Kiev/Twitter)
Segundo o governo ucraniano, o ministro das Relações Exteriores do país, Dmytro Kuleba, e o secretário de Estado da administração Biden, Antony Blinken, discutiram, entre outros assuntos, esforços conjuntos contra “ameaças híbridas e a desinformação”. Medvedchuk acusou os EUA de envolvimento na decisão sobre as sanções adotadas por Zelensky. A embaixada norte-americana negou, porém, que os EUA tenham dado instruções, ou recomendações, ao governo ucraniano sobre o fechamento dos canais.
O governo ucraniano não parou por aí. Em 16/2, o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) acusou Anatolii Sharii, um famoso blogueiro opositor de Zelensky que também lidera um partido político, de traição nacional. Conforme o SBU, Sharii teria auxiliado estruturas estatais e não-governamentais russas em operações informacionais. Em seguida, o governo ucraniano impôs sanções ao próprio Medvedchuk e a sua esposa, acusados de “financiamento do terrorismo” (referência às atividades dos separatistas pró-russos no discurso oficial ucraniano). Como no caso dos canais televisivos, a embaixada dos EUA apoiou publicamente as sanções a Medvedchuk.
Do lado norte-americano, esta sinergia ilustra os caminhos que a administração Biden tem declarado seguir na política externa, que se anuncia como mais assertiva frente à Rússia. Em seu discurso sobre política externa realizado em 4/2, por exemplo, Biden ressaltou que sua diplomacia, apesar de aberta ao diálogo em áreas de interesse dos EUA, não seria conivente com “ações agressivas” da Rússia – diferenciando-se, portanto, do que ocorria, na visão do atual presidente norte-americano, durante o mandato de Trump. Em seu discurso na prestigiada Conferência de Segurança de Munique, Biden afirmou que, diante do percebido desafio russo à “unidade transatlântica”, a defesa da soberania e da integridade territorial da Ucrânia seria uma questão de interesse vital para os EUA e seus aliados europeus.
Zelensky, por sua vez, parece se motivar por circunstâncias desfavoráveis na política doméstica. Apesar de permanecer o político com o maior percentual de intenção de votos entre possíveis presidenciáveis, seu índice, assim como o do SN, tem apresentado evidente tendência de queda. Ao mesmo tempo, tem crescido o percentual de cidadãos favoráveis a eleições antecipadas e às renúncias do presidente e do gabinete de ministros.
A queda da popularidade de Zelensky e do SN pode ser atribuída a diversos fatores, como o estimado decréscimo de em torno de 7% da economia em 2020 em meio à pandemia da covid-19. Pesquisas de opinião também indicaram alta insatisfação com a atuação das lideranças do país na gestão da crise sanitária.
Já o início de 2021 foi marcado por dois eventos polêmicos. Um aumento de preços para bens como o gás gerou protestos pelo país, provocando intervenção do governo para o controle de tarifas. Além disso, entrou em vigor em janeiro controversa legislação que promove o uso da língua ucraniana no setor de comércio e serviços. Uma pesquisa indicou que a medida possui apoio majoritário em nível nacional, mas as novas regras encontraram alta rejeição no leste e no sul da Ucrânia, onde o uso da língua russa é mais comum. Entre os fatores que podem ter contribuído para o desgaste de Zelensky, pode-se mencionar, ainda, a continuidade da influência dos chamados oligarcas na política ucraniana e a percepção de ausência de progresso significativo no combate à corrupção. Por fim, houve pouco (ou nenhum) avanço no sentido da resolução do conflito armado no país e da reintegração dos territórios separatistas.
A princípio, as eleições presidencial e parlamentar ainda estão distantes no calendário político ucraniano (devem acontecer em 2024 e 2023, respectivamente), e ainda não se sabe ao certo se o próprio Zelensky concorrerá a um novo mandato. Ainda assim, estas tendências no cenário político ucraniano trazem alertas para Zelensky sobre a governabilidade no país. Nesse sentido, dado o alto grau de influência que os EUA atingiram na Ucrânia desde 2014, o apoio do governo norte-americano pode ser um importante elemento de sustentação para o presidente.
Além da construção do perfil de Zelensky perante os EUA como um determinado oponente de setores pró-russos e da influência de Moscou, a racionalidade das ações do governo ucraniano certamente tem em vista, também, a demarcação de posição frente a concorrentes de Zelensky no campo pró-ocidental que têm reivindicado a posição de verdadeiros seguidores do Ocidente e oponentes da Rússia. Tal é o caso, por exemplo, do ex-presidente e atual deputado Petro Poroshenko, cujo partido, o Solidariedade Europeia, também tem competido pela liderança de preferências do eleitorado ucraniano.
Ação, reação e os efeitos para a política ucraniana
As ações de Zelensky e dos EUA suscitaram reações dentro e fora da Ucrânia. Kozak e Medvedchuk negaram as acusações do governo ucraniano, enquanto que o OPZZh lançou uma iniciativa de impeachment de Zelensky. Tendo em vista fatores como a configuração de forças no parlamento ucraniano, as chances de sucesso de um impeachment são praticamente nulas, embora uma ação neste sentido possa alcançar certo efeito propagandístico. Medvedchuk também anunciou planos para contestar as medidas do governo ucraniano junto à corte suprema do país e a espaços internacionais como a Corte Europeia de Direitos Humanos.
Como de se esperar, posicionamentos como os do OPZZh e de setores pró-russos na Ucrânia foram ecoados pelo governo russo. Em um momento no qual os EUA (e países europeus) criticam fortemente a Rússia pela prisão do opositor de Putin, Aleksei Navalny, e pela repressão aos protestos que se seguiram a este acontecimento, Vladimir Putin afirmou que o bloqueio aos canais ucranianos demonstrou a prevalência de interesses geopolíticos em detrimento da liberdade de expressão, questionando, portanto, as credenciais pró-democracia reivindicadas pelos EUA e pela Ucrânia. É possível que esta retórica se desdobre em outras ações com impactos sobre as já complicadas relações entre Rússia e Ucrânia.
Dentro da Ucrânia, as ações do governo local e dos EUA, bem como as reações que se seguiram, devem alimentar discursos antagônicos sobre uma “quinta coluna” a serviço do Kremlin, de um lado, e sobre uma Ucrânia submetida à “administração externa” dos EUA, do outro. Desse modo, polarizações na política ucraniana podem se intensificar sob efeito do entrelaçamento dos interesses de atores locais com os das grandes potências.
* Gustavo Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP). Contato: gustavo.ot.menezes@unesp.br.