Antony Blinken e a velha diplomacia para um mundo novo
O secretário de Estado indicado, Antony Blinken, tira sua máscara após ser apresentado pelo presidente eleito, Joe Biden, em 24 nov. 2020, em Wilmington, Delaware (Crédito: Mark Makela/Getty Images)
Por Solange Reis*
O Senado dos Estados Unidos confirmou a nomeação de Antony Blinken para o cargo de secretário de Estado. A votação ocorreu no dia 26 e teve respaldo bipartidário. Do total de 100 senadores, 78 aprovaram sua indicação para chefiar o Departamento de Estado. Os 22 votos contrários vieram todos do Partido Republicano.
Tony Blinken, como costuma ser chamado, foi uma figura constante e relevante em outros governos democratas. E também no Senado, onde atuou como diretor do influente Comitê de Relações Externas (2002-2006). Sua carreira inclui postos diplomáticos na gestão Clinton e alguns cargos de alto escalão na administração Obama. Entre eles, o de vice-assistente do presidente, vice-conselheiro de Segurança Nacional e, por fim, vice-secretário de Estado.
Blinken é muito ligado a Joe Biden, tendo sido seu conselheiro para assuntos de segurança nacional durante a campanha de 2008 e ocupado a mesma função na vice-presidência de democrata. A direção da diplomacia nacional e a proximidade junto ao presidente o tornam, hoje, uma das pessoas mais poderosas no mundo.
Falcão wilsoniano
Em circunstâncias tradicionais, de dominância mundial inconteste dos Estados Unidos, o estilo de Blinken tenderia a ser o de um internacionalista liberal. De acordo com essa visão, a guerra é o grande entrave ao desenvolvimento das nações. Todos os países, independentemente de sua cultural política e social, devem se orientar pelos princípios de democracia, comércio e normas. Para que o conflito seja eliminado, ou bastante reduzido, os governos precisam adotar o multilateralismo e aderir às organizações internacionais.
Um dos problemas dessa perspectiva é que as regras de cooperação são determinadas pelas potências principais, não raramente priorizando seus interesses próprios. O desequilíbrio de capacidades e poder que existe nesses fóruns internacionais faz com que as resoluções surtam efeitos diferentes para os países. Algumas vezes, potencializam problemas econômicos em sociedades mais desiguais. Quando esses efeitos negativos provocam instabilidade social e política, abre-se espaço para interferências externas, que podem ir desde a influência na política nacional até a ação militar. Outra vezes, o intervencionismo liberal é feito por razões geopolíticas ou, até mesmo, interesses corporativos. Dessa forma, tem início um ciclo autossustentável de intromissão dos países ricos nos demais.
Às vezes, para convencer os países de que este é o melhor modelo de convivência global, os internacionalistas liberais recorrem à mesma guerra que dizem querer eliminar. Blinken, por exemplo, participou ativamente dos planos do Senado para a invasão do Iraque em 2003. Como membro do governo Obama, desenhou, por um lado, várias das desastrosas políticas no Afeganistão e no Oriente Médio.
Por outro, teve um papel importante nas negociações para o acordo sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla em inglês), do qual Trump posteriormente retirou os Estados Unidos. Em relação ao JCPOA, que foi um dos grandes trunfos do período Obama, Blinken agora mostra ceticismo. Em seu primeiro dia no novo cargo, disse que “há uma longa estrada pela frente” quanto a retomar o compromisso. A estrada em questão é a inconformidade do Irã e a necessidade de incluir novas “questões problemáticas“. Depois de voltar a sofrer sanções econômicas em decorrência da saída unilateral dos Estados Unidos e de ter seu principal general assassinado premeditadamente pelo governo americano, o Irã retomou algumas etapas do processo de enriquecimento de urânio.
Blinken é, portanto, alguém a quem se poderia chamar de falcão wilsoniano, ou seja, que não reluta em recorrer à guerra, ou à política dura, para avançar os valores liberais. Faz parte da chamada Blob (Bolha), a máquina de política externa bipartidária que predominou após o fim da Guerra Fria.
Domínio em xeque
Mas os tempos atuais não são de domínio incontestável dos Estados Unidos. Ainda que o poder absoluto do país seja indiscutivelmente superior ao de seus pares, sobretudo quanto à força militar e monetária, é preciso relativizá-lo face à igualmente indubitável potência chinesa. Esse fato posiciona a dupla Blinken-Biden em um cenário acidentado.
Um aspecto desafiador do contexto atual é a crescente indisposição dos tradicionais aliados para antagonizar com a China. E se existe um fundamento crucial no liberalismo internacional é a incondicionalidade das alianças. Foi com a garantia de sua existência que os Estados Unidos puderam desenhar o mundo pós-1945. Sem isso, a história mundial estará em outro ponto de seu curso.
Outro desafio para o novo governo é a situação interna dos Estados Unidos. Parte da explicação para a eleição de Donald Trump, em 2016, e do fortalecimento da extrema direita no nível individual, coletivo e, consequentemente, legislativo, é o declínio econômico de setores produtivos e trabalhadores. A insatisfação resultante é facilmente traduzida em um sentimento de nacionalismo que o atual governo não poderá ignorar. Não se quiser manter o mínimo de apoio para suas políticas mais urgentes e as eleições de 2022 e 2024. A prova de que tal percepção nacionalista será levada em consideração são as referências feitas por Biden e sua equipe a respeito de uma política externa para a classe média.
A volta da diplomacia
Ainda que seja cedo para saber qual será sua linha de atuação, é possível obter alguns indicativos, com base em seu depoimento ao Senado. O diplomata mencionou alguns objetivos principais, sendo o primeiro a recomposição qualitativa e quantitativa do quadro de funcionários do Departamento de Estado, que foi parcialmente esvaziado por Trump. Também será dada ênfase à diversidade de gênero, raça e etnia na contratação. Com isso, pretende-se agradar à base de eleitores cosmopolitas do Partido Democrata.
Outra meta é revitalizar a diplomacia juntamente com os parceiros externos, embora o diplomata não tenha especificado quais. Segundo Blinken, os Estados Unidos participarão sempre dos assuntos mundiais onde seja necessário. “Nós nos envolveremos com o mundo, não como ele era, mas como está”, disse no depoimento. Para o agora secretário, o mundo referido é marcado por crescente nacionalismo, rivalidade com China e Rússia, Estados autoritários, ameaças ao sistema internacional liberal e revolução tecnológica.
Os EUA não estão sozinhos (Crédito: Liu Rui/Global Times)
Segundo ele, os Estados Unidos enfrentarão todos esses desafios com humildade, mas sem abrir mão da liderança, pois ela é indispensável para evitar o mergulho no caos. Ou, pior ainda, que o mundo seja organizado por outra potência que não defenda “nossos” interesses e valores.
O tom em relação à China é ligeiramente mais leve do que o usado por seu antecessor, Mike Pompeo, que hoje está proibido de entrar em território chinês. Blinken chega a mencionar que há espaço para cooperação, mas reafirma que a China é o maior desafio que os Estados Unidos encontram atualmente.
Afinidades arranhadas
Sem mencionar os parceiros transatlânticos – que parecem ter sido colocados na geladeira após concluírem um acordo de investimentos com a China em dezembro –, Blinken reconhece que os Estados Unidos não resolverão os problemas do mundo sozinhos. Mesmo porque, continuou o diplomata, a maioria das questões mundiais não diz respeito aos Estados Unidos, ainda que os afete.
Biden assume a Casa Branca no momento em que as relações com os europeus estão frias. Uma pesquisa do think tank European Council on Foreign Relations identificou grande descrédito da população europeia quanto à capacidade de os Estados Unidos retomarem a liderança global. Acima de tudo, os europeus pensam que o sistema político americano está falido e propício ao surgimento de outro Trump.
A Alemanha é vista pela população europeia como o principal parceiro, em uma prova de que a história dá muitas voltas. Os entrevistados também acreditam que, dentro de uma década, a China superará os Estados Unidos como potência, e seus respectivos países deveriam ser neutros diante de um eventual conflito China-EUA. A mesma neutralidade é defendida se o conflito em questão for entre Moscou e Washington.
Quanto à defesa europeia, os entrevistados preferem que a União Europeia busque autonomia e não dependa mais do guarda-chuva americano. Esses são sinais a serem considerados pelos governos europeus e as instituições do bloco ao formular políticas externas nos próximos quatro anos.
Permissão para intervir
A terceira promessa de Blinken é restaurar o papel do Congresso na política externa. Para ele, o Legislativo representa a voz do povo e deve consentir sobre política externa, um direito que foi violado e diminuído em gestões anteriores de ambos os partidos.
O diplomata sabe do que está falando. Afinal, ele ocupava o cargo de conselheiro de Segurança Nacional do vice-presidente Biden quando Obama bombardeou as forças de Muammar al-Gaddafi na Líbia, em 2011. A justificativa legal para o governo não ter pedido autorização do Congresso, conforme determina a Resolução Poderes de Guerra (War Powers Resolution), foi a de que campanha aérea seria limitada, e as tropas americanas em solo não corriam perigo.
Interior do consulado americano na cidade líbia de Benghazi, em 13 set. 2012, após ataque que resultou na morte do então embaixador dos EUA na Líbia, Chris Stevens, e de outros três concidadãos (Crédito: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages)
A queda de Gaddafi levou à guerra civil na Líbia, uma situação que perdura, com efeitos locais violentos e imigração descontrolada para a Europa. No ano seguinte, um ataque terrorista matou o embaixador americano na Líbia e outro funcionário do governo dos Estados Unidos. O caso revelou uma falha na segurança em decorrência de negligência por parte da então secretária de Estado, Hillary Clinton. Durante a campanha eleitoral dela contra Trump, em 2016, o tema voltou a assombrar o Partido Democrata.
A tática de Blinken, de adular o Congresso agora, é para frear a tendência isolacionista de alguns blocos, atrair o apoio dos falcões democratas e republicanos, e reduzir o espaço da esquerda não intervencionista. Com uma maioria apertada na Câmara e um empate no Senado, ainda que o voto minerva caiba à vice-presidente Kamala Harris, um pouco de bajulação aos congressistas não fará mal. Nunca se sabe quando será necessário fazer uma guerra para levar a democracia, o liberalismo e os direitos humanos a alguma outra parte do mundo.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.
** Recebido em 31 jan. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.