Hegemonia em risco: a China no relatório secreto do governo Trump
/Reuters)
Por Mateus de Paula Narciso Rocha*
No último dia 12 de janeiro, o governo Trump desclassificou um relatório secreto sobre sua política para a Ásia de fundamental importância para se compreender a política da Casa Branca para a China. Esse documento, o “U.S. Strategic Framework for the Indo-Pacific” (Estrutura Estratégica dos EUA para o Indo-Pacífico), foi finalizado em fevereiro de 2018 e, em curso normal, seria publicizado somente em 2043. O relatório, de dez páginas, foi divulgado quase por inteiro, tendo poucos trechos suprimidos. A elaboração foi realizada por H.R. McMaster, então conselheiro de Segurança Nacional, e Matthew Pottinger, então diretor para a Ásia do Conselho de Segurança Nacional.
Segundo Robert O’Brien – atual responsável por este órgão –, essa divulgação seria um sinal da transparência e do compromisso dos Estados Unidos com a liberdade e com a abertura da região Indo-Pacífico. Tendo em vista os debates historiográficos, as razões oficiais para a desclassificação devem ser vistas com ceticismo; e, pelos assuntos sensíveis, trata-se de decisão que somente um governo “pato manco” (lame-duck) poderia tomar. De todo modo, o documento merece ser avaliado.
China como desafio à primazia dos EUA
Ainda que o título do relatório faça referência a uma região, o documento propugna, sobretudo, uma estratégia para combater o fortalecimento da China. A estratégia é, portanto, direcionada contra a China, e a região é o palco onde as principais ações acontecem. Nesse sentido, diversos países têm relevância apenas indireta; não são citados como importantes em si mesmos, mas como contrapesos à China – sinal de que, na ausência da ascensão chinesa, o interesse dos EUA neles seria diminuto.
Na seção inicial, intitulada “Desafios à Segurança Nacional”, três desafios são mencionados. A China é discutida logo no primeiro, o qual é iniciado com a questão sobre “Como manter a primazia estratégica dos Estados Unidos na região Indo-Pacífico […]”. Questão respondida, no mesmo trecho, com a prescrição: os EUA devem atuar para “impedir” a expansão da influência antiliberal da China.
O diagnóstico tácito da “hegemonia ameaçada” – a ideia de que hegemonia dos Estados Unidos na Ásia estaria ameaçada pela China – perpassa todo relatório, sendo afirmado que um futuro ideal é aquele, no qual “os Estados Unidos mantêm sua preeminência militar, econômica e diplomática na região que mais cresce no planeta”. A discussão das “Premissas sobre o Futuro” segue no mesmo sentido e é particularmente interessante. Entre outros pontos, é afirmado que os EUA trabalham com a ideia de que:
- A competição estratégica entre China e Estados Unidos irá permanecer;
- No curto prazo, a China continuará a expandir sua influência econômica, militar e diplomática;
- A eventual perda da proeminência dos Estados Unidos na região asiática enfraqueceria a capacidade americana de defender seus interesses globais;
- A balança asiática de poder está mudando e gerando mais competição de segurança e investimentos de defesa;
- O domínio chinês de tecnologias avançadas geraria profundos desafios às sociedades livres.
INFLUÊNCIA MILITAR: China tem o maior Exército do mundo, com mais de dois milhões de militares na ativa (Crédito: Reuters)
China como ameaça multidimensional
O relatório também discute, em seções separadas, os objetivos e as linhas de ação para cada região, sendo a China o único país abordado em uma seção individual. Os objetivos dos EUA com relação à China são, em ordem de aparição, os seguintes:
- Prevenir as políticas industriais e as práticas comerciais injustas da China de distorcerem os mercados globais e prejudicarem a competitividade dos EUA;
- Construir um consenso internacional de que essas práticas danificam o sistema de comércio global;
- Manter a vantagem inovadora industrial americana perante a China;
- Promover os valores americanos pela região para manter a influência e contrabalançar os modelos chineses de governo;
- Impedir a China de usar a força militar contra os Estados Unidos, seus aliados e parceiros, assim como desenvolver capacidades e conceitos para derrotar as ações chinesas pelo espectro do conflito;
- Aumentar a participação dos EUA na região Indo-Pacífico e educar governos, empresas, universidades, imigrantes chineses, canais de notícias e cidadãos em geral sobre o comportamento coercitivo da China e suas operações de influência;
- Cooperar com a China quando isso for benéfico para os Estados Unidos;
- Manter a vantagem de Inteligência dos EUA perante a China.
Nessa seção, observa-se a grande preocupação com a dimensão econômica e tecnológica da ascensão chinesa, em particular com as políticas industriais e comerciais da China; dimensão que é a primeira a ser discutida na “seção China” do documento e que compreende três dos oito objetivos. Além disso, essa é a única dimensão, conforme os trechos públicos, que faz referência a outro documento: o relatório secreto “U.S. Strategic Framework for Countering China’s Economic Aggression”, o qual não foi desclassificado.
Isso indica que o fortalecimento econômico/tecnológico da China é percebido como o processo mais ameaçador à primazia dos Estados Unidos – diagnóstico que está em conformidade com as principais ações do governo Trump na política para a China e com as mudanças na dinâmica de poder estrutural observadas em nossa pesquisa anterior. Nesse sentido, o documento propugna o endurecimento da regulação sobre o investimento chinês nos Estados Unidos – responsabilidade do CFIUS –, medida que, de fato, foi implementada e gerou uma redução assimétrica nos fluxos de investimento entre os dois países.
Fortalecimento econômico/tecnológico da China é visto como elemento mais ameaçador para os EUA (Crédito: Romsvetnik/Shutterstock)
Quatro contrapesos à China e a defesa de Taiwan
A China surge, portanto, como uma ameaça grave e multidimensional que precisa ser combatida em diversas arenas, do comércio à cultura. A forma de responder a essa ameaça, não se afasta, porém, de ideias lançadas por outros governos, tendo muita similaridade com conceitos e ideias lançados no governo de George W. Bush. O próprio conceito de “Indo-Pacífico” da administração Trump é uma materialização tardia de ideias lançadas pelos “assessores vulcões” de W. Bush que outrora defendiam superar o conceito de “Leste da Ásia” e inserir a Índia no processo de balanço da China.
No mesmo sentido, a ideia de que Índia, Austrália e Japão são um contrapeso fundamental à China remonta à agenda Andrew Marshall elaborada no final dos anos 1990. Esses países – que associados aos Estados Unidos formariam os Quatro, ou “Quad” – são apresentados no relatório como cruciais na defesa da ordem americana e, assim, a Casa Branca deveria construir uma “estrutura quadrilateral de segurança” com eles. A coordenação de segurança entre esses países foi uma iniciativa lançada no governo de George W. Bush, a qual, reavivada recentemente, a China denuncia como uma tentativa de criar uma mini-Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para contê-la.
‘QUAD’ (da esq. para dir.): o agora ex-presidente dos EUA Donald Trump; premiê japonês, Shinzo Abe; australiano, Malcolm Turnbull; e indiano, Narendra Modi (Crédito: Montagem, FT; Fotos, AFP/Getty Images)
De fato, do ponto de vista geopolítico, esses países compõem um cerco “oeste, sul, leste”, o qual propicia projetar poder nas rotas marítimas cruciais para a economia chinesa e a capacidade estratégica do país – em vista das grandes quantidades de petróleo que a China importa pelo mar. Além disso, esse cerco diverte a atenção e os recursos escassos chineses para múltiplas frentes de preocupação, extenuando e dissuadindo Pequim. Outrora, um processo de cerco foi implementado pelos Estados Unidos contra a União Soviética na Guerra Fria com a busca de alianças no Oeste (Europa Ocidental), Sul, (Irã/Afeganistão) e Leste (China), de modo a pressionar o Estado-alvo (União Soviética).
Do ponto de vista econômico, porém, o entendimento dos Estados Unidos é “trabalhar com Japão e Índia para financiar projetos de conectividade regional” – trecho que pode ser interpretado como o interesse em criar alternativas ao projeto chinês da “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative). A Austrália, portanto, parece ser um parceiro importante para o enfrentamento geopolítico à China, mas não necessariamente na contraposição econômica às iniciativas chinesas.
Outra ideia aventada pelo governo Bush – em particular na Revisão Quadrienal de Defesa de 2001 –, e não discutida explicitamente em documentos estratégicos desde então, é o tema sensível da “defesa de Taiwan” em um eventual ataque da China. No documento desclassificado, é afirmado que os EUA devem criar uma estratégia de defesa para dissuadir, ou derrotar, a China e que essa estratégia deve buscar: “negar o domínio aéreo e naval da China na primeira cadeia de ilhas em um conflito; defender as nações da primeira cadeia de ilhas, incluindo Taiwan; e dominar todos os domínios fora da primeira cadeia de ilhas”.
Ofensiva crônica
Os elementos mencionados não esgotam a importância do relatório, o qual será dissecado pelos analistas da política externa dos Estados Unidos. Nesse sentido, outro ponto digno de nota é que, após reafirmar o interesse dos Estados Unidos em acelerar a ascensão de Nova Délhi, esse é o primeiro documento público desde o acordo civil nuclear americano-indiano de 2006 que coloca a Índia explicitamente como um contrapeso à ascensão da China – uma ideia geralmente descartada dos pronunciamentos diplomáticos.
Trata-se de documento muito significativo, porquanto, entre outros pontos, é recente; apresenta um nível de detalhamento estratégico raro vis-à-vis documentos como a Estratégia de Segurança Nacional (NSS); está em consonância com a NSS 2017; e, ademais, antecipou diversas ações do governo Trump. Nesse sentido, observa-se que a Guerra Comercial contra a China foi lançada no mês seguinte ao término do relatório e que começaram, no mesmo ano, a campanha diplomática contra a Huawei no 5G e o endurecimento do CFIUS contra o investimento chinês. Destarte, o documento ajuda a evidenciar que a Guerra Comercial contra a China deve ser avaliada mais em termos político-estratégicos do que em um debate essencialmente econômico. Ela é menos uma política irracional de Trump do que um elemento na agenda estratégica de enfrentamento à China, a qual, com forte enraizamento burocrático no Pentágono e no Representante Comercial (USTR), busca impor custos e desacelerar o fortalecimento relativo chinês.
O documento revela, portanto, que, a despeito da retórica hiperbólica e inconstante de Trump, existe uma agenda estratégica forte de enfrentamento à China, a qual, em contraposição ao senso comum, não nasceu no governo Trump e não termina com ele, visto que as propostas de Biden para a China são muito similares àquelas deste relatório. Como explicitamente apresenta o relatório, trata-se de uma agenda spykmaniana de defesa da hegemonia dos Estados Unidos na Ásia e no mundo. Defesa que – conforme as ideações dos assessores vulcões e de geopolíticos clássicos – é mais bem implementada pelo ataque antecipado, isto é, a antecipação do enfrentamento de modo a impedir que, com o tempo favorável, o rival reúna forças para uma batalha mais equilibrada no porvir. Em uma imagem, é, mutatis mutandis, a estratégia do titã Cronos para não ser destronado.
* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia e doutorando em Ciências Sociais (Linha: Relações Internacionais e Desenvolvimento) na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Marília). É pesquisador do INCT-INEU e desenvolve estudos sobre a política exterior dos Estados Unidos para a China. Contato: mateusdepaula@outlook.com
* Recebido em 18 jan. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.