Política Doméstica

Terrorismo doméstico nos EUA, uma história repleta de racismo

 (Crédito: Victor J. Blue/The New York Times)

Por Isabelle C. Somma de Castro*

O ataque ao prédio do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, chocou o mundo em pelo menos dois aspectos. O primeiro deles foi a incomum investida de uma multidão a um prédio federal nos Estados Unidos, especialmente na capital do país e em um local que carrega tanto simbolismo. O segundo aspecto foi a falta de contenção da multidão, que se destacava pela predominância de homens e mulheres brancos nas imagens exibidas.

A comparação entre o contingente policial presente no Capitólio e em grande parte dos protestos pacíficos organizados meses antes por integrantes e simpatizantes do Black Lives Matter deixa claro o tratamento diferenciado conferido à turba trumpista. Os movimentos antirracistas e antifascistas, muitas vezes chamados de terroristas por Donald Trump, também foram tratados com pouca delicadeza pela polícia. Os invasores do Capitólio, por sua vez, foram incentivados pelo agora ex-presidente, promoveram atos violentos, encurralaram policiais e chegaram a provocar a morte de um deles.

Muitos questionaram se não seria o caso de enquadrá-los como terroristas. A definição de terrorismo mesmo nos dicionários e meios acadêmicos é controversa e, em geral, carrega vieses. Não há um consenso nem no governo federal. Para o FBI (a Polícia Federal americana), por exemplo, a interpretação é ampla, dividida entre terrorismo doméstico e internacional. O primeiro tipo é definido como: “atos criminais e violentos cometidos por indivíduos e/ou grupos para promover objetivos ideológicos provenientes de influências domésticas, tais como de natureza política, religiosa, social, racial, ou ambiental”.

A principal diferença conferida pelo FBI em relação ao terrorismo internacional é sua ligação com movimentos exógenos. Mas ela vai além. O Departamento de Estado publica anualmente uma lista de grupos internacionais considerados terroristas, que são mais de 60. Em contraste, não há uma lista de grupos nacionais. Tanto o Departamento de Justiça como o FBI apontam a existência de “ameaças” terroristas, mas não enquadram os grupos como terroristas.

A reação às imagens do ataque ao Capitólio mostra que a determinação do que é terrorismo passa menos pela definição per se do que por outros três aspectos: o racial; o espectro político ao qual o grupo está ligado; e a disposição dos detentores do status quo, representantes dos órgãos de aplicação da lei, para enquadrá-los.

Um exemplo claro é a lista de procurados pelo FBI por envolvimento com terrorismo doméstico observada em 18 de janeiro. Dentre os 12 perfis, apenas um era branco do sexo masculino; os demais são negros, latinos e mulheres brancas e negras. Essa ausência de homens brancos é de causar espanto, especialmente por se tratar de um país conhecido pela atuação de grupos racistas como a Klu Klux Klan (KKK) e que foi palco de um atentado cometido por um ex-membro branco das Forças Armadas na cidade de Oklahoma, em 1995. Neste ataque, morreram pelo menos 168 pessoas. A ação foi considerada o maior atentado terrorista doméstico da história do país e o maior em solo americano, até ser superado pelo 11 de Setembro.

No artigo “Terrorism and the American Experience”, a historiadora Beverly Gage aponta essa contradição, ao afirmar que “americanos brancos nascidos no país que cometem atos de violência política são frequentemente tratados como indivíduos desorientados”. A organização Klan, por exemplo, provocou mais mortes e terror do que outros grupos que foram associados a atos terroristas. De acordo com a Equal Justice Initiative, 4.084 linchamentos de afro-americanos ocorreram em 12 estados do Sul dos EUA entre 1877 e 1950. Mais 300 mortes semelhantes foram registradas em outros estados do país.

Provocar medo é um dos objetivos de terroristas, segundo as definições clássicas. Os linchamentos dos supremacistas brancos também eram uma forma de aterrorizar e segregar a população negra sulista. A escritora Maya Angelou descreveu em seu livro mais famoso, o autobiográfico Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, um episódio em que seu irmão demorou a voltar para casa. Ela e sua avó temeram por sua vida por causa das frequentes ações da Klan na década de 1930 em estados do Sul como o Arkansas, onde viviam. Apesar disso, como aponta Gage, organizações como estas continuaram a causar pouca preocupação entre as autoridades e raramente foram identificadas como uma variante de terrorismo.

Longa história

A história do terrorismo nos Estados Unidos é mais antiga do que a fundação do país. Remonta à ocupação pelos colonos que, com “atos violentos e criminais”, expulsaram e provocaram a morte de milhares de nativos americanos. Em geral, porém, os trabalhos sobre o terrorismo nos EUA discutem eventos a partir do final no século XIX. Em um dos artigos precursores sobre o assunto, “Terrorism and Revolution in America”, publicado em 1979 no livro Violence in America, Ted Robert Gurr e Bowyer Bell argumentam que atos terroristas eram comumente utilizados pelos próprios defensores do status quo. Em especial, seguranças de empresas e de grandes corporações que tentavam evitar greves e protestos promovidos por movimentos de trabalhadores.

Em artigo posterior, “Some Characteristics of Political Terrorism in the 1960s”, Gurr chama de “terrorismo vigilante” a ação de extremistas de direita, movimentos radicais cristãos e supremacistas brancos, como a Klan. O autor congrega os demais na categoria de “terrorismo insurgente”. Entre eles, estariam os ativistas negros, os nacionalistas porto-riquenhos e revolucionários. Estes últimos seriam a antítese dos “vigilantes” por buscarem a mudança política mediante ameaças e ações contra o governo, indo, portanto, contra o status quo.

Ao longo da história do século XX, o terrorismo identificado à direita do espectro político suplantou a violência dos demais grupos. Contraditoriamente, não foi o mais perseguido. Os anti-status quo foram os mais atacados pelo governo, começando por Richard Nixon. Até os dias de hoje, na lista de procurados do FBI por promoverem ações de terrorismo doméstico, destacam-se ativistas que atuaram nas décadas de 1960 e 1970, especialmente membros do Weather Undergound, fundado na Universidade de Michigan por estudantes contrários à Guerra no Vietnã. O grupo, que chegou a ser chamado de terrorista por integrantes do FBI, promoveu um ataque a bomba contra o Capitólio em março de 1971. Ao contrário da investida deste ano que resultou em cinco vítimas fatais, naquela ocasião não houve nenhuma morte na ação, que era um protesto contra a invasão americana do Laos.

Na década de 1980, o perfil dos ataques mais comuns voltou a pender para a extrema direita, prevalecendo a atuação de grupos militantes cristãos. Entre 1985 e 1994, triplicou o número episódios envolvendo bombas no país. Apesar disso, a polícia em geral tratou como crimes comuns, e não como terrorismo. Na década de 1980, houve pelo menos 40 ataques a bomba contra clínicas de aborto em vários estados do país. Nos anos 1990, os ataques passaram a ser contra profissionais que trabalham nessas clínicas, resultando em vítimas fatais e não fatais.

Em outro extremo, houve uma série de ações de militantes ambientais e pelos direitos dos animais. Ambos foram especialmente perseguidos não pelo número de mortes que provocaram, mas pelo prejuízo econômico que causaram. Calcula-se que, nas décadas de 1990 e 2000, esses grupos promoveram na Costa Oeste dos EUA a destruição de fazendas, equipamentos industriais e de laboratórios no valor de US$ 48 milhões. Dos 11 presos relacionados a esses crimes, somente um não era branco. Sete foram indiciados como terroristas, e a maior pena entre todos os condenados foi de 13 anos de prisão.

Extremismo recente

American ZealotsEspecialistas apontam que, após a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro da história do país, recrudesceram os crimes de ódio. Houve uma descentralização dos grupos de extrema direita, maior radicalização de indivíduos, especialmente neonazistas, e um aumento de ataques contra grupos étnicos e religiosos minoritários. Entre os últimos ataques do tipo praticados por atiradores estão: o do templo sikh de Wisconsin (Minnesota), em que sete fiéis foram assassinados em agosto de 2012; o de uma igreja episcopal em Charleston (Carolina do Sul), que resultou na morte de nove afro-americanos; o da sinagoga de Pittsburgh (Pensilvânia), cujo saldo foi de 11 mortos, em outubro de 2018; e o do Wall Mart de El Paso (Texas), que vitimou 23 pessoas, a maioria de origem hispânica, em agosto de 2019.

Cada caso é tratado de forma diferente pelas autoridades. De acordo com um relatório divulgado pelo Congressional Research Service em 2017, isso se dá em decorrência de três fatores. O primeiro é que cada agência usa uma terminologia diferente para tratar as mesmas ameaças. Da mesma forma, o governo federal não possui uma metodologia oficial para lidar com o assunto, principalmente para designar grupos como sendo terroristas. E, por último, não há dados oficiais disponíveis de quantos complôs e ataques caracterizados como terrorismo doméstico foram investigados nos últimos anos.

A solução seria, portanto, alterar a legislação? Parece que a melhor resposta é não. Manar Waheed, do American Civil Liberties Union, lembra que há 50 crimes federais relacionados a terrorismo doméstico, o que inclui até artigos sobre crimes que ainda não foram cometidos. O sistema legal é amplo, mas não tem sido usado nem para punir, nem para coibir crimes praticados por supremacistas brancos. Por isso, o ativista argumenta que é necessário investigar os motivos pelos quais isso acontece. Uma “nova guerra ao terror”, desta vez no âmbito doméstico, tende a impulsionar mais a prática de censura e a vigilância por parte do Estado. Nesse âmbito, encontra-se a extensão aos cidadãos americanos de medidas bastante controversas que já são aplicáveis a estrangeiros – o que não deixaria de ser irônico.

A mudança na legislação também não atacaria outro problema central: o racismo e a adesão a discursos supremacistas de membros das forças de segurança do país. O próprio FBI apontou o problema em relatório de 2006. Pesquisas de opinião mais recentes indicam a persistência do problema. Segundo uma enquete realizada em 2017 pelo Pew Research, 92% dos policiais brancos entrevistados consideravam que todas as reformas necessárias haviam sido feitas para igualar os direitos dos afro-americanos. Entre os oficiais negros, esse número caiu para 29%, enquanto entre a população média geral o índice foi de 57%. No mínimo, os resultados demonstram uma percepção bastante particular do primeiro grupo.

O racismo entre policiais foi motivo de preocupação até na cerimônia de posse de Joe Biden no último 20 de janeiro. Antes do evento, 12 policiais da Guarda Nacional foram afastados do cerco de segurança montado na capital do país por terem demonstrado comportamento “questionável”. Pelo menos dois deles mantinham ligações com milícias de extrema direita.

 

* Isabelle C. Somma de Castro é bolsista Fapesp de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Visiting Scholar 2018-2019 no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, com bolsa Fapesp. Contato: isasomma@hotmail.com.

** Recebido em 21 jan. 2021. Este trabalho não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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