Os sentidos de 1776
Proud Boys (de touca laranja), QAnon (ao fundo) e outros supremacistas brancos seguidores de Trump invadem o Capitólio, 6 jan. 2021, em Washington, D.C. (Crédito: Jon Cherry/Getty Images)
Por Flávio Limoncic*
Uma das cenas mais emblemáticas do 6 de novembro – um dia marcado pela infâmia, para lembrar Franklin D. Roosevelt – foi a de um trumpista marchando contra o Capitólio aos gritos de “1776”. Estaria ele invocando o direito à insurreição, inscrito na Declaração de Independência dos Estados Unidos, de modo justificar a derrubada de um sistema político tão tirânico quanto o britânico?
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Para evitar o despotismo inglês, a Constituição criou um governo baseado no federalismo e na divisão dos poderes. No entanto, os homens reunidos em 1787 na Filadélfia, ainda que leitores de Locke, Montesquieu e Hobbes, não viviam apenas no mundo das ideias. Pelo contrário. Eram representantes de interesses sociais e econômicos bastante concretos. Por isso, a Constituição não criou uma democracia, mas uma república que, embora revolucionária em muitos aspectos, assumiu compromissos voltados para a preservação dos recursos de poder dos escravistas e dos estados menos populosos.
‘Scene at the Signing of the Constitution of the United States’ (1940), por Howard Chandler Christy
O Compromisso de Connecticut atribuiu dois senadores a todos os estados, favorecendo os de menor população. Na Câmara, cada estado teria direito a um número de deputados federais proporcional à sua população, incluindo os escravizados em uma proporção de 3 para 5 pessoas livres. Em outras palavras, de modo a ampliar a representação dos interesses escravistas, os escravizados contavam para o cálculo do número de deputados de cada estado, embora não tivessem direito sequer a seus próprios corpos. O Colégio Eleitoral viria a coroar a obra: para sua formação, cada estado indicaria um número de Delegados igual à soma de seus deputados e senadores. Em 1790, as 140 mil pessoas livres de New Hampshire eram representadas por 4 deputados, ao passo que as 140 mil pessoas livres da Carolina do Sul o eram por 6, graças aos 100 mil escravizados do estado. Resultado: em 32 dos 36 primeiros anos da República, o presidente seria um senhor de escravos, incluindo George Washington, Thomas Jefferson e James Madison.
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Das 27 Emendas à Constituição, 20 buscam democratizá-la, como as 10 primeiras, de 1791, conhecidas como Carta de Direitos, e as Emendas da Reconstrução (13a., 14a. e 15a., ratificadas entre 1865 e 1870, abolindo a escravidão, instituindo uma cidadania nacional e a igual proteção da lei e afirmando que o direito de voto não pode ser negado em razão de raça, cor, ou condição prévia de cativeiro).
Salvo o fim da escravidão, as Emendas da Reconstrução não se traduziram em direitos imediatos para os ex-escravizados. De modo a reproduzir a sociedade do Velho Sul sem a instituição da escravidão, os estados sulistas implementaram o chamado sistema Jim Crow de segregação racial, que, com base na 14a. Emenda, foi declarado constitucional pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1896. Os mesmos estados contornaram a 15a. Emenda, criando obstáculos ao voto dos afro-americanos mediante testes de alfabetização e barreiras censitárias. Somente em 1954, após muito derramamento de sangue afro-americano, a Suprema Corte, com base na mesma 14a. Emenda, declarou a segregação inconstitucional e, somente em 1964, quase 100 anos após a 15a. Emenda, a 24a. Emenda eliminou definitivamente barreiras de renda ao voto.
No entanto, o texto constitucional ainda contém elementos antidemocráticos, como as distorções do Colégio Eleitoral oriundas da soma de deputados federais e senadores como fórmula de obtenção do número de Delegados por estado. Montana, por exemplo, tem um deputado federal correspondente à sua população de um milhão de habitantes, mas triplica seu peso no Colégio Eleitoral, graças à adição dos dois Delegados correspondentes aos senadores. Em média, os habitantes dos dez estados menos populosos têm um peso 2,5 vezes maior no Colégio Eleitoral do que os habitantes dos 10 estados mais populosos.
O problema se aprofunda, porque a Constituição atribui aos estados a forma de indicação dos Delegados. Para aumentar seu peso relativo nas eleições presidenciais, 48 estados escolhem os Delegados pelo voto popular em listas fechadas por meio do sistema “o vencedor leva tudo”, ou seja, somente os Delegados da lista mais votada representam o estado no Colégio Eleitoral. O resultado é o aumento da distorção. Em 1984, Ronald Reagan recebeu 54,4 milhões de votos populares contra 37,5 milhões de Walter Mondale, mas venceu no Colégio Eleitoral por 525 a 13, dado que Mondale teve mais votos populares apenas em Minnesota e Washington, D.C.
Reagan (à esq.) e o democrata Walter Mondale, em debate televisionado da campanha presidencial, em Kansas City, Missouri, 22 out. 1984 (Crédito: David Longstreath/AP)
Nos primeiros anos da República, as distorções do Colégio Eleitoral somadas à regra dos 3/5 favoreciam candidatos escravistas. Nas últimas seis eleições, as distorções do Colégio Eleitoral somadas à regra “o vencedor leva tudo” favoreceram os republicanos, tradicionais vencedores nos estados menos populosos das Montanhas Rochosas, do Sudoeste e do Meio-Oeste. Desde 2000, apenas um presidente republicano ganhou o voto popular: George W. Bush, em 2004. Em 2000, o mesmo Bush e, em 2016, Donald Trump, foram eleitos mesmo tendo perdido o voto popular. Trump obteve 0,3% de votos populares a mais do que Hillary Clinton em Michigan; 0,7%, em Winsconsin; e 0,7%, na Pensilvânia. Ficou com os 46 Delegados a que esses estados somados têm direito, vencendo no Colégio Eleitoral por 304 a 227. Dito de outro modo: os 78 mil votos populares obtidos a mais por Trump em três estados (aliados à sobre-representação dos estados menos populosos) valeram mais do que os 2,8 milhões votos populares obtidos a mais por Clinton em todo país.
A abolição do Colégio Eleitoral e/ou alterações nos sistemas eleitorais estaduais, de modo a torná-los mais proporcionais, não foram possíveis até hoje (com as exceções do Maine e Nebraska), pois resultariam em perda de peso político dos estados menos populosos e minariam os recursos eleitorais do Partido Republicano. A fórmula da eleição presidencial americana está, portanto, em aberta contradição com o princípio democrático, segundo o qual todos os cidadãos devem ter o mesmo peso na produção do poder e das políticas públicas que sobre eles incidem e que se traduz em uma fórmula tão simples quanto incontestável: “um cidadão/um voto”.
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A vitória de Joe Biden na Geórgia, em 2020, indica que o Partido Republicano, embora beneficiário do sistema eleitoral, está diante de um desafio. Nos últimos 50 anos, os afro-americanos asseguraram o direito de voto, e a imigração legal, interrompida desde 1924, voltou a ser admitida em 1965. Já a revolução nos transportes e a globalização da economia resultaram no aumento da imigração ilegal. Como a 14a. Emenda afirma que os nascidos nos Estados Unidos são cidadãos americanos, os filhos de imigrantes em condição ilegal têm direito a voto. Projeções do Censo indicam que, em meados do século XXI, afro-americanos e imigrantes e seus descendentes, tradicionais eleitores do Partido Democrata, serão maioria no país, com correspondente aumento do peso político e eleitoral.
Para lidar com a situação, uma ala do Partido Republicano defende a atração do voto afro-americano e de membros das comunidades de imigrantes politicamente mais à direita, enfatizando os valores conservadores do americanismo (em oposição à narrativa cívica liberal dos democratas). Outra ala prefere excluí-los, partindo de uma narrativa nacional centrada na ancestralidade caucasiana. Foi na década de 1970 que, aos tradicionais temas republicanos do mercado e da responsabilidade individual, a Estratégia Sulista de Richard Nixon incorporou ao partido a agenda evangélica branca, o conservadorismo cultural e o discurso da Lei & Ordem. Em 2008, John McCain deu um passo importante nessa direção ao escolher Sarah Palin, do Tea Party, como sua candidata à vice-presidência. Trump foi além e trouxe para o coração do Partido a Klu Klux Klan, os Proud Boys, neonazistas, supremacistas brancos, antissemitas e conspiracionistas de toda a ordem, com destaque para o QAnon, para quem os democratas são membros de uma seita satânica e pedófila.
Os republicanos precisam decidir se querem ser um partido conservador de molde tradicional, capaz de incorporar Condoleezza Rice, Colin Powell, Bobby Jindal e Mark Rubio, ou o partido do “Make America Great Again”, nostalgia de extrema direita pela América de 1776, quando as célebres palavras da Declaração de Independência, “todos os homens nascem livres e iguais e têm direito à busca da felicidade”, referiam-se, única e exclusivamente, aos homens brancos.
Mesmo com as regras do Colégio Eleitoral e do sistema “o vencedor leva tudo”, o universo de eleitores do “Make America Great Again” será crescentemente incapaz de vencer eleições presidenciais. Talvez por isso as recorrentes afirmativas – infundadas – de fraude eleitoral e a tentativa desesperada de virar o resultado das eleições através de demonstrações de força.
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A resposta é não.
O tal militante trumpista não luta contra um sistema político tirânico.
Luta contra os tímidos avanços de um sistema político e de uma sociedade que, aos trancos e barrancos, e com todos os senões, tornaram-se um pouco mais democráticos ao longo dos últimos dois séculos.
* Flávio Limoncic é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e membro da Rede de Estudos dos Estados Unidos. Contato: limoncic@gmail.com.
** Recebido em 13 jan. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.