China e Rússia

UE e China aceleram acordo antes da posse de Biden

Os principais representantes da UE e o presidente chinês, Xi Jinping, concluíram, em 30 dez. 2020, um acordo de investimento empresarial que abrirá grandes oportunidades para as empresas europeias, mas tem o potencial de irritar a nova administração americana (Crédito: AP)

Por Solange Reis*

Joe Biden nem assumiu o cargo e já se depara com a ansiedade dos europeus em fechar um acordo de investimentos. O problema, para o democrata, é que o parceiro-alvo dos aliados não são os Estados Unidos, mas a China.

No dia 30 de dezembro, a União Europeia (UE) e a China definiram os termos do Comprehensive Agreement on Investment (CAI), ou Acordo Abrangente sobre Investimento. O instrumento estava em negociação há sete anos, mas esbarrava em entraves de diferentes naturezas, desde as questões relacionadas com proteção de mercado até o sensível tema dos direitos humanos. Nem tudo foi resolvido, mas o suficiente para que se avançasse.

A eleição de Biden foi o “empurrão” que faltava. Se a China precisa exibir sua influência global, a UE deseja mostrar que sua intenção de buscar o caminho da autonomia estratégica não é retórica. O crepúsculo de Donald Trump na presidência deixa, portanto, uma herança ruim para a política externa dos Estados Unidos. Seu maior aliado e seu principal rival se tornam, enfim, parceiros oficiais. Um legado que Biden terá dificuldade de reverter, a despeito do quanto tente refazer as relações transatlânticas sob a velha normalidade.

Bom para europeus

A aproximação entre os dois signatários do CAI há muito demandava um enquadramento legal. Nos últimos 20 anos, os investimentos diretos mútuos somaram 260 bilhões de euros. Como o CAI cobre apenas barreiras não tarifárias e investimentos, não pode ser chamado de acordo comercial no sentido estrito. Mesmo a parte de investimentos obteve uma cobertura menor do que a temática de acesso a mercado, de forma que o acordo é a etapa inicial de um longo processo. A UE, no entanto, considera esse o melhor compromisso já obtido junto à China por um ator internacional.

Trata-se de um rascunho que ainda precisa de ajustes, de aprovação do Parlamento Europeu e da ratificação pelos países do bloco. E, naturalmente, da adoção formal pela China. Algumas arestas terão que ser acertadas antes disso. Entre elas, a alegação europeia de que empresas chinesas exploram o povo uigur, um tema que mobiliza a opinião pública comunitária.

Caso concretizado, o CAI resolverá vários problemas enfrentados pelas empresas europeias no mercado chinês. Um deles é a transferência de tecnologia, que deixa de ser obrigatória. Outro ponto é o fim de barreiras burocráticas, como o teto para investimentos e a exigência de parcerias locais para as joint ventures europeias na China. Os setores de transporte, telecomunicação, computação na nuvem, serviços de saúde e telecomunicações serão especialmente beneficiados.

Há também um aspecto curioso e nada desprezível do ponto de vista simbólico. O CAI foi assinado no mesmo dia do tão esperado Acordo de Cooperação e Comércio da UE-Reino Unido, que regulamenta as futuras relações comerciais entre eles após o Brexit.

Bom para chineses

A principal contrapartida para a China é diplomática. Fechar um acordo de investimentos com os europeus, sem o monitoramento ou a influência dos Estados Unidos, representa um grande feito geopolítico para o governo de Xi Jinping. O arranjo melhora a imagem da China como ator confiável no setor financeiro e comercial, ainda que os europeus aleguem haver um longo caminho até o fim de supostos subsídios e falta de transparência nas práticas de negócios chinesas.

Sob o aspecto prático, empresas chinesas estatais e privadas ganharão acesso limitado a 5% dos mercados nacionais de energia renovável no bloco europeu. Como maior produtor de equipamentos de energia verde no mundo, a China tem na Europa o cliente ideal, dada a prioridade da agenda climática da União Europeia.

Quid pro quo

O interesse dos europeus em se aproximar dos chineses não é novidade para os setores de política externa americana. Em 2020, a China substituiu os Estados Unidos como principal parceiro comercial da UE, o que mais do que explica a aproximação. O fato surpreendente com relação ao CAI foi o momento, faltando dias para que o eurocético Trump transfira o poder para o internacionalista Biden. Além disso, quatro semanas antes da assinatura, a UE tinha incentivado publicamente os Estados Unidos a unir forças para combater governos autoritários e enfrentar o desafio estratégico trazido pela China.

A pressa europeia se explica por, ao menos, três motivos. O primeiro foi evitar a pressão dos americanos para que a Comissão Europeia obtivesse mais concessões dos chineses. Diante das vantagens conquistadas nos termos atuais, os negociadores europeus temiam espantar o outro lado e colocar o acordo a perder.

O segundo motivo foi meramente competitivo. A UE desejava chegar aos termos com os chineses antes dos Estados Unidos, cujas negociações comerciais com a China estão na chamada Fase 1. Muitos dos pontos positivos obtidos pelos europeus já estão garantidos pela China aos americanos, que deverão obter ainda mais concessões ao longo de futuras negociações. Além disso, os maiores países do bloco se ressentem do fato de Trump também ter começado a negociar com os chineses sem consultar os aliados. Para os europeus, largar na pole position significa acesso mais rápido ao grande mercado chinês, o que é crucial na competição com os americanos. A UE também já está atrasada em relação a outros parceiros dos Estados Unidos. Em novembro, Pequim assinou com 14 países da Ásia e Oceania um acordo que vem sendo considerado histórico em termos de volume e mercado.

Por fim, existe o simbolismo. Anunciar o CAI sem consultar o parceiro em Washington, ou esperar a posse de Biden, reforça a intenção de mais autonomia estratégica daqui por diante. O recado dado pelos países europeus é o de que alinhamento ideológico não se confunde mais com interesses comerciais. Sentem-se confortáveis em participar com os Estados Unidos de qualquer cúpula sobre democracia, mas sem abrir mão de mercado e capital na China.

A política na roda

Do ponto de vista político, a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente Xi foram decisivos para o CAI. Merkel, que está em fim de mandato, desejava o desfecho positivo durante a presidência rotatória da Alemanha na UE. Xi chegou a interferir pessoalmente nas negociações para autorizar algumas concessões aos europeus. Ambas as lideranças tinham menos urgência em proteger os investimentos e os mercados do que mostrar ao mundo, e aos Estados Unidos, que as relações transatlânticas agora se desenvolvem a três.

Segundo o atual vice-conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Matthew Pottinger, o fechamento do acordo antes da troca de governo foi uma surpresa para republicanos e democratas. O assessor criticou a decisão por não levar em conta a violação de direitos humanos na China. “Não podemos mais nos iludir de que Pequim esteja a ponto de honrar os direitos trabalhistas, enquanto continua a construir milhões de metros quadrados de fábricas para trabalho forçado em Xinjiang”, declarou o assessor.

Jack Sullivan, indicado por Biden como futuro conselheiro de Segurança Nacional, foi mais discreto ao expressar a frustração com os aliados. Dias antes da assinatura do CAI, Sullivan escreveu no Twitter que a administração Biden gostaria de ter consultas prévias com os europeus sobre as preocupações comuns relativas às práticas comerciais chinesas.

Para Joerg Wuttke, diretor da Câmara de Comércio Europeia na China, não faz sentido esperar por Biden. “Os Estados Unidos não esperaram por nós na fase 1 do acordo deles”, alfinetou. A maioria dos europeus concorda. Com a exceção da Polônia, que preferia obter permissão em Washington antes, os demais acham que é chegada a hora de uma dança solo, ou de um pas de deux com outro parceiro.

Abrangente ou não, ratificado ou pendente, qualquer que seja o desdobramento prático do CAI, sua assinatura acelerada pressiona antecipadamente o governo eleito nos Estados Unidos. Tanto quanto à atenção que a equipe democrata pretende dispensar às relações transatlânticas, quanto à moral com que continuará a negociar com os chineses.

 

Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 5 jan. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

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