Trajetória da política ambiental nos EUA: como interpretar Trump e quais os desafios de Biden?
Crédito: MarketWatch (Ilustração)/Getty Images e IstockPhoto (Fotos)
Por Pedro Vasques*
Quando somos instados a pensar no legado deixado por Donald J. Trump à política ambiental dos Estados Unidos, não é difícil relacioná-lo a duros retrocessos normativos e institucionais, desprezo pelo conhecimento científico e uma vasta propagação de mentiras. Contudo, se suas ações e discursos no âmbito da referida agenda foram reiteradamente destacados nos meios midiáticos pela truculência, pela falta de diálogo com a sociedade e pelo ineditismo, é preciso lembrar que o governo Trump não os fez sem o apoio de seu partido.
Ademais, essa tampouco pode ser considerada a primeira administração federal dos Estados Unidos a intentar ostensivamente contra pautas ambientalistas. Isso não significa dizer que a atual administração não se singularize por suas estratégias, falas e ações, mas tão apenas que compõe parte de uma dinâmica mais ampla e que vem caracterizando a atuação do Partido Republicano nos últimos 40 anos.
Tendo em vista a existência e a importância dessas continuidades e particularidades para nos ajudar a compreender as razões que orientam a administração republicana vigente (e os comportamentos adotados pelos integrantes da própria sigla), optamos por recuperar questões-chave para a análise da política ambiental nos Estados Unidos a partir dos anos 1970, indo até os dias atuais. E, para fazê-lo, foi preciso, primeiramente, destacar três elementos especialmente importantes para auxiliar na construção de um quadro interpretativo geral e mais amplo.
ANTES DE PARIS E TRUMP: ativista protesta contra não adesão ao Protocolo de Kyoto dos EUA do republicano George W. Bush, em frente à Casa Branca, 14 fev. 2005 (Crédito: Brendan Smialowski/AFP/Getty Images)
Mudança conceitual, de percepção e conjuntural
A emergência da questão ambiental produz como um de seus desdobramentos intensa força política, que atrai democratas e republicanos. Isso os leva a convergir na aprovação de novos instrumentos e instituições, os quais grande parte dos políticos possuía apenas uma limitada compreensão de seu conteúdo. Assim, a aprovação desse conjunto regulatório se deu sob a percepção de que aquilo que vinha sendo votado, como, por exemplo, a National Environmental Policy Act, era mais do mesmo. Isto é, que se tratava de criar espaços protegidos em territórios distantes, reproduzindo o padrão de práticas próprias da percepção da natureza em antagonismo às sociedades humanas.
Contudo, o que emergia naquele momento – e as novas regras jurídicas explicitam apenas parte desse processo – era a configuração de uma subjetividade distinta que, em certa medida, propunha-se a repensar valores caros para grande parte da sociedade estadunidense, como, por exemplo, a liberdade individual, o excepcionalismo e a inventividade do povo norte-americano, e o direito divino de subjugar a natureza para extrair dela sua prosperidade.
A percepção acerca das profundas mudanças associadas a esse emergente ambientalismo nos leva ao terceiro elemento, qual seja, que a articulação dos principais antagonismos se dará com base em valores próprios de grupos conservadores norte-americanos. Estes, através de seus saberes, discursos e práticas, encontrarão sinergia com demandas e necessidades de outros setores da sociedade norte-americana, por exemplo, de grandes grupos econômicos que – na expectativa de verem seus interesses serem defendidos – contribuirão para fortalecer e promover a agenda conservadora.
Dados os três elementos anteriormente desenvolvidos, destacamos quatro eixos de incidência dos republicanos, notadamente, conservadores, sobre a agenda ambiental nos Estados Unidos a partir dos anos 1980. Tais vetores não são exaustivos, mas, em larga medida, são capazes de explicitar questões fundamentais para compreender a Presidência de Trump e os desafios que Biden deve enfrentar em seu mandato, ao lidar com a referida temática.
O primeiro deles diz respeito à qualificação das políticas ambientais progressistas como políticas de ressentimento, isto é, produzidas da cidade para o campo e à margem de valores estimados por parcela da população. Os conservadores passam a associá-las a uma estratégia para desmerecer os habitantes do Meio-Oeste e minar o verdadeiro espírito norte-americano.
CLIMA E INUNDAÇÕES NO MEIO-OESTE: Craig, Missouri, em 2019 (Crédito: Scott Olson/Getty Images)
O segundo é a disseminação e a incorporação pelos republicanos de um conjunto de orientações para lidar publicamente com questões envolvendo meio ambiente. No esquema criado, ao ser indagado sobre o tema, abordá-lo via economia deveria ser evitado, a ciência precisaria estar sob constante dúvida, e os argumentos principais seriam articulados em termos de valores morais.
Diante da ruptura do bipartidarismo dos anos 1970 e do praticamente intransponível impasse no Congresso, a terceira forma de incidência se caracterizou pelo predomínio de presidências conduzidas a partir de decisões administrativas. Alternativa essa que também será largamente empregada por democratas progressistas e, neste caso, com muito mais sucesso do que pelos conservadores.
O último eixo se caracteriza pela manutenção dos Estados Unidos como protagonista das discussões ambientais internacionais, ainda que, internamente, a agenda do governo federal fosse contrária à promoção dessa temática. A exceção desse comportamento se dá, em especial, no que tange aos debates sobre clima, capazes de estimular ações convergentes contrárias a essa pauta inclusive em meio aos republicanos moderados.
O uso político da oposição de Trump
Feitas tais considerações, como observar o governo Trump? Partindo de abordagens comparativas, é possível verificar que há muito mais semelhanças nas ações e discursos do atual presidente com seus antecessores republicanos do que divergências. Entretanto, dois aspectos nos parecem especialmente relevantes no exercício de produzir uma avaliação preliminar.
O primeiro deles trata da ruptura da cartilha republicana para tratar de questões ambientais. Em outras palavras, ainda que Trump mantenha a dimensão valorativa e anticientífica, a oposição à referida agenda não é por ele caracterizada como um problema, mas como uma vantagem sua em relação aos democratas (e aos moderados), reorganizando as estratégias republicanas para administrar essa questão, inclusive em nível estadual.
O segundo aspecto trata do abandono dos espaços multilaterais. Diferentemente do que ocorreu quando do abandono do Protocolo de Quioto por W. Bush, Trump se vale da oposição à pauta climática (como produtora de convergência no interior do Partido Republicano) para, a partir dessa garantia de coesão, distanciar-se de outros espaços e debates internacionais relacionados à agenda ambiental. Ou seja, não só abrindo mão de recuperar a liderança que vinha exercendo em períodos anteriores, mas enfraquecendo alternativas e instituições internacionais em prol de promover agendas antiglobalização.
Esta não é uma questão propriamente nova, mas o tema encontrou amplo espaço na Presidência de Trump. Temos por hipótese que esse movimento estaria relacionado a uma tentativa incipiente de reorganizar as regras do jogo internacional dada a perda de protagonismo dos Estados Unidos no plano global experimentada nas primeiras décadas do século XXI.
Acomodações e desafios de Biden
Por fim, quais desafios são prováveis de serem enfrentados por Biden, considerando-se os argumentos aqui desenvolvidos? Como anteriormente destacado, ainda há muitas incertezas sobre o que será possível de ser feito na próxima administração democrata no que tange à política ambiental. Contudo, à luz das estratégias republicanas sinteticamente apresentadas e a partir da análise da campanha eleitoral de 2020, é possível observar algumas pistas úteis para entender os limites e possibilidades que Biden deve experimentar ao lidar com questões envolvendo clima e meio ambiente de modo geral.
Uma delas é a tentativa de desassociar a atuação democrata nessa agenda à dimensão do ressentimento. Em vários momentos da campanha, foi possível verificar narrativas endereçadas aos eleitores rurais e do Meio-Oeste dos Estados Unidos nesse sentido, ainda que seja difícil, por ora, avaliar o impacto dessa estratégia nos resultados das urnas. Nesse aspecto, mesmo que a imagem do Green New Deal possa alimentar certa contradição com a afirmação anterior, seu uso (e conteúdo) parece explicitar uma reorganização dos discursos progressistas que passam a enfatizar a promoção da agenda ambiental com valores caros aos norte-americanos. Em outras palavras, busca-se reverter a ideia de que a implementação de políticas sobre meio ambiente estaria conectada necessariamente à escassez, racionamento e insegurança.
Contudo, se a narrativa construída na campanha de Biden parece estar orientada para agregar os cidadãos estadunidenses, há poucas perspectivas de que esse desejo de convergência se manifeste no Legislativo, obrigando a manutenção de uma Presidência calcada em ações administrativas. Essa característica nos leva à última pista, qual seja, a tentativa de retomar o protagonismo nas arenas internacionais em meio a um contexto de incertezas sobre a capacidade de os Estados Unidos cumprirem os compromissos assumidos apesar dos resultados eleitorais.
Nesse caso, o esgarçamento das soluções administrativas, explicitado na saída do Acordo de Paris, pode implicar a necessidade de se pensar estratégias alternativas para a recuperação da centralidade perdida, como ampliar a participação da União nos investimentos internos em políticas que promovam a agenda ambiental, ou incidir – notadamente, a partir de discursos e sanções – sobre países que não estejam alinhados às melhores práticas de gestão do meio ambiente.
* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Cedec e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
** Este texto é um resumo modificado da apresentação feita pelo autor no Seminário do INCT-INEU “O governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana”, realizado em 7 e 8 de dezembro de 2020, pelo canal do INCT-INEU no YouTube. Recebido em 17 dez. de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.