América Latina

Governo Trump perante China, América Latina, Europa e Oriente Médio (parte 3)

Por Tatiana Carlotti*

Um panorama crítico da política internacional praticada pelo governo Trump pôde ser acompanhado no debate Governo Trump, discursos e práticas. E agora?, com mediação de Marcos Cordeiro Pires (UNESP) e análises de Solange Reis (INCT-INEU), sobre Estados Unidos e Europa; Marcos Cepik (UFRGS), sobre as relações estabelecidas com a China; Reginaldo Nasser (PUC-SP), sobre o Oriente Médio; e Roberto Moll (UFF), sobre a América Latina. Todos eles são membros do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), que sempre marca o encerramento das atividades do ano com um debate sobre a potência mundial. Neste 2020, devido à pandemia da covid-19, as discussões aconteceram de modo on-line, nos dias 7 e 8 de dezembro, abordando O Governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana.

Ruptura das relações transatlânticas

As políticas de Trump para a Europa, em particular as relações com Alemanha, França e Reino Unido (pelo menos até o Brexit), foram analisadas por Solange Reis (INCT-INEU), a partir do conceito de relações transatlânticas. Estabelecidas entre os Estados Unidos e os países europeus no contexto do pós-Guerra, essas relações foram bem-sucedidas em expandir e consolidar a ordem liberal, pela qual “os Estados Unidos e a União Europeia ditam as regras da política internacional, quais serão os acordos, avançando seus interesses”.

Quando Trump chega ao poder, porém, essas relações já estão desgastadas, vide a invasão unilateral do Iraque durante o governo George W. Bush. Trump não é, portanto, um ponto fora da curva, explica Reis, mas ele irá verbalizar e de forma muito dura a bifurcação de interesses, atacando lideranças políticas europeias, em uma espécie de “antidiplomacia”, que terá seu ápice na defesa do Brexit, inclusive com Trump bradando que a União Europeia faz mal aos Estados Unidos e ao Reino Unido. “Nada poderia ser tão contra a União Europeia quanto o apoio ao Brexit”, avalia.

Segundo Reis, os europeus festejam a derrota de Trump com cautela, sem ilusões quanto ao governo Biden, e cientes de que as desavenças com os Estados Unidos ultrapassam o trumpismo. “O governo Trump soou o alarme para as classes políticas norte-americanas e europeias”, mostrando a necessidade de maior independência e autonomia da Europa em relação aos Estados Unidos, sobretudo, em termos de defesa e de segurança. Ao mesmo tempo, observa Reis, a extrema direita avançou na Hungria e na Polônia, onde governa; e se fez notar em países como Alemanha e Espanha. Nos Estados Unidos, apesar de derrotado, Trump recebeu 70 milhões de votos. Uma massa de eleitores que veem nele um salva-vidas, um defensor contra aquilo que compreendem como “a elite global que trabalha contra os interesses da classe média e trabalhadora”.

Em sua avaliação, neste momento, “não se pode forçar o discurso do multilateralismo, do universalismo, da democracia global. Nós não podemos adotar os mesmos discursos das décadas da ordem liberal e afinamento total com os Estados Unidos. Daqui por diante, o desafio será o resgate e a reformulação da ordem liberal em um outro contexto que tem a China como grande ator econômico”, conclui. (Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Solange Reis)

Escalada de agressões contra a China

O discurso contra a China vem caracterizando a retórica democrata e republicana desde Bill Clinton, mas nada se compara à ofensiva adotada por Trump, avalia Marcos Cepik (UFRGS), ao trazer vários exemplos da escalada de agressões contra a China, desde a ligação de Trump a Taiwan, no começo de seu governo; passando pela guerra comercial; até as ameaças no mar do Sul e da violação, por patrulhas provocativas, do espaço de restrição aérea chinês. “As condições que levaram à existência de uma Presidência Trump nos Estados Unidos não desaparecem com sua saída da Casa Branca”, aponta Cepik, que enxerga a presença de valores neofascistas na Presidência norte-americana como um “sinalizador muito forte de que há complicações na configuração do sistema político e no projeto externo de inserção global dos Estados Unidos”.

Com a vitória de Joe Biden, surge a possibilidade de “calibramento das relações e das posturas políticas”, se não no sentido de consolidação de acordos, “pelo menos em torno do não agravamento das relações”, prevê Cepik.

Em sua avaliação, a restauração do diálogo entre os dois países tende a ser mais fácil em áreas de enfrentamento da covid-19 e de planejamento ambiental. Em termos militares, ele destaca haver plena consciência nos altos escalões do governo norte-americano de que a China não é nenhuma ameaça militar. “É possível que haja uma diminuição da tensão militar durante a presidência de Biden, pelo menos no começo”, aponta. Já em termos comerciais, citando o exemplo da cibernética, Inteligência Artificial e 5G, Cepik aponta como muito grande o estrago dos anos Trump: “a China vai terminar 2020 com 690 mil estações de base 5G instaladas no país, enquanto os Estados Unidos não têm 50 mil”, detalha.

“Temos que observar o que vai acontecer em termos da concentração de capital e do padrão de desenvolvimento do capitalismo nos próximos anos, para saber se o futuro das relações entre EUA e China será mais conducente com um enrijecimento de alianças e confrontação, ou com um condomínio de poder no sistema internacional, garantindo uma transição mais ou menos organizada, em um mundo que terá de lidar com mudanças climáticas, transições demográficas e aceleração tecnológica muito grande com aumento de desigualdade”, conclui. (Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Marcos Cepik)

Negócios bilionários com as monarquias do Golfo

Desde a década de 1980, todos os governos norte-americanos tiveram algum envolvimento, direta ou indiretamente, em ações militares no Oriente Médio. Desde 2002, foram gastos mais de 6 trilhões de dólares sob o argumento do “combate ao terrorismo” e, desde 1990, foram destinados 10 trilhões de dólares em investimentos militares e ajuda às monarquias do Golfo Pérsico, aponta Reginaldo Nasser (PUC-SP).

Independentemente de seus governos, os objetivos norte-americanos permanecem os mesmos: “conter, coagir e cercar o Irã”, “impedir a criação do Estado Palestino e, portanto, manter (no caso de Trump, intensificar) a ajuda a Israel”; e acelerar o desenvolvimento da política voltada às monarquias do Golfo Pérsico. “O aspecto central é econômico. Trump levou ao limite uma rede de negócios entre a elite norte-americana com a elite árabe. Uma política de negócios bilionários”, complementa.

A partir de três eixos de conflito na região, Nasser analisa a situação na Síria, onde se deu o retraimento norte-americano e o sucesso de Putin (Rússia) na manutenção do governo Assad. A questão agora é a reconstrução do país e como se dará o envolvimento norte-americano neste processo. Sobre o eixo formado por Iraque, Afeganistão e Irã, Nasser observa as dissonâncias no discurso do Partido Republicano quanto aos processos de intervenção, ocupação e reconstrução desses Estados, destacando o fenômeno de expansão de empresas militares de segurança na região.

No terceiro eixo, Nasser aborda as monarquias do Golfo Pérsico, tema de pesquisa em curso. Ele estranha, inclusive, a ausência de estudos sobre essas monarquias que detêm um papel fundamental (e desde a crise do petróleo) para a política externa norte-americana. “O que o trumpismo faz é levar ao limite o mundo dos negócios que vinha acontecendo tanto nos governos democratas quanto nos republicanos. Essa política junto às monarquias do Golfo Pérsico dá outro tom à questão do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, ela reforça o cerco contra o Irã e garante a presença de Israel nesses acordos”, afirma. (Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Reginaldo Nasser)

“Fale grosso e venda o porrete”

Reflexo da “agudização de uma crise sistêmica de quase meio século”, a política externa de Trump para os países da América Latina buscou reivindicar a Doutrina Monroe, a partir de um “Corolário Roosevelt” às avessas, substituindo o “fale grosso e traga o porrete” pelo “fale grosso e venda o porrete” de hoje, avalia Roberto Moll Neto (UFF). Em sua análise sobre as políticas de Trump para a região, ele abordou “três eixos de articulações, pelos quais frações de elite dos Estados Unidos e frações do capital da América Latina se coadunam de forma transnacional”.

No eixo político e econômico, a América Latina acena como “espaço da realização de lucro pela superexploração do trabalho e/ou ampliação do mercado”; no eixo político e militar, de defesa e segurança do território estadunidense, e do fluxo de mercadorias e capitais. Neste eixo, a América Latina é, também, uma “fonte inesgotável de incentivo ao complexo militar-industrial estadunidense”. E, por fim, o eixo político-cultural, que “confere aos Estados Unidos uma legitimidade global, não apenas regional, na construção de consensos em torno da supremacia moral dos Estados Unidos” (democracia e liberdade); propaganda da superioridade e “expansão do modelo de acumulação que os Estados Unidos defendem”, explica Moll.

Trump encontrará obstáculos para agir nesses três âmbitos na América Latina. Moll detalha três deles: a concorrência da China; a “onda rosa”, em que “frações da elite e do capital latino-americano buscaram se atrelar a projetos de desenvolvimento autônomo e multilateral”; e o processo mais amplo de desindustrialização dos Estados Unidos nos últimos 50 anos. Ele aponta várias pressões de Trump para que a América Latina “abrisse as portas aos produtos estadunidenses”; a renegociação de acordos como o do NAFTA; e o incômodo de Trump com a balança negativa na região, daí a desidratação de programas de ajuda humanitária e de desenvolvimento na região.

Já em relação aos aspectos político-culturais, ele citou a política de Trump de criminalização de modelos políticos e econômicos distintos (Cuba e Venezuela, por exemplo), a tentativa de desestabilizar as eleições na Bolívia, o reforço do modelo de outsiders na América Latina com alinhamento direto aos Estados Unidos, além da política de “Lei e Ordem” no sentido de reativação de discursos antigos para reativar a Doutrina de Segurança Nacional, supostamente de ameaça de comunismos na América Latina, associado às drogas, que vão alimentar o mercado de armas. Segundo Moll, esse discurso explica os 30% de votos de latino-americanos recebidos por Trump. “A América Latina é construída como esse lugar de que esses eleitores querem se afastar”. (Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Roberto Moll Neto)

Como destaca Marcos Cordeiro Pires (Unesp-Marília), em artigo sobre o debate, “apesar de abordarem diversos aspectos da política externa estadunidense, os debatedores concordaram em que não se pode esperar transformações bruscas na política externa dos EUA, sob a administração de Joseph Biden, com relação às prioridades de Donald Trump. Em última instância, essas políticas refletem os interesses da elite do país e formam um consenso bipartidário, ou seja, entre democratas e republicanos”.

Contudo, aponta Pires, é possível especular sobre “mudanças na forma de abordagem dos problemas, visto que se espera uma maior institucionalização nas negociações, com espaço para o multilateralismo e ‘retorno’ a organizações e acordos internacionais, assim como uma maior previsibilidade para as ações da diplomacia dos EUA”.

Leia também: Governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana: o contexto político institucional (parte 1) e Governo Trump, discursos e práticas (parte 2).

 

Confira o seminário:

Abertura

Héctor Luís Saint-Pierre – Coordenador-Executivo do IPPRI-UNESP

 

Contexto Político Institucional

Tatiana Teixeira (INCT-INEU)

Sebastião Velasco (Unicamp-INCT-INEU)

Camila Vidal (UFSC)

Mediador: Tullo Vigevani (UNESP)

 

Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (1)

Pedro Vasques (Unicamp)

Wiliam Laureano (PPGRI-UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas)

Leonardo Ramos (PUC-MG) e Filipe Mendonça (UFU)

Neusa Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp)

Mediador: Thiago Lima (UFPB)

 

Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (2)

Solange Reis (INCT-INEU)

Marcos Cepik (UFRGS)

Reginaldo Nasser (PUC-SP)

Roberto Moll (UFF)

Mediador: Marcos Cordeiro (UNESP)

 

2020: eleições em tempos difíceis

Celly Cook Inatomi (INCT-INEU)

Débora Figueiredo Mendonça do Prado (UFU)

Mediador: Frederico Almeida (UNICAMP)

 

Eleições 2020: balanço e perspectivas

Rafael R. Ioris (University of Denver)

Felipe Loureiro (IRI-USP)

Inderjeet Parmar (University of London)

Mediadora: Flávia de Campos Mello (PUC-SP)

 

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* Tatiana Carlotti é assessora de imprensa do INCT-INEU e do OPEU. Contato: tcarlotti@gmail.com.

** Matéria originalmente publicada no site da Carta Maior, em 22 dez. 2020.

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