Eleições 2020: balanços e perspectivas (parte 4)
Crédito: Reprodução do canal do INCT-INEU no YouTube
Por Alessandra Monterastelli e Tatiana Carlotti*
Ano de uma pandemia sem precedentes desde a gripe espanhola, 2020 também foi marcado por uma “eleição histórica nos Estados Unidos”, apreensivamente aguardada por todos os países do mundo, e não sem motivos, como avaliam Rafael R. Ioris (Universidade de Denver), Inderjeet Parmar (University of London) e Felipe Loureiro (USP), ao discutirem “Eleições 2020: balanços e perspectivas”, sob mediação de Flávia de Campos Mello (PUC-SP). A discussão ocorreu durante a última mesa do seminário O Governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana, ocorrido nos dias 7 e 8 de dezembro, no escopo dos tradicionais debates de fim de ano do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com transmissão ao vivo. (Confira a programação no final do texto)
Eleições em um país fraturado
Professor da Universidade de Denver, Rafael R. Ioris acompanhou de perto os desdobramentos das eleições norte-americanas de 2020, trazendo o clima de ansiedade sobre o resultado da eleição: se seria uma eleição pacífica, se haveria manifestações, se as pessoas conseguiriam votar; e de motivação das pessoas. Ao mesmo tempo, ele avalia que, “apesar da expectativa sobre o potencial desta eleição, ela não trouxe as respostas esperadas. Ainda há um lapso entre as respostas que as instituições estadunidenses podem oferecer e a necessidade, por parte da população, dessas respostas”.
Das eleições de 2020, Ioris destaca a normalização de atos claramente antidemocráticos, como o questionamento das eleições por Trump e seus apoiadores. “Muitos ainda acreditam nas acusações de Trump, o que representa outro paradoxo: o sistema funcionou, mas existe uma crescente dúvida sobre a legitimidade e o funcionamento desse sistema”. Sobre a participação histórica nestas eleições, ele avalia que tanto os republicanos quanto os democratas mobilizaram suas bases, mas essa mobilização não significa “confiança no sistema”.
“Eleitores de ambos os lados foram votar por medo de serem privados do direito à eleição. As pessoas não foram votar porque acreditam na legitimidade do processo eleitoral, mas sim para prevenir a falha das instituições”, conclui. Segundo Ioris, não se trata apenas de um Estados Unidos polarizado, mas de uma “fratura em dois blocos” e de “diversas fragmentações causadas por inúmeros dilemas (políticos, econômicos, institucionais e culturais)”.
“Temos um país fraturado entre dois grupos que votaram exclusivamente porque acreditam que a vitória do adversário representa uma ameaça à sua própria existência: ao seu modo de vida, seus valores, suas crenças”. E essa é uma realidade, frisa Ioris, “tanto para os eleitores de Biden quanto para os de Trump”. Ele avalia que se expande entre os norte-americanos a percepção de que “o sistema não disponibiliza respostas claras para uma sociedade que está necessitada de respostas”. Sem Trump, certa normalidade poderá ser restituída, mas isso não será suficiente para situação do país.
É preciso “rever decisões-chave que foram tomadas nos EUA nos últimos 40 anos”, acrescenta. “A nova liberalização que vem ocorrendo no país, especialmente desde 1980; a desigualdade; o senso de abandono por parte de diferentes grupos, tudo isso deve ser trabalhado. Será necessário também responder a conflitos internacionais de um modo diferente do que vem ocorrendo desde o pós-Guerra Fria”, complementa. Frente a essas demandas, Ioris avalia que uma “reorganização social” com Biden, talvez, seja uma expectativa muito alta. “Ele fez campanha para restaurar a decência e as instituições, mas isso não significa o fim da interferência internacional, ou guerras. Vemos, basicamente, uma nova administração Obama. Mas, se Biden for apenas um novo Obama, ele não será suficiente para superar os desafios e dilemas que a economia e sociedade norte-americanas enfrentam hoje”. (Confiram aqui a análise de Rafael Ioris).
Os limites do trumpismo
“Era esperado que Donald Trump não fosse aceitar o resultado eleitoral”, afirma Felipe Loureiro (USP), ao analisar a estratégia e o comportamento do bilionário de contestar, fazer alegações racistas contra condados e até mesmo convocar o “exército patriota” para o dia da eleição. “Trump fez diversos ataques autoritários, tornando a eleição de 2020 a primeira da história em que um presidente [norte-americano] contestou o resultado eleitoral. Estamos presenciando uma mudança histórica nos Estados Unidos”, aponta. Segundo Loureiro, Trump somente ganharia as eleições, se conseguisse descartar milhares de votos válidos, daí suas alegações falsas, por exemplo, como a de que máquinas de votos estariam fraudando os resultados. Argumentos que perderam em todos os estados e nas cortes federais.
Em sua análise sobre as eleições, Loureiro discutiu os principais cenários que preocupavam os analistas e que poderiam favorecer Trump. Primeiro, a possibilidade de criação de uma realidade alternativa por parte da mídia conservadora norte-americana, que poderia ter abraçado a narrativa de fraude dos votos enviados por correio. Um segundo cenário de uso do aparato do Estado norte-americano, com apoio do Departamento de Justiça, que poderia descartar os votos. Terceiro, o forte apoio de governadores, secretários e legisladores republicanos que poderiam praticar ilegalidades, favorecendo o bilionário. E, por último, um cenário de manifestações em massa da população a favor de Trump e de suas acusações, o que pressionaria os agentes eleitorais e a mídia. “Nenhum desses cenários se concretizou para garantir a vitória de Trump”, aponta Loureiro.
Na mídia, “a FOX News, uma das maiores e mais poderosas emissoras, colocou-se ao lado de Trump; contudo, os jornalistas e âncoras da emissora acabaram por recuar”. Trump também “não foi capaz de usar o maquinário do governo federal a favor de seus objetivos autoritários”, sendo que nem mesmo os agentes federais compraram o discurso de fraude, vide o caso de Christopher Krabs, então diretor de segurança cibernética, demitido por Trump após afirmar que as eleições foram seguras. Loureiro também destaca a existência de dois grupos dentro do Partido Republicano: os que defendem a versão de Trump, e os que aceitam o resultado eleitoral e, por isso, vêm sofrendo grande pressão.
De modo geral, “a narrativa de Trump não foi forte o suficiente para desacreditar as eleições diante da sociedade e dos veículos de comunicação. Ainda não há uma demonstração massiva a favor de Trump, o que demostra o limite do trumpismo quanto a sua organização”, conclui. (Confira aqui a análise de Felipe Loureiro).
Crise de legitimidade do sistema político
“A atual crise sistêmica, que vai além do território estadunidense, levou décadas para se formar e não pode ser resolvida com uma simples eleição”. É sob esta premissa que Inderjeet Parmar (University of London) traz, em sua análise sobre as eleições de 2020 nos Estados Unidos, o contexto de crises em que a disputa se dá. Crise da saúde, da economia e do trabalho; crise do governo e da própria ideia de governo; crise da desigualdade em consequência da irresponsabilidade e da imobilidade do Estado. Uma série de crises, portanto, que irá culminar em forte crise de legitimidade do sistema político norte-americano, explica Parmar.
Ele, inclusive, aponta como sintoma dessa crise de legitimidade as sucessivas contestações dos resultados eleitorais. “A eleição de Obama foi contestada; a eleição de Trump também, por ele supostamente ter sido apoiado pela Rússia que teria interferido nas eleições. E, agora, Trump questiona a vitória de Biden. Existe uma grave crise de legitimidade no sistema político estadunidense”, destaca.
Em sua avaliação, não serão os democratas que resolverão essa crise. “O Partido Democrata é um partido conservador, com pequenas exceções. É o partido de Wall Street e do establishment. Responsável pela maioria das guerras que os Estados Unidos começaram pelo mundo afora. O Partido Democrata é o arquiteto da ordem mundial pós-1945, fundamentalmente baseada na coerção e na habilidade dos Estados Unidos em começar guerras”, aponta. Em meio a isso, “o descontentamento das massas diante da desigualdade crescente e da não resposta do Estado apenas aumenta”.
“A agenda neoliberal pró-corporações se estabeleceu e, com ela, a desigualdade disparou, juntamente com a expansão alarmante da população carcerária, porque [dentro dessa lógica] os sintomas do descontentamento com esse novo sistema não podem ser resolvidos com reformas sociais, apenas com coerção. O resultado é o encarceramento em massa. A militarização da polícia nas grandes cidades, a guerra às drogas”. Soma-se a isso “a globalização do capital, a realocação do trabalho para os países subdesenvolvidos; a automação e a tecnologia que deslocaram o capital para outras zonas dentro do território norte-americano, como no Oeste”.
O eleitorado de Trump, destaca Parmar, irá se constituir nessas comunidades afetadas por esse movimento “que transformou o Partido Republicano no partido da classe trabalhadora”. Em sua avaliação, o Partido Democrata tem grande responsabilidade na construção dessa crise de legitimidade, afinal, “para cada Nixon tem um Carter, para cada Bush, um Obama, e para cada Trump, tem um Biden. Todos constituem o status quo”.
Parmar terminou sua apresentação, destacando a forte presença das forças populares nas eleições deste ano. Explodiram manifestações em todo país, como os protestos do Black Lives Matter, atestando que, “onde há concentração de um poder opressor, há também uma reação contra a repressão. As pessoas vão-se levantar e exigir democracia e liberdade, mesmo que não organizadas pelo Partido Democrata”, afirma. Ele também mencionou as estruturas do sistema institucional norte-americano que não cederam ao autoritarismo de Trump, garantindo o respeito ao resultado eleitoral”. (Confira aqui a análise de Inderjeet Parmar).
Leia também: Governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana: o contexto político institucional (parte 1), Governo Trump, discursos e práticas (parte 2) e Governo Trump perante a China, América Latina, Europa e Oriente Médio (parte 3)
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Confira abaixo o seminário, clicando no nome do expositor, ou da mesa:
O Governo Trump, as eleições de 2020 e
a crise na política norte-americana
7 e 8 de dezembro
INCT-INEU
Abertura
Héctor Luís Saint-Pierre – Coordenador-Executivo do IPPRI-UNESP
Contexto Político Institucional
Sebastião Velasco (Unicamp-INCT-INEU)
Mediador: Tullo Vigevani (UNESP)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (1)
Wiliam Laureano (PPGRI-UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas)
Leonardo Ramos (PUC-MG) e Filipe Mendonça (UFU)
Neusa Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp)
Mediador: Thiago Lima (UFPB)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (2)
Mediador: Marcos Cordeiro (UNESP)
2020: eleições em tempos difíceis
Celly Cook Inatomi (INCT-INEU)
Débora Figueiredo Mendonça do Prado (UFU)
Mediador: Frederico Almeida (UNICAMP)
Eleições 2020: balanço e perspectivas
Rafael R. Ioris (University of Denver)
Inderjeet Parmar (University of London)
Mediadora: Flávia de Campos Mello (PUC-SP)
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* Alessandra Monterastelli é repórter da Carta Maior. Contato pelo LinkedIn. Tatiana Carlotti também é repórter da Carta e assessora de imprensa do INCT-INEU e do OPEU. Contato: tcarlotti@gmail.com.