Governo Trump, eleições de 2020 e crise na política norte-americana: discursos e práticas (parte 2)
Crédito da foto: Reprodução/YouTube
Os impactos da era Trump, em diversos âmbitos da política externa e doméstica dos Estados Unidos, foram debatidos pelos pesquisadores do INCT-INEU, em seminário sobre a potência mundial nos dias 7 e 8 de dezembro
Por Tatiana Carlotti*
Os impactos dos quatro anos de governo Trump, em diferentes âmbitos da política externa e doméstica dos Estados Unidos, foram analisados pelos pesquisadores e docentes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), no tradicional evento de encerramento de ano da rede que promoveu, neste 2020, entre 7 e 8 de dezembro, o seminário O Governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana.
As políticas governamentais de Trump e a virulência de suas declarações foram analisadas na mesa “Governo Trump, discursos e práticas: E agora?”, mediada por Thiago Lima (UFPB), com a participação de: Pedro Vasques (Unicamp), que analisou as políticas ambientais do Partido Republicano; William Laureano (PPGRI-UNESP-Unicamp-PUCSP) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas), que trouxeram um panorama das políticas migratórias dos Estados Unidos. Também foram discutidas as relações entre Trump e Wall Street, por Leonardo Ramos (PUC-MG), em pesquisa conjunta com Filipe Mendonça, e o tensionamento das relações entre Estados Unidos e China, analisado por Neusa Maria Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp).
Na sequência, acompanhamos as análises de Celly Cook Inatomi (INCT-INEU) sobre o fortalecimento do conservadorismo no sistema judiciário norte-americano durante o governo Trump; e de Débora Prado (UFU), que trouxe um apanhado das medidas de enfrentamento da covid-19, a partir da perspectiva do federalismo norte-americano, na mesa “Eleições em tempos difíceis”, mediada por Frederico de Almeida (Unicamp).
Trump, Bush e Reagan: a trinca antiambientalista
Em sua apresentação, Pedro Vasques (Unicamp) trouxe um denso panorama das políticas ambientais nos Estados Unidos, com foco na atuação dos governos republicanos. Em meio a duas perspectivas opostas da relação entre cultura e natureza – a de subordinação da natureza pelo homem, abraçada pelos republicanos até meados do século XX, e a visão de conexão entre natureza e entorno cultural, que vigora após a segunda metade do século XX –, a pauta ambiental nos Estados Unidos se consolida como força política capaz de convergir a ação de republicanos e de democratas na aprovação de leis e normas ambientais, angariando uma imagem positiva junto ao eleitorado. O impacto dessa legislação, aprovada no Congresso, será progressivamente questionado pela indústria e pelos produtores rurais.
É quando irrompe a crise do petróleo nos anos 1970, com o ideário da “política de escassez”, sintetizada na concepção de que os Estados Unidos produzem muito e desperdiçam muito, os recursos não são infinitos, e os americanos precisam lidar com essa limitação, observando o restante do planeta. A partir do mandato de Ronald Reagan, primeiro presidente antiambientalista, os republicanos irão confrontar a “política da escassez”, negando-a e propondo a superação da crise energética a partir da exploração de todos os recursos possíveis, evocando inclusive a “engenhosidade da sociedade americana” como solução.
Nesse período, a base conservadora se articula com grupos empresariais, criando “vários escritórios de relações públicas que têm interface com a sociedade, formulando argumentos e colocando em dúvidas as políticas ambientais”, detalha Vasques.
No governo Bush, essa postura será intensificada. São nomeados antiambientalistas para cargos-chave da administração pública, e acirra-se o combate ao discurso ambiental, questionando sua validade científica em detrimento de argumentos morais e até religiosos. Com Trump, a escalada antiambientalista atinge outro patamar, com abandono de espaços multilaterais e do próprio protagonismo dos Estados Unidos na agenda internacional. Vasques assinala que a campanha de Biden acena, no entanto, para a desconstrução dessa política, na medida em que o democrata recoloca a questão da escassez sob a perspectiva da conexão entre meio ambiente e emprego, propondo uma política econômica e ambiental. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Pedro Vasques.
Política migratória e violações de direitos
Uma das primeiras informações trazidas por William Laureano (Unicamp) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas) sobre a política migratória nos Estados Unidos é de que a questão migratória independe da questão partidária, alternando entre períodos de expansão e de retração ao longo da história norte-americana. Trazendo um histórico desses períodos, Laureano identifica três fases da questão migratória: uma fase inicial de imigração irrestrita, entre 1492 a 1874; uma segunda fase, em que surgem as primeiras leis discriminatórias de caráter nacional, entre 1875 a 1920; e um terceiro momento, entre 1921 a 2000, marcado pelo movimento pendular – ora mais restritivo, como na primeira metade do século XX, ora menos restritivo, na segunda metade do século XX, após as lutas pelos direitos civis no país.
Essa fase termina no 11 de Setembro, quando a questão migratória deixa de ser um tema de direitos humanos, ou meramente de política imigratória, passando a ser uma discussão do sistema maior de segurança do Estado – afinal, “controlar quem entra significa controlar a segurança nacional”. É quando se observa, por exemplo, o aumento de detenções e de deportações no país, e a criação de seis grandes centros de detenção gestados pela iniciativa privada. Esse movimento, iniciado no governo W. Bush, perpassa o governo Obama que, entre 2009 a 2014, deportou dois milhões de pessoas não documentadas (que solicitaram refúgio) dos EUA.
Como explica Laureano, a política migratória “não se trata da política de um partido só, mas de um movimento de deportação mais amplo”, que irá atingir um patamar inédito, em termos de violações de direitos humanos e de políticas restritivas à entrada e à permanência de imigrantes nos Estados Unidos, durante o governo Trump. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de William Laureano, em pesquisa conjunta com Gabriel Dauer.
Trump e Wall Street
As relações entre o governo Trump e o sistema financeiro americano foram abordadas em estudo apresentado por Leonardo Ramos (PUC-MG) e Filipe Mendonça (UFU-MG). Em 2016, embora não demonstrasse preferência por nenhum candidato, Wall Street tendia à candidatura de Hillary, a despeito da defesa que o Partido Democrata fazia, naquela campanha, da Dodd-Frank Act (conjunto de leis voltadas à regulamentação do sistema financeiro, surgida em 2010 em resposta à crise global de 2008, provocada por Wall Street). Enquanto isso, Trump acenava com uma “agenda econômica próxima à de Reagan e em larga medida benéfica a Wall Street. Não obstante, havia um incômodo em relação a Trump”, observa Ramos.
Uma vez eleito, o bilionário não apenas minou a Dodd-Frank Act, como adotou várias medidas pró-Wall Street. Trump promoveu, por exemplo, uma onda de desregulamentação em vários setores do país, colocando figuras do mercado, ou ligadas a seus interesses, no comando de agências regulatórias do país. Como aponta Ramos, embora a retórica de Trump se dirigisse à massa de endividados da sociedade norte-americana, a prática de seu governo consolida uma agenda de favorecimento dos endividados. Apesar do notório comprometimento do bilionário, Wall Street não ocultou sua preferência por Biden neste 2020, que não apenas defende a pauta da regulamentação de Wall Street, como traz em sua equipe de transição figuras como Gary Gensler, defensor da Dodd-Frank Act.
“Wall Street se coloca claramente disposta ao aumento de impostos e de uma regulamentação mais dura do que a atual, desde que isso promova uma recuperação econômica sustentável, gerando estabilidade para o mercado norte-americano”, aponta Ramos.
Ele cita, como atrativos em Biden, as propostas em termos de investimentos e infraestrutura, e de retomada econômica neste contexto de reestruturação após a vacina da covid-19. “Wall Street não tem problema nem com Biden, nem com Trump”, aponta Ramos, trazendo a frase de um executivo de Wall Street, que dizia ter ganhado sempre muito dinheiro com os democratas. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Leonardo Ramos, em pesquisa conjunta com Filipe Mendonça
O inimigo chinês
Com base em declarações públicas e em documentos de ordem prática de Trump e de membros do alto escalão do governo, Neusa Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp) abordaram as relações econômicas entre Estados Unidos e China durante os quatro anos de trumpismo. Protagonizando sucessivas polêmicas contra o país asiático, Trump adotou, desde a campanha e ao longo de todo mandato, uma estratégia verbalmente agressiva, apresentando a China como nação inimiga e prejudicial aos interesses norte-americanos. Na Casa Branca, analisa Bojikian, Trump conseguiu manter um discurso inflamado em relação ao país asiático, variando de um “suposto compromisso com acordos”, convocando as contrapartes a fazerem concessões, a um tom predominamente “assertivo, agressivo e resistente aos supostos objetivos de uma China com pretensões revisionistas e igualmente assertivas”, afirma Bojikian.
Analisando as medidas de ordem prática, em particular as ordens executivas do alto escalão do governo, Bojikian e Pontes identificam um “desejo de desforra política” ancorada na ideia de que “os Estados Unidos, há muito tempo, são vítimas de maus acordos e de práticas comerciais injustas”. É quando ocorre a ofensiva do governo Trump na revisão de vários acordos existentes, como a revisão normativa em torno do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). No caso de Pequim, o sentimento de desforra é veemente. Daí as investigações, no primeiro ano de governo, em 2017, com base na Lei de Comércio (1974) norte-americana, de questões relacionadas à propriedade intelectual e à China. Estas questões irão culminar na implicação do país asiático em uma série de acusações, inclusive de roubo de informações confidenciais e segredos industriais de empresas norte-americanas.
Como avaliam as pesquisadoras, entre discurso e prática, Trump deixa a sua marca que, ainda que não se constitua uma estratégia, diz respeito à tentativa de passar uma mensagem de liderança e de controle dos Estados Unidos. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Neusa Bojikian em pesquisa conjunta com Rúbia Marcussi Pontes.
Crédito: Reprodução/YouTube
A escalada conservadora no Judiciário
Um Judiciário conservador: este é o grande legado institucional de Donald Trump, segundo Celly Cook Inatomi (INCT-INEU), que apresentou os resultados preliminares da pesquisa que desenvolve sobre a escalada conservadora no poder judiciário norte-americano ao longo do governo Trump, e o impacto desse processo para os direitos civis dos Estados Unidos. Em quatro anos, Trump empossou 215 juízes federais, e colocou 53 juízes em cortes federais de apelação, responsáveis por dar a última palavra em cerca de 80% dos casos que entram na Justiça federal norte-americana. São juízes que têm, portanto, um imenso peso na definição dos direitos no país. Trump também reverteu três cortes de maioria liberal para maioria conservadora. Das 13 cortes federais de apelação no país, 11 são compostas por juízes trumpistas, dotados de opiniões polêmicas em relação a direitos civis básicos – em particular, direitos relacionados às lutas das mulheres, dos negros, dos estrangeiros e dos LGBTs.
Observando as redes associativas dos juízes de Trump, Inatomi reconstitui os espaços do conservadorismo nas instituições. Grosso modo, eles passaram por faculdades de Direito de Harvard, Yale, Stanford, Chicago; pelo escritório de advocacia Jones Day; por associações religiosas católicas e conservadoras; think tanks, como a Federalist Society; por campanhas presidenciais como a de George W. Bush e outros espaços. Ela explica que, desde o governo Reagan, é possível identificar a ascensão conservadora pelas instituições do Poder Judiciário, mas é no governo Bush que esse processo ganha força, com a concentração desses juízes no Departamento de Justiça e em outras cortes como assessores de juízes conservadores. Neste sentido, “a passagem obrigatória por esses cargos se configuraria como uma oportunidade de institucionalizar entendimentos conservadores”, destaca.
Dando sequência a esse processo, os quatro anos de Trump significam, na avaliação da pesquisadora, “o ápice da ascensão institucional do movimento conservador na sociedade norte-americana”. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Celly Cook Inatomi.
Federalismo trumpista em tempos de covid-19
Ao longo de 2020, Débora Prado acompanhou análises e dados sobre a covid-19 nos Estados Unidos, procurando entender se a crise no enfrentamento da pandemia se relaciona a questões mais estruturais do federalismo norte-americano – tema de suas pesquisas acadêmicas –, ou se ela se deve ao que chama de “federalismo trumpista”, expresso na negação da gravidade da pandemia e, sobretudo, na delegação do gerenciamento da crise para os governadores.
Débora conta que a reação à covid-19 começa com os governadores, que passam a adotar medidas de prevenção, como uso da máscara e isolamento social, à revelia das declarações de Trump que os deixou, conforme a crise piorava, cada vez mais por conta própria. Pesquisas no início da pandemia indicavam a satisfação de 74% da população com o trabalho dos governadores. Em relação a Trump, apenas 32% da população avaliavam que ele estava fazendo um bom trabalho.
Em sua avaliação, a adoção do lockdown se baseou menos em evidências científicas e mais em adesão política partidária. Os governadores republicanos que atuaram alinhados a Trump demoraram semanas para tomar medidas necessárias no combate do alto nível de contágios. Os governadores democratas foram mais rápidos. “Quanto mais contrário o governador ao presidente Trump, mais intensa e eficaz a atuação contra a pandemia”, sintetiza Prado.
Ao delegar o combate da covid-19 aos estados, “não se apresentou nenhuma padronização de medidas de enfrentamento da pandemia, mapeamento, ou diagnóstico claros, além dos permanentes atritos com os governadores”, aponta a pesquisadora, ao destacar os aspectos comuns entre Trump e Bolsonaro frente à pandemia.
Segundo Prado, o fracasso no enfrentamento da covid-19 está muito mais relacionado ao federalismo trumpista e de extrema direita do que à estrutura tradicional do federalismo norte-americano. Confira aqui os 20 minutos da apresentação de Débora Prado.
Confira abaixo o seminário do INCT-INEU
Todas as mesas estão disponíveis online no Canal do YouTube do INCT-INEU. Para acessá-las, basta clicar no nome do expositor na programação abaixo:
Héctor Luís Saint-Pierre – Coordenador-Executivo do IPPRI-UNESP
Contexto Político Institucional
Sebastião Velasco (Unicamp-INCT-INEU)
Mediador: Tullo Vigevani (UNESP)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (1)
Wiliam Laureano (PPGRI-UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas)
Leonardo Ramos (PUC-MG) e Filipe Mendonça (UFU)
Neusa Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp)
Mediador: Thiago Lima (UFPB)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (2)
Mediador: Marcos Cordeiro (UNESP)
2020: eleições em tempos difíceis
Celly Cook Inatomi (INCT-INEU)
Débora Figueiredo Mendonça do Prado (UFU)
Mediador: Frederico Almeida (UNICAMP)
Eleições 2020: balanço e perspectivas
Rafael R. Ioris (University of Denver)
Inderjeet Parmar (University of London)
Mediadora: Flávia de Campos Mello (PUC-SP)
Saiba mais sobre o INCT-INEU e seus pesquisadores em http://www.ineu.org.br/
Acompanhe as análises do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e receba nosso boletim quinzenalmente em www.opeu.org.br
Siga o INCT-INEU no Facebook, Twitter, Linkedin e YouTube
* Tatiana Carlotti é assessora de imprensa do INCT-INEU e do OPEU. Contato: tcarlotti@gmail.com.
** Matéria originalmente publicada no site da Carta Maior, em 18 dez. 2020.